CULTURA

Sartre, um pensador em movimento

Renato Dalto / Publicado em 6 de junho de 2005

Há cem anos, no dia 21 de junho de 1905, nascia em Paris, capital francesa, um homem que dedicou a vida e a obra para fustigar a liberdade e suas possibilidades. Jean-Paul Sartre, escritor, filósofo, ativista, foi sobretudo um pensador em movimento. Deu pernas, braços e voz a idéias tão caras à humanidade como a liberdade, a determinante fundamental de toda a existência. “Ele foi um modelo de filósofo que soube pensar muito além dos muros da academia. Ele soube canalizar as inquietações sociais e existenciais de sua época e traduzi-las em linguagem filosófica e literária”, analisa Ricardo Timm de Souza, professor do programa de pós-graduação em filosofia da PUC-RS. Para ele, Sartre foi um exemplo de coragem civil, um pensador, onde pensar e agir se conjugavam da mesma forma. A obra sartreana é um espelho das grandes questões do século XX, transitando da angústia do existencialismo ao questionamento dos dogmas totalizantes do marxismo. É uma obra em permanente inquietação.

O professor Ricardo Timm organiza um seminário, ainda sem data definida, onde se discutirá alguns aspectos do pensamento de Sartre. Um pensamento livre que era uma forma aberta de comunicar-se com o mundo. Porque a vida de Jean-Paul Sartre também é uma obra aberta. Ele atribuía isso ao fato de ter perdido o pai apenas aos dois anos de idade. Costumava dizer que não tinha superego.

A base filosófica de Sartre ergue-se em torno da questão da liberdade, um tema que passa a acompanhá-lo desde que ingressa no curso de filosofia da Escola Normal Superior, em 1924. Foi nessa escola que conheceu a companheira de toda a vida, Simone de Beauvoir. A partir de 1933, em Berlim, teve contato com as obras de Edmund Husserl e as teorias existencialistas de Heiddegar e Karl Jaspers, até chegar a Kierkegaard. É dessas influências que nasce a mais forte vertente literária da sua obra.

É daí que nasce A náusea, publicado em 1938. “Esse livro é tudo, é o testemunho de uma época. Coloca, de um lado, o horror de um período sem deixar de ter a capacidade de detectar certas sementes do futuro.” Nesta obra, o personagem central, Antoine Roquentin, vive nos extremos da solidão, do sem sentido, do absurdo.

Paulo Hecker Filho, poeta e crítico literário, viveu todo um período de influência da filosofia de Sartre entre os intelectuais brasileiros. “Depois da II Guerra Mundial, ele ensinou o mundo a pensar. Ele apostou na liberdade, no homem com liberdade e criou a psicanálise existencial bem mais provável que a freudiana.” Hecker cita Le Mur (O muro) como a grande obra literária sartreana. É o homem na situação extrema, através do personagem Pablo Ibietta, combatente republicano na Espanha, torturado pelas tropas do general Franco, nos limites da coragem e da fidelidade a uma causa.

O viés existencialista, porém, imprimirá na obra de Sartre uma dinâmica de não separar o indivíduo das grandes questões coletivas. A filosofia se expressa em obras como A transcendência do ego, O imaginário e chega ao seu auge com O ser e o nada, publicado em 1943. Mas a história de Jean-Paul Sartre é também a história de um século sacudido por duas grandes guerras mundiais, pelo avanço da Guerra Fria, pelo horror do Holocausto da II Guerra, pela ascensão e esperança no socialismo. Um século de grandes movimentos. Um século onde era preciso opinar, se posicionar, combater com armas ou idéias.

“Ele sempre tomou partido”, lembra Timm. Foi assim que se filiou ao Partido Comunista Francês e chegou a apoiar o regime de Stalin na União Soviética. Lutou na II Guerra, foi prisioneiro dos campos de concentração, flertou e rompeu com o PC Francês e fundou o grupo Socialismo e Liberdade. Preocupado com as grandes questões coletivas, tentou dar um viés mais amplo ao existen-cialismo, aproximando-o do marxismo em Crítica da razão dialética. Para ele, o dilema humano da miséria e da penúria fazia do marxismo uma escola insuperável em sua época, embora enxergasse, para além disso, um caminho para a liberdade.

