AMBIENTE

100 famílias ganham a vida recuperando solos do Cerrado

Quilombolas Kalunga da Chapada dos Veadeiros em Goiás, especialmente mulheres, ganham a vida com a coleta e venda de sementes originárias do Cerrado para a recuperação do solo degradado
Por Cristina Ávila / Publicado em 15 de agosto de 2022

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100 famílias ganham a vida recuperando solos do Cerrado

Foto: Cristina Ávila

Além de coletor, liderança e articulador de pessoas em torno da associação,
Claudomiro é um curioso pesquisador prático

Foto: Cristina Ávila

Famílias nativas da Chapada dos Veadeiros em Goiás, especialmente mulheres quilombolas Kalunga, de um dos maiores territórios tradicionais negros do Brasil, ganham a vida com a coleta e venda de sementes originárias do Cerrado para a recuperação de solos degradados.

A luta pela sobrevivência tem significativos resultados ambientais, mas gera a ira de fazendeiros, que provocam incêndios ilegais na região. Eles resistem ao plantio de 800 hectares em áreas

de preservação permanente (APPs) e reservas legais, mesmo sem ter que pagar pela iniciativa.

O parque protege centenas de nascentes e é uma das maiores e últimas reservas de Cerrado protegido do Brasil. Ampliado para 240 mil hectares em 2017, em seguida sofreu o que se considera o maior episódio trágico ambiental de sua história – um incêndio que consumiu cerca de 30% de sua área. Em 2021, novamente foi atingido gravemente pelo fogo.

Foto: Cristina Ávila

Flor do pequi, árvore-símbolo do cerrado no estado de Goiás

Foto: Cristina Ávila

“Pxiiiiiii”, com um soquinho e, em seguida, a mão se abrindo ao som que imita o atrito de sementes jogadas ao vento, Claudomiro Almeida Cortes, o Clau, chega cumprimentando as pessoas. Filho de uma família agricultora com 13 irmãos, ele já foi garimpeiro de cristais como o pai na sobrevivência pela vida. Até o dia em que pegou um serviço temporário de brigadista de combate a incêndios no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Alto Paraíso de Goiás, onde nasceu, de parto natural, em casa. E se apaixonou pela ideia da conservação ambiental. Acabou fundando a Associação Cerrado em Pé, hoje com cem famílias que colhem grãos nativos para a recuperação de áreas degradadas.

Clau tem 40 anos e era chamado de “doido” pelos amigos que o viam catando sementes de capins na beira de estradas de São Jorge, distrito onde mora, de ruas sem calçamento, sempre cheio de turistas do país e do mundo. Com 7 mil habitantes, Alto Paraíso tem a réplica de um disco voador como portal de entrada, fama de mística e 120 cachoeiras catalogadas, em região de montanhas, a 230km de Brasília (DF) e 420km de Goiânia (GO). O município e o parque são alvos de grandes incêndios criminosos e da ganância de fazendeiros interessados no plantio de soja. O combate pela restauração é feito por uma tecnologia conhecida por “muvuca”.

“Muvuca é uma mistura de várias sementes nativas, semeadas diretamente no solo. Ou simplesmente sinônimo de semeadura direta”, explica o engenheiro florestal com especialização em ecologia Alexandre Sampaio. A técnica é a mesma do cultivo agropecuário de pastagens africanas, porém é novidade na restauração ecológica e geração de renda, que pode chegar até R$ 80 mil anuais por família, segundo o pesquisador. Ele é analista ambiental do Centro Nacional de Avaliação da Biodiversidade e de Pesquisa e Conservação do Cerrado (CBC) do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Esse Centro é responsável pelo atendimento de todas as unidades de conservação do país em relação a ações de restauração ecológica.

