POLÍTICA

O código de defesa do eleitor em pauta

Por Renato Dalto / Publicado em 30 de março de 2006

O ringue eleitoral de 2006 acena com sangue, suor e promessas em nome da ética e do combate à corrupção. A isca para atrair votos deve ser algo que o sociólogo Flávio Silveira chama de beatificação da política. “Essa é a estratégia de marketing comum, todos são santos, puros e honestos”, opina. Mas do outro lado da linha podem existir ouvidos cansados com essa ladainha. E cada promessa pode já não ser mais apenas palavra que some da memória. No final de 2005, o presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, recebeu das mãos do advogado Percival Maricato, coordenador do Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE), a proposta de um Código de Defesa do Eleitor. A proposta, que começa a tramitar neste início de ano na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, terá como relatora a deputada federal Luiza Erundina (PSB), e promete acender um debate que, mais do que eleitoral, permeia o próprio sentido da democracia.

Flávio Silveira, diretor da Meta Instituto de Pesquisa, vem constatando, através de pesquisas qualitativas, o crescente aumento do descrédito dos eleitores em relação aos políticos. Um descrédito que, para ele, chega às raias da aversão. “Muitas pessoas são consultadas sobre algum tema político e simplesmente nem querem falar sobre isso.” O pano de fundo é a crise política do governo Lula e a suspeita de corrupção em altos escalões do governo. Há um sentimento de frustração. Mais do que isso. “Há um sentimento de impotência”, constata Silveira.

Esta, claro, é uma leitura basea-da no eleitor médio, um eterno refém, que a cada dois anos é chamado a votar como quem assina um cheque em branco, referendando uma prática que abre várias janelas para o viés autoritário. “Temos a tradição de que o Estado deve controlar a sociedade, quando é ao contrário; a sociedade é que deve controlar o Estado”, afirma Francisco de Assis da Silva, diretor da regional Sul da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong). Assim, a proposta do PNBE está no sentido de criar uma espécie de inte-ratividade e fiscalização permanente entre as instituições e a sociedade.

Pela proposta, deverão ser criados portais obrigatórios, completos e atualizados, de órgãos legislativos, justiça eleitoral e de acesso ao controle de informações pela sociedade civil. Estas informações se estendem a parlamentares, que devem informar seus eleitores sobre projetos de lei e suas atividades. A aplicação do código será feita através do Sistema Público de Acompanhamento e Controle. Este sistema será composto por representantes da Justiça, do Ministério Público, da Câmara e do Senado Federal, de entidades Abong, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras instituições.

Também serão estabelecidas normas de fidelidade partidária e a previsão de punições enérgicas para candidatos, autoridades, doadores e eleitores que se envolverem em práticas escusas. “A principal idéia do código é proteger a democracia e fazer com que a sociedade civil tenha uma atitude muito mais interativa com a atividade política”, anuncia Percival Maricato, coordenador do PNBE, advogado com larga experiência em defesa da cidadania e o uso, entre outras leis, do Código de Defesa do Consumidor. Este código, segundo ele, será até benéfico para os bons políticos. “Eles terão uma forma de divulgar suas ações e estabelecer um contato direto com os eleitores”, avalia.

Há ainda outras propostas de controle do poder público. Uma delas foi encaminhada pela Abong junto ao Conselho de Transparência e Combate à Corrupção, que funciona junto à Controladoria Geral da União. Trata-se do Sistema Nacional de Controle da Gestão Pública. “Este sistema abre a perspectiva de a sociedade civil fiscalizar o governo”, diz Francisco de Assis da Silva.

Um sistema de proteção na web

Para conhecer na íntegra a proposta do Código de Defesa do Eleitor, é só acessar o endereço eletrônico na internet em www.pnbe.org.br. A internet tem servido, aliás, de importante instrumento de troca de informações e acesso a instituições públicas, traçando uma espécie de serviço em rede de proteção ao eleitor. É interessante também visitar alguns institutos de defesa da cidadania, como o Ethos (ethos.org.br) e o Ágora (institutoagora.org.br).

Quem quiser saber quanto se gastou nas últimas eleições municipais, visite o site www.transparencia.org.br e se depare com um número gigantesco que bate na casa de R$ 1,3 bilhão. Ali estão também outras pesquisas sobre gastos com eleições, compra de votos, ações públicas e informações aos cidadãos.

Outras informações e ações de cidadania podem ser encontradas na internet, no site www.avozdocidadao.com.br. Ou a ação da Ong Cidade no Orçamento Participativo de Porto Alegre através do endereço www.ongcidade.org. Mas além desses endereços há uma infinidade de outros de entidades em defesa do eleitor ou mesmo organizações que pregam abertamente o voto nulo. Cabe a cada um navegar em busca de esclarecimentos e valorizar o voto.

