OPINIÃO

O vírus nos desmascarou

Por Moisés Mendes / Publicado em 27 de setembro de 2021

Foto: Pexels

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Apesar de ser um estrategista inteligente, implacável e devastador, o coronavírus não pode falar. Se pudesse, o vírus diria na nossa cara que a pandemia não expôs as entranhas do caráter apenas de nossos pretensos adversários, inimigos ou desafetos.

A pandemia denunciou o que são muitos dos que estão no nosso entorno, em todos os lugares. Cidadãos que vieram do século 20 para o 21 como conservadores agora são militantes de ideias fascistas.

Por isso se enganam os que pensam que o mundo viu Bolsonaro na ONU como um caso pessoal e político de excrescência humana.

O mundo viu um sujeito eleito, que ainda se mantém com o apoio de pelo menos 25% da população, principalmente da classe média que concentra os mais machos, os mais ‘empreendedores’ e pretensamente os mais estudados.

A ONU viu o homem do discurso negacionista como um líder com mandato, com representação assegurada pela democracia e com legitimidade institucional, como sendo a cara do Brasil.

Bolsonaro prepara as comemorações dos mil dias de governo, que são a expressão do que ele é e do país que o elegeu. Ah, dirão, mas Bolsonaro não é tudo isso nem se reelege mais.

Talvez não, talvez se transforme numa figura sem rumo e sem alma, depois de deixar o governo, por impeachment ou por derrota na eleição.

Mas, por enquanto, ele é o Brasil. Bolsonaro não é um déspota avulso, que chegou ao poder pela imposição da força. Chegou pelo voto e ainda fala em nome do seu povo.

O que a ONU mostrou em Nova York foi a face do Brasil que ainda convive com Bolsonaro com certa passividade. Não há, concretamente, nada que indique que o governo de Bolsonaro possa ser abreviado.

Não há nenhum sinal de que as instituições, apresentadas a centenas de denúncias de crimes cometidos na pandemia, possam expelir Bolsonaro do poder. Porque é tudo dito, mas não formalizado.

Não há nenhuma evidência de que o Congresso, por ação política, possa se livrar de Bolsonaro para que as elites fiquem à vontade para fortalecer um nome da terceira via.

Não existe nada que nos assegure que haverá a desistência dos militares, no sentido de saltar fora do governo para salvar o que ainda resta da imagem das Forças Armadas.

Não há, pelo que revelam as pesquisas, nenhuma indicação de degradação política ou de vacilo do centrão capaz de interromper os projetos de Bolsonaro.

Por isso, o perfil da pandemia se mantém inalterado, com a sabotagem à vacinação e ao uso da máscara e a persistente exaltação da cloroquina.

O que Bolsonaro faz atende a esses 25% que, junto com ele, detêm o poder e mantêm a maioria discordante ainda silenciosa e sob controle.

Ninguém conseguiria explicar aos que viram o discurso na ONU que Bolsonaro é um líder descolado dos que o elegeram para exercer essa liderança.

Bolsonaro fez pela imagem do Brasil na ONU o que o maior inimigo do país não conseguiria fazer. O Brasil é o que Bolsonaro desejou ser no poder por pelo menos quatro anos.

Foi ele quem tirou as máscaras para mostrar quem também somos, e não há conserto imediato capaz de reparar tanto estrago.

Os cenários devastadores provocados pela peste negra e pelas pandemias de cólera, tuberculose, varíola, gripe espanhola, tifo, que mataram milhões de pessoas, tinham o atenuante de que aconteceram em momentos em que a ciência da saúde ainda era precária.

Hoje, com ciência em abundância, o fundamentalismo combate tudo o que pode combater a morte. O Bolsonaro que andou sem máscara por Nova York é a expressão desse absolutismo exibicionista que nega a ciência.

São assim os nossos parentes, amigos, colegas, vizinhos que se comportam como Bolsonaro, em nome de religiões ou de qualquer desculpa, crueldade ou ignorância.

O Bolsonaro da ONU somos nós. Não há nem a desculpa de que hoje os que o exaltam como líder são minoria. São uma minoria poderosa, capaz de acreditar até que ele ainda pode aplicar um golpe.

Bolsonaro, os bolsonaristas e os omissos diante de seus crimes são parte da composição do retrato do que é o Brasil. Esse é hoje o nosso retrato exposto na ONU.

Bolsonaro sozinho não explica o país, assim como Trump não explicaria os Estados Unidos e Hitler não dava conta do que era a Alemanha. Mas nenhum deles teria existido sem o consentimento dos que os levaram e os mantiveram no poder.

A pandemia só exacerbou o que somos. Muitos já escreveram que hoje é vergonhoso ser brasileiro, até porque a vergonha é provocada por milhões de outros brasileiros, e não só por Bolsonaro.

Temos vergonha das pessoas que nos cercam e escondiam o que eram até a ascensão de Bolsonaro em meio a uma pandemia. Bolsonaro capta, condensa e agrega ódios, ressentimentos, preconceitos, desatinos, vinganças, desinformação e mentira.

A pandemia expôs o que, sem a peste, poderia até ficar meio encoberto num país degradado pela miséria moral. O coronavírus nos desmascarou.

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