JUSTIÇA

Excludente de ilicitude é inconstitucional, aponta MPF

PL de Bolsonaro que institui regime de impunidade para crimes praticados por militares e policiais em atividade não tem paralelo nem nas piores ditaduras, alertam procuradores
Por Gilson Camargo / Publicado em 27 de novembro de 2019
Letalidade policial aumentou quase 20% em um ano. Só a PM do Rio matou mais de 1,5 mil pessoas até outubro

Foto: Fernando Frazão/ ABr

Letalidade policial aumentou quase 20% em um ano. Só a PM do Rio matou mais de 1,5 mil pessoas até outubro

Foto: Fernando Frazão/ ABr

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e da Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e de Sistema Prisional (7CCR), ambos do Ministério  Público Federal enviaram nota técnica alertando a Câmara dos Deputados sobre a inconstitucionalidade do Projeto de Lei 6.125/2019, apresentado pela presidência da República para ser votado pelos parlamentares, que livra de punição os crimes cometidos por policiais e militares em serviço de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), a Lei do Abate. As propostas contidas no PL são flagrantemente inconstitucionais e sem paralelo – até mesmo se comparadas aos atos institucionais da ditadura militar. O documento ressalta que é dever estatal respeitar e garantir o direito à vida e que o uso da força letal é legal quando estrito e diretamente necessário para salvar vidas. “O direito internacional tampouco admite a morte intencional de um suspeito: o assassinato deliberado, intencional e premeditado por agentes estatais é ilegal e jamais poderá ser o objetivo de uma operação policial, como apontou o Relator Especial das Nações Unidas sobre execuções extrajudiciais, sumárias e arbitrárias, Philip Alston”, adverte o comunicado.

Os procuradores federais Deborah Duprat, Domingos Sávio Dresch da Silveira, Marlon Alberto Weichert e Eugênia Augusta Gonzaga, chamam a atenção para o caráter de exceção das medidas previstas no PL. “Há uma autorização implícita, mas efetiva, para que as forças de repressão possam, sob o manto de uma operação de GLO, fazer uso abusivo e arbitrário da violência, com grave risco de adoção de medidas típicas de um regime de exceção, incompatíveis com os padrões democráticos brasileiros e do direito internacional”, alertam os procuradores.

O Projeto de Lei 6.125/2019 estabelece normas aplicáveis aos militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem e aos policiais militares ou civis que a elas eventualmente prestem apoio. Segundo declarações de membros do governo federal, o PL representaria um conjunto de normas voltadas a enfrentar possíveis distúrbios em manifestações públicas.

A letalidade policial no Brasil aumentou 4% no primeiro semestre de 2019 e quase 20% entre 2017 e 2018. A polícia militar do Rio de Janeiro é a que mais mata no mundo: os agentes de segurança do governador Wilson Witzel abateram 1.546 pessoas de janeiro a outubro, o maior recorde desde 1988

No dia 7 de abril, militares confundiram o carro no qual o músico Evaldo dos Santos Rosa estava com a família, a caminho de um chá de bebê, na periferia do Rio, e dispararam mais de 80 tiros, provocando a morte de Evaldo e de Luciano Macedo, que tentava ajudar as vítimas

Foto: Fábio Teixeira/ Mídia Ninja

No dia 7 de abril, militares confundiram o carro no qual o músico Evaldo dos Santos Rosa estava com a família, a caminho de um chá de bebê, na periferia do Rio, e dispararam mais de 80 tiros, provocando a morte de Evaldo e de Luciano Macedo, que tentava ajudar as vítimas

Foto: Fábio Teixeira/ Mídia Ninja

Para os dois órgãos do Ministério Público Federal, no entanto, a proposição tem como objetivo garantir aos agentes estatais um regime jurídico privilegiado em relação ao dos cidadãos em geral. “Trata-se de instituir um permanente espaço de exoneração de responsabilidade das forças estatais de segurança pública. E isso quando o país experimenta as mais aviltantes taxas de letalidade policial, com um aumento de 4% apenas no 1º semestre de 2019, especialmente no estado do Rio de Janeiro, no qual se superará em 2019 o recorde de mortes provocadas por confrontos com a polícia. E mesmo após essa letalidade ter aumentado 19,6 % de 2017 para 2018, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, diz o comunicado.

No documento aos parlamentares, a PFDC e a Câmara de Controle Externo da Atividade Policial chamam especial atenção quanto às previsões do parágrafo único do artigo 2º do PL 6.125, que considera como ‘em legítima defesa o militar ou o agente que repele injusta agressão, atual ou iminente’. O texto classifica de “injusta agressão” práticas capazes de gerar morte ou lesão corporal, assim como atos de terrorismo nos termos da Lei nº 13.260/2016.

