OPINIÃO

As ideologias reformistas na educação e o impacto nas juventudes

Por Gabriel Grabowski / Publicado em 4 de fevereiro de 2021
"A noção de trabalho atrelada a uma carreira vitalícia deixou de existir e, o que importa agora é a inovação, flexibilidade, empreendedorismo e uma constante disponibilidade para aprender novas habilidades"

Foto: Divulgação

“A noção de trabalho atrelada a uma carreira vitalícia deixou de existir e, o que importa agora é a inovação, flexibilidade, empreendedorismo e uma constante disponibilidade para aprender novas habilidades”

Foto: Divulgação

“Pelos próximos dez anos, cerca de 1,2 bilhões de jovens de 15 a 30 anos entrarão no mercado de trabalho e, com os meios que estão agora aos nosso dispor, cerca de 300 milhões deles conseguirão emprego. O que iremos oferecer a esses jovens, a cerca de um bilhão deles? Acho que este é um dos maiores desafios se quisermos alcançar um desenvolvimento tranquilo e dar esperança para esses jovens” (MARTTI AHTISAARI, ex-presidente da Finlândia e laureada com o prêmio Nobel da Paz).

A epígrafe acima e o artigo Os riscos de ser jovem e negro no Brasil evidenciam que a correlação entre a Vida, o Trabalho e a Educação é mais profunda e ampla do que a mera formação/qualificação dos jovens para sua inserção no mercado de trabalho.

Logo, não serão meras reformas educacionais ou curriculares que permitirão aos jovens empobrecidos transpor as estruturas econômicas, tecnológicas e de mercado de trabalho apenas pelo esforço, mérito ou qualificação individual.

Na nova ordem econômica, a noção de trabalho atrelada a uma carreira vitalícia deixou de existir e, o que importa agora é a inovação, flexibilidade, empreendedorismo e uma constante disponibilidade para aprender novas habilidades.

Porém, o trabalho é tanto atividade econômica quanto cultural, devendo ser, uma forma de ganhar a vida e uma fonte de reconhecimento e estima social.

Mas, essas ideologias reformistas e meritocráticas na educação estão a induzir pensamentos sobre quem merece o que e a deteriorar a dignidade do trabalho enquanto criador de Vida. Essas ideias são moralmente indefensáveis.

As reformas do “novo” Ensino Médio (EM), a BNCC do EM e as Novas Diretrizes Nacionais para Educação Profissional e Tecnológica (Res. CNE/CP nº 01/2021) buscam, no entender dos especialistas reformistas atuais, “atender as necessidades dos jovens que hoje concluem essa etapa sem que a escola lhe de uma identidade social por meio de uma profissão”.

Em artigo “Fundeb é oportunidade de trabalho para jovens”, eles defendem que uma inserção qualificada dos jovens no mundo produtivo evita a precarização do trabalho juvenil e, também, torna a escola agente efetivo de transformações na vida dos estudantes (Folha de S. Paulo, 05/12/2020).

Se fosse tão simples assim, o que justifica então o desemprego, o trabalho informal e intermitente de tantos milhões de jovens formados e qualificados, tanto no Brasil como no mundo?

Fragmentação e exclusão de jovens

Essas novas diretrizes para a educação básica vêm completar o conjunto de instrumentos legais e normativos que instituem a contrarreforma do Ensino Médio, desencadeada a partir da MP 746/2016, convertida na Lei nº 13.415/2017.

Segundo a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) a contrarreforma do ensino médio pode ser sintetizada pelo direcionamento a uma completa fragmentação da etapa final da educação básica, privando os jovens-adolescentes pobres da escola pública do acesso aos conhecimentos produzidos e acumulados pela humanidade.

E, ao mesmo tempo, promove sua privatização via parceria público-privado que, na prática, transfere recursos públicos à iniciativa privada para que ela, de um lado, defina a concepção de ensino e, de outro, oferte ou gerencie (administre, avalie e controle) a educação que será proporcionada à população.