E eleitor visto como consumidor

O eleitor virou um consumidor, embalado por uma fórmula que o jornalista Paulo Cezar da Rosa, autor do livro O marketing e a comunicação da esquerda chama de “O McDonald’s da política”. E constata que neste jogo todos perdem: o eleitor, os partidos e a democracia. “A cultura política brasileira pré-1964 seguia a tradição européia, onde a propaganda política era a divulgação dos ideais partidários. Depois da ditadura militar, instala-se um sistema de comunicações moderno, e determinados códigos de compreensão da linguagem televisiva instalam o padrão norte-americano.” Ou seja, “esta é uma linguagem superficial, profundamente despolitizada e antidemocrá-tica, porque verticaliza a relação com o eleitor”, constata.

Com os novos recursos de comunicação pode-se, por exemplo, estabelecer uma relação de maior interatividade com os eleitores. O isolamento traduzido por essa linguagem televisiva está presente no próprio embrião da crise do governo Lula. Como diz Francisco de Assis da Silva, “um pequeno grupo confundiu um projeto de poder com um projeto de sociedade”. Assim, a linguagem pode ser um instrumento pragmático para ganhar uma eleição. Pode significar poder a curto prazo, mas, se não se tornar prática, vira isolamento e frustração.

“Há ceticismo e frustração das pessoas, mas quem está atuando no dia-a-dia, tomando iniciativa, sabe que muita coisa está mudando”, afirma a socióloga Ângela Quin-tanilha Gomes. Frágil e jovem, a democracia brasileira vai impondo suas lições. “No futuro, quem quiser se comunicar de uma forma transformadora, precisa de uma prática horizontal e não vertical, ouvir as pessoas e não escutá-las apenas no momento das pesquisas”, enfatiza Paulo Cezar. As pesquisas qualitativas, que ouvem grupos de eleitores e, a partir de suas demandas, elaboram propostas, significam o varejo da política e a morte das idéias. Os programas são feitos para responder ao senso comum. Têm as mesmas pautas, as mesmas demandas, os mesmos objetivos: ganhar uma eleição a qualquer custo. E com o cheque em branco na mão, quem está no poder só vai pensar no eleitor na próxima eleição.

Compra de eleitores é comum no Sul do país

A defesa do eleitor também vem se delineando em contornos bem acentuados especialmente na internet, através de sites, instituições e Ongs, que têm criado uma espécie de rede onde palpitam denúncias, análises, pesquisas e uma série de informações. Por exemplo: a prática perversa da compra de votos nas eleições municipais de 2004 foi mapeada em todo o território nacional através de uma pesquisa feita pelo Ibope por encomenda da Transparência Brasil numa amostragem de 143 municípios. Uma média de 9% dos eleitores responderam que receberam oferta de dinheiro ou algum bem material em troca do voto. E a região Sul foi a que registrou maior intensidade nesta prática, com um percentual de 12%.

A persistência deste tipo de prática também tem mostrado que o voto vale muito pouco. Mas não falta esforço para que ele seja valorizado. O trabalho desenvolvido pelo publicitário Jorge Maranhão através do portal “A Voz do Cidadão” se multiplica através de programas nas rádios CBN e Globo, site, boletins e livros de auto-ajuda da cidadania, na tentativa de informar e debater sobre questões do Estado que interferem na vida das pessoas. “Criei este portal a partir de uma constatação prosaica: tenho duas filhas e percebi que, se não interferisse na educação delas, ficariam impregnadas pela visão que a elite tem do próprio país e isso seria muito ruim”, revela Maranhão. Nesse trabalho, busca o que denomina de chama de essência da cidadania: “A consciência dos direitos civis e coletivos”.

Entretanto, não há melhor defesa para o eleitor do que exercer seus direitos de cidadão. É assim que, desde 1988, a Ong Cidade, de Porto Alegre, desenvolve um trabalho de assessoria a movimentos populares e atua junto a uma prática que virou referência mundial de participação, o Orçamento Participativo. “Procuramos dar aos movimentos um acesso amplo às informações de uma forma qualificada, para que eles possam agir”, explica a socióloga Ângela Quintanilha Gomes, ativista da Ong. Também, a cada ano, elaboram uma lista com os vereadores que acrescentam emendas ao Orçamento. “É legítimo eles apresentarem essas emendas, mas, ao repassar essas informações, também identificamos os vereadores que estão passando por cima das demandas populares”, afirma. E assim, a informação e a participação fazem do voto uma arma dinâmica, e, da democracia, um exercício de rotina. Decidir bem-informado é sempre mais seguro.

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