A Cerrado em Pé começou com a restauração do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, com 3 hectares em 2012, chegando ao total de 179 no ano passado (cada hectare equivale a 10 mil m²). Neste ano, serão mais 30 nesta soma, financiados pela WWF (20 ha) e pela multinacional do agronegócio Cargill (10 ha). Um projeto aprovado pela Caixa Econômica Federal começou em 2022 e vai até 2024 a financiar mais 800 hectares em áreas de preservação ambiental (APPs) e reservas legais em propriedades particulares, embora a iniciativa não esteja tendo boa receptividade entre fazendeiros, mesmo que eles não tenham custos.

Uma centena de famílias e 300 espécies

Alexandre Sampaio conheceu essa técnica de restauração com a pioneira Associação Rede de Semente do Xingu, do Pará e Mato Grosso, criada em 2007, e que passou a vender muvuca em 2017, a partir da regulamentação da Instrução Normativa nº 17, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). “Na Chapada dos Veadeiros, foi desenvolvida pela prática, com tentativas e erros, mas sempre acompanhada de muita pesquisa científica.” Experimentos científicos demonstram que a semeadura direta cria plantas muito mais resistentes ao clima árido, além de oferecer alta diversidade genética e custos menores. Mas não se descartam consórcios com espécies comerciais na agricultura familiar.

Conforme o analista ambiental, o resultado da muvuca é muito mais parecido com uma floresta natural. “Com mudas, mais se assemelha a um bosque”, compara. Ele cita que as áreas de vegetação nativa da região geralmente têm cerca de 300 espécies, a maior parte gramíneas e arbustos. Com a semeadura direta, se chega a 30 ou 40. “É um processo. Só vai avançar fazendo. E na Chapada, foi possível porque conta com a liderança de Claudomiro”, relata.

Mama-cadela, planta medicinal conhecida como chiclete do cerrado pois pode ser mascada

Foto: Cristina Ávila

Mama-cadela, planta medicinal conhecida como chiclete do cerrado pois pode ser mascada

Foto: Cristina Ávila

Tantas sementes na terra quanto estrelas no céu

“Quero plantar tantas sementes como as estrelas que têm no céu”, ressalta Clau. Ele garante que a meta é possível, mostrando com o dedo milhares de sementes caídas na terra na área de plantio das espécies de capins – o amargoso, orelha de coelho, capim roxo, carrapato, rabo de burro e muitos outros. Com dois anos de semeadura, já estão viçosos no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

No Cerrado, campos e arbustos são preponderantes. E os capins nativos têm importância fundamental. Ao contrário da braquiária, a exótica que compacta o solo, as gramíneas naturais do bioma ajudam as chuvas a escorrerem devagar e funcionam como esponjas na recarga de mananciais.

Claudomiro Cortes conta que, em 2009, a primeira coleta de sementes foi de três quilos e meio. Em 2012, a primeira família associada, com cinco pessoas, colheu 600 quilos. Em 2016, foram 64 famílias com 12 toneladas. Hoje, são mais de 100 famílias. Ele afirma que os ganhos são de acordo com a produção, mas relata que há também tarefas de plantio, e que cada trabalhador recebe diárias de R$ 130 livres de custos, com transporte e alimentação.

“São muitas formas de ganhos. Uma das famílias me contou que, com um pé de cagaita (fruto típico), comprou uma bezerra (fazendo polpa). Outra família colheu cajuzinho do cerrado, vendeu as sementes e ainda fez mais 700 quilos de polpa, vendida a R$ 10 cada quilo”, cita o fundador da Cerrado em Pé. “Aqui, dinheiro dá em árvore”, costuma brincar.

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Adelice: “Às vezes, fico pensando o que seria da minha vida se não fossem as sementes”

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Claudomiro é um pesquisador prático

Além de coletor e articulador de pessoas em torno da associação, Claudomiro é um curioso pesquisador prático. Uma de suas histórias é sobre a reprodução da canela-de-ema, a arbustiva de flores

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Cíntia Carvalho, presidente da Cerrado em Pé

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roxas que foi consagrada pelo paisagista Burle Marx, pioneiro da construção de Brasília. “Muitas pessoas tentam arrancá-la do Cerrado com torrão e tudo, pra plantar em casa, mas morre. Eu tentei com sementes, mas não deu certo. Desisti e joguei-as numa gaveta. Um dia, procurando outra coisa, achei-as e resolvi plantá-las de novo. Assim descobri como quebrar a sua dormência”, comemora o sucesso.