Desta forma, expressões e conceitos do referencial crítico, como “trabalho como princípio educativo”, “pesquisa como princípio pedagógico”, “formação humana integral”, “integração entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura como eixos estruturantes da formação humana”, “mundo do trabalho”, presentes nas normas do próprio CNE de 2012, são substituídas por expressões e conceitos próprios do pensamento ideológico reformista neoliberal, como “competências para a laborabilidade”, “empreendedorismo”, “protagonismo”, “competências socioemocionais”, “empregabilidade”, “projetos de vida”, “itinerários formativos”, “mercado de trabalho”, dentre outros.

Configura-se, assim, uma proposta de educação subordinada aos interesses do mercado, fortalecendo, portanto, a educação para o mercado e o mercado da educação.

A disputa pelo controle da formação dos jovens tem se apresentado na história da educação brasileira de diversas formas, sendo a do ensino médio e o acesso ao ensino superior as mais intensas. Nas últimas cinco décadas (desde 1970), diversas propostas e ideologias reformistas foram testadas – sendo que a grande maioria fracassou –, mas, continuamos produzindo descontinuidades de políticas educacionais de Estado e promovendo reformas isoladas do contexto social dos estudantes e, o mais grave, sempre culpabilizando a escola, os professores e os próprios jovens pela falta de engajamento.

Sabe-se que não cabe somente às políticas educacionais, muito menos a reformas curriculares, o poder de gerar trabalho, renda e empregos aos jovens. Desenvolvimento social, econômico e geração de trabalho derivarão de projetos de nação e de macro políticas em que a educação seja parte. Portanto, atribuir às escolas, a escolaridade e profissionalização dos jovens a responsabilidade pela inserção social e laboral é, no mínimo, desonestidade intelectual e falseamento da realidade, ou seja, reformismo ideológico.

Contrarreformas e naturalização das desigualdades

Referência em educação estatal, gratuita e universal no mundo, a Finlândia não se rendeu às reformas do ensino ditadas pelo mercado

Foto: Reprodução

Referência em educação estatal, gratuita e universal no mundo, a Finlândia não se rendeu às reformas do ensino ditadas pelo mercado

Foto: Reprodução

Essas ideologias se apresentam de várias formas. Destaca-se, entre elas, as recorrentes contrarreformas de cada novo governo, atribuindo culpabilidade pelo fracasso aos próprios sujeitos da educação.

Desta forma, o Estado, a sociedade e o próprio mercado eximem-se da sua responsabilidade pela crise educacional. A ideia de que a educação é solução principal para problemas sociais fortalece e promove a ideologia da meritocracia. Isto faz com que as pessoas fiquem mais propensas a aceitar a desigualdade e acreditar que o sucesso é reflexo do mérito.

Nessa perspectiva, se a educação for considerada uma responsabilidade própria de cada jovem estudante, eles serão menos críticos em relação à desigualdade social que resulta de diferenças na formação educacional. E, no caso brasileiro, o ensino médio, que sempre “foi a pedra de toque da desigualdade social expressa na desigualdade educacional” (Jamil Cury). Assim, essas reformas no ensino médio não podem contribuir para camuflar as causas efetivas das diversas desigualdades que impactam as vidas, os projetos, a profissionalidade e a sua formação.

Com falsas promessas de que os jovens poderão escolher o que estudar, quais áreas e itinerários mais se identificam, essas contrarreformas se desvinculam dos contextos de crises econômicas e financeiras, crises sociais e políticas, bem como das desigualdades de mercado, que impactam na vida e na inserção dos jovens no mundo do trabalho.

Elas propõem a profissionalização através do 5º itinerário técnico profissional, a estruturação de projetos de vida individuais, o empreendedorismo e o desenvolvimento de competências socioemocionais como caminhos para suportar a imprevisibilidade de Vida e Trabalho.

O direito a uma educação de qualidade é deliberadamente negado às diversas gerações de jovens no Brasil, historicamente. E persiste.