“Esse dispositivo é descabido por presumir a licitude de uma conduta que é, em si, ilícita. Em realidade, esse preceito inverte o sistema jurídico constitucional e criminal, ambos baseados no máximo de contenção das forças de segurança, de modo a evitar o evento morte”.

Licença para matar

A PM do Rio só não confunde o perfil das suas vítimas: são sempre negros, jovens e crianças pobres da periferia, como Ágatha, 8 anos, morta pelo disparo de um policial contra uma van, no dia 20 de setembro

Foto: Reprodução

A PM do Rio só não confunde o perfil das suas vítimas: são sempre negros, jovens e crianças pobres da periferia, como Ágatha, 8 anos, morta pelo disparo de um policial contra uma van, no dia 20 de setembro

Foto: Reprodução

A PFDC e a 7CCR destacam que as excludentes de ilicitude são previstas na legislação penal para evitar a punição de determinadas condutas tipificadas como crimes, mas que são praticadas em circunstâncias que não revelam antijuridicidade, ou seja, contrariedade ao direito. “O PL pretende alterar esse quadro normativo consolidado no direito brasileiro para criar novas hipóteses de impunidade para agentes públicos. E aí afronta um dos princípios centrais da Constituição, o princípio republicano – segundo o qual todos os agentes públicos devem responder política e juridicamente pelos próprios atos, conforme inclusive tem endossado o Supremo Tribunal Federal”, contrapõem.

O propósito de garantir impunidade específica aos agentes públicos, destacam os procuradores, é ainda ressaltado pela redação dos artigos 3º e 4º do PL. O primeiro prevê que, mesmo quando houver excesso doloso do agente na legítima defesa, o juiz poderá atenuar a pena. Já o artigo 4º, por sua vez, veda a prisão em flagrante de militares e policiais quando se aponte o exercício de legítima defesa. “De destacar que esses dois artigos não têm incidência limitada às situações de GLO, mas sim para qualquer hipótese de alegação de legítima defesa. Eles são amplos e pretendem garantir que militares e policiais, em regra, não serão presos em flagrante quando alegarem que agiram em legítima defesa e, ainda, que suas penas por eventual excesso doloso poderão ser atenuadas pelo juiz.”

A nota técnica aos parlamentares lembra, ainda, que a Constituição Federal assegura os direitos  de reunião, associação, manifestação e protesto,  e ressalta que essas são garantias absolutamente fundamentais em países como o Brasil – de um longo passado de privilégios e de desigualdades abissais.

“A gente não pode assistir à morte de uma criança e achar que isso é normal. Vamos acionar os órgãos responsáveis. Este modelo de segurança pública não combate apenas o crime”

Movimentos de favelas do Rio de Janeiro enviaram denúncia à Organização das Nações Unidas (ONU) contra o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), na qual responsabilizam também o Estado brasileiro pela morte da menina Ágatha Félix, 8 anos, atingida por um fragmento de projétil durante uma operação policial no Complexo do Alemão. A criança foi baleada nas costas quando estava em uma kombi na comunidade da Fazendinha, no Complexo do Alemão, na zona norte, no dia 20 de setembro. No início de agosto, seis jovens da periferia que não tinham qualquer envolvimento com crimes foram mortos durante operações policiais no Rio.

O documento foi encaminhado no dia seguinte à morte de Ágatha à alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michele Bachelet, e à Relatoria Especial sobre Execuções Sumárias e Extrajudiciais. A organização recebeu a denúncia às vésperas da participação do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU. “A morte de Ágatha é mais uma tragédia diretamente relacionada à política bárbara de segurança pública que está sendo conduzida pelo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Existe uma situação humanitária drástica imposta pelo governador aos bairros pobres e negros do Rio”, aponta a denúncia.

Os movimentos de favelas cariocas pediram ao Alto Comissariado da ONU uma resposta pública e incisiva cobrando o Brasil e Witzel sobre “as violações dos direitos humanos nas favelas do Rio”. A carta também pede que apontem que Witzel violou obrigações de direito internacional ratificadas pelo Estado brasileiro.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, deputado Helder Salomão (PT-ES), enviou informações sobre a morte de Ágatha à relatora especial das Nações Unidas para execuções extrajudiciais, Agnes Callamard. O documento critica a política de segurança adotada pelo governador fluminense e o projeto sobre excludente de ilicitude, prevista no pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, que tramita no Congresso Nacional. “A gente não pode assistir à morte de uma criança e achar que isso é normal. Vamos acionar os órgãos responsáveis. Este modelo de segurança pública não combate apenas o crime”, alertou o parlamentar em uma rede social.

Comentários