A presidente da Cerrado em Pé hoje é Cíntia Carvalho, que mostra o galpão onde fica o estoque da produção, na área urbana de Alto Paraíso. Assentada da reforma agrária, ela lembra que começou a se interessar pelo assunto quando percebeu a redução de frutos que antes eram comuns no Cerrado.

“Em 2021, mandamos 3 toneladas de sementes para Mariana, em Minas Gerais”, relata, referindo-se ao município devastado em 2015 pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco. Além da recuperação de áreas do Parque da Chapada dos Veadeiros, a Cerrado em Pé faz pequenas vendas para diversos estados, por meio da Rede de Sementes do Cerrado, organização com sede em Brasília, que promoveu registros georreferenciados de 117 Áreas de Coleta de Sementes e 6935 árvores matrizes de 338 espécies nativas, além de ter capacitado mais de mil pessoas para a atividade.

Atualmente melhor estruturada, a associação de Alto Paraíso passará a vender por conta própria. Cíntia Carvalho explica que no galpão as sementes são armazenadas separadas em sacos, e a muvuca é feita de acordo com o diagnóstico das áreas a serem restauradas. Esse diagnóstico se baseia nas chamadas fitofisionomias do bioma, as quais vão desde campos até florestas e veredas que são típicas áreas úmidas, cuja principal característica são as palmeiras buriti, cercadas por espécies arbustivas e circundadas por campos limpos, onde, naturalmente, vicejam os capins nativos.

70% são mulheres e metade das famílias são Kalunga

100 famílias ganham a vida recuperando solos do Cerrado

Foto: Marcelo Scaranari / ICMBio

Vista panorâmica da Chapada dos Veadeiros

Foto: Marcelo Scaranari / ICMBio

Cíntia conta que, entre as 100 famílias coletoras (cerca de 300 pessoas), 70% são mulheres. “Uma das famílias conseguiu apurar R$ 22 mil em uma única venda, resultado de quatro meses de trabalho”, afirma. Do total de associados, 50 famílias são quilombolas Kalunga. “Já chegamos a trazer 3 toneladas do Vão de Moleque”, diz referindo-se a uma das áreas do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, onde o acesso somente é possível por veículo traçado. O quilombo localiza-se em municípios vizinhos, cerca de 100 km de Alto Paraíso, Ela explica que, além das sementes in natura, são processados derivados dos frutos do bioma, como do jatobá, do qual as quilombolas extraem óleo e também produzem farinha.

Entre as Kalunga, uma das mais eficientes coletoras é Adelice Farias da Silva, moradora da cidade de Teresina de Goiás, um dos municípios abrangidos pelo território tradicional. Ela está na atividade há cinco anos e conta que logo no segundo ano pôde comprar o terreno onde construiu a casa que mora na zona urbana. “Foi um estouro na minha vida. Tem vez que fico aqui sozinha e penso… se não fosse a semente, como que eu estaria vivendo agora?”, reflete. Antes de ser extrativista, morava de aluguel e trabalhava em uma pousada. “Não tava aguentando mais… Era serviço, serviço, serviço.” A quilombola continua com atividades laborais na cidade, mas com menos sacrifício, e o que consegue no Cerrado é um rendimento extra significativo.

Adelice divide a tarefa com uma comadre. A cada colheita, as duas passam dois a três dias acampadas na beira do Rio Ribeirão, que fica a 30 km de sua casa. Conseguem carona de carro e andam 5km a pé por trilha até chegar ao local. Quando uma não pode, a outra vai sozinha. “Eu já conhecia as espécies. O tingui a gente usa pra fazer sabão. O baru, a sucupira, tudo a gente usa. Só o capim eu achava que não servia pra nada. Agora eu quero um carro, até uma motozinha serve, pra coletar mais longe, ter mais resultado. Meu plano é terminar de arrumar a casa.”

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