Segundo a Pnad Contínua do IBGE – módulo educação 2019 –, mais da metade das pessoas de 25 anos ou mais (69,5 milhões) não completaram o ensino médio no Brasil. A pesquisa demonstra que das 50 milhões de pessoas de 14 a 29 anos do país, 20,2% (ou 10,1 milhões) não completaram alguma das etapas da educação básica.  Deste total, 71,7% são pretos ou pardos.

No Brasil, há atualmente, cerca de 10 milhões de jovens entre 15 e 17 anos. No entanto, 1,5 milhão de jovens sequer se matricula no início do ano letivo; apenas 8,8 milhões de jovens matriculam-se e, deste total, outros 0,7 milhão abandonam a escola antes do final do ano letivo.

Como resultado desta elevada evasão e abandono, apenas 6,1 milhões de jovens entre 15 e 17 anos (59% do total) concluem a educação média com, no máximo, um ano de atraso.

Chama a atenção que, entre as principais causas para a evasão escolar, as mais apontadas, foram: a necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse (29,2%). Entre as mulheres, destaca-se a gravidez (23,8%) e os afazeres domésticos (11,5%). Nossos estudantes são jovens trabalhadores que precisam gerar renda e cuidar de sua sobrevivência antes de estudar.

Políticas públicas em extinção

As escolas da rede pública de ensino são responsáveis por 87,4% das matrículas do ensino médio. Porém, na graduação, a rede privada possui 75,8%; e, na pós-graduação, 74,3%. Logo, o acesso ao ensino superior depende de renda ou de políticas públicas de apoio estudantil que estão em extinção no Brasil desde 2015. A rede pública ainda é responsável por 74,7% dos alunos na creche e pré-escola e 82,0% no ensino fundamental. Esta escola pública está sendo desmontada com a redução de investimento, com o teto gastos e com o descumprimento ilegal das metas do PNE 2014-2024.

Essa realidade de exclusão e abandono escolar de jovens-adolescentes requer um projeto estrutural de escola pública, universal, para todos, com investimentos nas condições de ensino, formação e valorização dos professores, escuta e participação dos estudantes. A escola deve ser um espaço de vida, de cultura, de formação integral, de cidadania e democracia, de alegria e de fazer amigos.

E, a formação educacional, corroborando o pensamento de Michael Sandel, não deve “apenas equipar estudantes para o mundo do trabalho, mas também preparar as pessoas para que sejam seres humanos moralmente reflexivos e cidadãos democráticos efetivos, capazes de deliberar sobre o bem comum”.

A dignidade do trabalho é um bom ponto de partida. Um projeto político que reconheça a dignidade do trabalho deve usar o sistema tributário para reconfigurar a economia da estima, desencorajando a especulação e honrando o trabalho produtivo.

Meritocracia e juvenicídio

A era da meritocracia e da deteriorização da dignidade do trabalho está levando muitos jovens e trabalhadores a desistir da própria vida com o aumento de “mortes por desespero”, termo cunhado por Anne e Case e Angus Deaton, economistas de Princeton. Eles identificaram que, de 2014 a 2017, apesar dos avanços das ciências médicas, taxas de mortalidade subiram devido a uma epidemia de mortes por suicídios, overdose de drogas e doenças hepáticas relacionadas ao alcoolismo, autoinfligidas.

Políticas educacionais são necessariamente ligadas a outras políticas sociais e à cultura geral de uma nação. A educação enquanto bem público tem grande função no desenvolvimento de uma nação.

A título de exemplo, o sucesso do sistema finlandês não foi infectado pelos modelos de reforma educacionais baseadas no mercado, tais como concorrência entre escolas, padronização de ensino e políticas de testes. Foram os professores, o ensino e os estudantes, os principais elementos que fizeram a diferença.

Neste Brasil que pratica o juvenicídio com dezenas de milhares de vidas a cada ano (sem políticas de proteção, trabalho e renda), a primeira e principal função da educação e da escola é acolher todos os jovens. E, com eles, promover a resistência pedagógica formativa do valor da Vida – todas vidas importam –, do direito e dignidade do Trabalho e da construção de conhecimento emancipador.

 

Gabriel Grabowski é professor e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

Comentários