CULTURA

A obra chega aos cinqüenta

Dóris Fialcoff / Publicado em 23 de novembro de 1999

Aclamado como marco da cultura literária gaúcha, O Continente começou a ser “profetizado” por Érico Veríssimo em 1942

Há meio século, Erico Ve-rissimo (1905-1975) lançava O Continente, a primeira parte da trilogia O tempo e o vento, um gigantesco romance histórico que garantiu ao autor ser reconhecido como um clássico da literatura brasileira. Maria da Glória Bordini, coordenadora do Acervo Literário Erico Verissimo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC), conta que o projeto da obra iniciou em 1939, quando Erico pensava em escrever um romance cíclico sobre o Rio Grande de 1740 a 1940, a que chamaria Caravana. Entretanto, em plena eclosão da Segunda Guerra Mundial, sentiu que não era a hora e acabou desistindo.

Foi apenas em 1947 que O Continente começou a ser escrito, depois de já ter sido “ficcionalmente profetizado pelo autor gaúcho no seu livro O resto é silêncio (1942), quando o protagonista, também um escritor, durante um concerto no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, se dá conta da quantidade de etnias que está na platéia. O próprio personagem, então, começa a pensar que essa mistura de colonizações da formação do Rio Grande merecia ser romanceada. Ali, Erico estava construindo a imagem de o O Continente”, interpreta Maria da Glória.

A coordenadora do acervo revela que Erico, desde que começara a escrever ficção, achava que não devia divinizar os heróis de um estado que tinha uma história de guerras e tropelias. “Se fosse escrever, teria que ser um resgate do lado mais verdadeiro e humano da história, diferente do pensamento oficial do Estado Novo”, analisa. E isso pode ser percebido já no início de O Continente, quando o personagem Liroca, de arma em punho na espreita do sobrado, transborda os medos e ansiedades de um jovem que a qualquer momento pode ter a vida roubada naquela batalha.

Para o crítico literário e escritor Paulo Bentancu, O tempo e o vento é a mais importante obra da literatura gaúcha. Considerando-o um ciclo romanesco, avalia serem “novelas isoladas que somadas compõem todo o mosaico da história do Rio Grande do Sul”. E reverencia: “Pobre do Rio Grande do Sul sem o Erico. Ele é 50% da literatura gaúcha”. Bentancur acredita que, apesar do texto do também autor de Saga e Incidente em Antares ser “irresistível, saboroso e ter uma funcionalidade popular sem ser superficial, não chega a ser rico. Erico era um escritor alerta para o seu tempo, muito mais atento à política do que ao estilo”, opina, lembrando as palavras do próprio autor: “Não sou um talento verbal”. Bentancur entende que existem os escritores que as pessoas amam e os que admiram. “O Erico eu amo”, confidencia.

Na opinião de Bentancur, Erico Verissimo influenciou vários escritores gaúchos, entre eles Josué Guimarães, Luiz Antonio de Assis Brasil, Tabajara Ruas e Sergio Faraco. No país, acha que não fez tanta escola quanto os autores nordestinos da geração de 30, como Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz. Entretanto, já foi modelo para Prêmio Nobel de Literatura. “Gabriel Garcia Márquez afirmou, certa vez, que foi muito influenciado por O tempo e o vento ao escrever Cem anos de solidão. Para mim, pela arquitetura do projeto, isso aconteceu mesmo com a primeira parte de O Continente, intitulada O sobrado. Tanto que Cem anos de solidão era para se chamar A casa”, revela.

Uma verdadeira devoradora de livros, Maria Raquel Cavalcanti, hoje com 73 anos, conta que leu os volumes da trilogia no período em que foram editados. Como ela também conhece as obras que Erico escrevera antes, tem a impressão que, “a partir de certa época, tudo que ele fez foi sempre com o pensamento ligado à trilogia que um dia escreveria”. Ela, que considera O tempo e o vento uma obra muita pesada, densa, principalmente O Continente – “talvez pela minúcia e pelo tema histórico” -, confessa: “foi algo que eu li porque achava um absurdo não ler, mas não que tivesse feito com grande prazer”.

Quanto às preocupações estilísticas do autor, Maria Raquel lembra de quando ele mesmo dizia não ser um romancista, mas um contador de histórias. Apesar de acreditar que havia muita modéstia naquelas palavras, também acha que ele não se preocupava, apenas narrava. “E, como por um dom natural, o fazia bem. Assim como a gente conversa, ele escrevia”, compara. Por falar em comparação, após ser explícita sobre o quanto lhe agrada ler Erico Verissimo, garante: “quem eu gostava tanto quanto do Erico era do Machado de Assis, em sua segunda fase, quando publicou Quincas Borba, Brás Cubas, Dom Casmurro…”.

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