“ Logo que existir para todos uma margem de liberdade real para além da produção da vida, o marxismo deixará de viver; uma filosofia de liberdade tomará seu lugar. Mas não temos nenhum meio, nenhum instrumento intelectual, nenhuma experiência concreta que nos permita conceber esta liberdade ou esta filosofia”, escreveu Jean-Paul Sartre. Quando morreu, no dia 15 de abril de 1980, Sartre tinha quase a idade de vida do agitado século XX. Um século no qual viveu e pensou em permanente movimento. E deixou uma obra onde incita uma grande questão: só a busca da liberdade justifica a esperança no futuro.

Um homem de idéias e causas

Poucos pensadores transformaram de forma tão contundente suas idéias em ações como Jean-Paul Sartre. Inquietou gente de todos os matizes, da direita à esquerda. Sua biografia mostra-o sempre ao lado de alguma causa, coletiva ou particular. Sua vida pessoal com Simone de Beauvoir expunha a dor e a delícia de uma relação aberta, que levava ao extremo as premissas que todo o amor deveria ter: a capacidade de cada um de se manter próximo e distante. Ambos se permitiram ter outros parceiros e continuar juntos. Foi a liberdade praticada na intimidade, coerência entre a palavra e a ação.

Ao longo da vida, também foi rompendo os muros que separam a academia da realidade das ruas. Em 1941, ao mesmo tempo em que combatia na resistência francesa, fundava o movimento Socialismo e Liberdade. Com o fim da guerra, em 1945, dissolve o movimento e funda, com Merleau-Ponty, a revista Les Temps Modernes. Tempos depois, ingressa e rompe com o Partido Comunista Francês. O desencanto o leva a escrever O fantasma de Stalin. Em 1960, publica Crítica da razão dialética e, em 64, As palavras, uma espécie de testamento de sua obra. Nesse mesmo ano, recusa o Prêmio Nobel de Literatura. Mas em 68, mais uma vez, não recusa o chamado das ruas.

Na Paris conflagrada, explodem as revoltas estudantis. No Maio de 68 que entrou para a história, lá está Sartre ao lado dos estudantes nas barricadas do Quartier Latin. Também engaja-se na luta contra a Guerra do Vietnã. É um homem em movimento, francamente contra a opressão, a guerra, o capitalismo e o imperialismo. Seus movimentos agora são públicos e notórios. Em 1970, com a prisão dos diretores do jornal Le Cause de Peuple, assume simbolicamente a direção do jornal. Em 1973, colabora na fundação do jornal Liberatión.

É esse jornal que anuncia, em abril de 80, a morte de Sartre. Na capa, estampa uma foto emblemática. Ele está “com ar brincalhão, as mãos pousadas nos joelhos, à espera de prestar depoimento num enésimo processo, sentado num banco do Palácio da Justiça”, descreve Annie Cohen-Solal em Sartre, biografia editada no Brasil pela L&PM, em 1986.

Após a morte, começa a se revelar o inventário de uma grande obra. Comparado a Voltaire e Victor Hugo pelos franceses, incensado como modelo de pensador engajado e coerente, o nome de Sartre voltará à tona dezoito meses depois da sua morte com a publicação de Le Cérémonie des Adieux (A cerimônia do adeus), depoimento íntimo e corajoso de Simone de Beauvoir. É um relato dos últimos dez anos da vida de Jean-Paul Sartre. Mais um capítulo – não o derradeiro – de uma obra que se estenderá para muito além da vida do seu autor. Biografias, relatos, republicações vão espoucar nos anos seguintes. Sartre seguirá atual e revisitado, porque a grande existencial humana, a liberdade, continua sendo um dilema sem fim.

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