POLÍTICA

Lideranças e juristas denunciam discriminação contra religiões afro no Brasil

E asseguram que o embaixador Fabio Marzano cometeu crime de responsabilidade ao declarar que uma das mudanças do governo Bolsonaro foi colocar a religião no processo de formulação de políticas públicas
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 11 de dezembro de 2019
Caminhada em defesa da liberdade religiosa, em setembro de 2017, na praia de Copacabana, no Rio

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Caminhada em defesa da liberdade religiosa, em setembro de 2017, na praia de Copacabana, no Rio

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Um manifesto que defende a liberdade de crença e se posiciona contra a perseguição aos cultos afro-brasileiros no país está sendo organizado por grupos ligados a diferentes religiões e juristas. Até uma organização que representa pensamentos de ateus aderiu ao documento que é uma resposta a declaração do embaixador Fabio Marzano, secretário de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania, que em evento na Hungria, no último dia 28 de novembro, afirmou que uma das principais mudanças da administração Bolsonaro no país foi colocar a religião no processo de formulação de políticas públicas. O documento é categórico: um crime de responsabilidade foi cometido.

Embaixador Fabio Marzano (E), secretário de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania, afirmou em evento na Hungria, em novembro que uma das principais mudanças da administração Bolsonaro foi a inserção da religião nas políticas públicas

Foto: Divulgação

Embaixador Fabio Marzano (E), secretário de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania, afirmou em evento na Hungria, em novembro que uma das principais mudanças da administração Bolsonaro foi a inserção da religião nas políticas públicas

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No país governado pelo primeiro-ministro de ultradireita Viktor Orban, Marzano ainda foi mais longe e disse que a ameaça contra o cristianismo ainda existe e é necessário incluir a possibilidade de converter aqueles que não têm religião.

No Brasil, as religiões de origem africana são as mais discriminadas e atacadas: entre 2017 e 2018, ano da eleição de Bolsonaro, foram registrados 6 mil ataques a centros de umbanda e templos de outras religiões, somente no estado de São Paulo.

Ateia e considerada uma “intelectual de peso” entre os divulgadores do manifesto pela liberdade de crença, a professora Fernanda Carlos Borges, coordenadora do grupo Filosofia em Movimento, diz que “atacar a memória religiosa africana é atacar um conhecimento constitutivo do povo brasileiro, atacar em nome do cristianismo é destruir a moral cristã do amor. Atacando as religiões afro-brasileira, os pseudocristãos destroem a si mesmos”.

No Brasil as religiões de origem africana são as mais discriminadas e atacadas: entre 2017 e 2018, ano da eleição de Bolsonaro, foram registrados 6 mil ataques a centros de umbanda e templos de outras religiões, somente no estado de São Paulo

Carla Rocha Pavão, do Coletivo de Estudos Espiritismo e Justiça Social (Cejus), endossa o manifesto. “Na espiritualidade plural existe um caminho possível de liberdade e autonomia para todos os seres humanos”. Para ela, “é tempo de resistência contra esses falsos profetas que, em nome de um Jesus materialista promove matanças e genocídios com a bíblia nas mãos”. Ela explica que o Cejus entende os simbolismos históricos das perseguições às religiões de matriz africana em uma sociedade com resquícios de uma recém abolida escravidão. “Na qualidade de espíritas progressistas, prezamos pela igualdade de crenças e acolhermos todos aqueles que têm sede e fome de justiça”, afirma. .

Dora Incontri: defesa da liberdade plena

Foto: Divulgação

Dora Incontri: defesa da liberdade plena

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Dora Incontri, coordenadora da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita (ABPE) e da Universidade Livre Pampédia, afirma que a ABPE assina “com entusiasmo esse manifesto em defesa da liberdade plena e do respeito completo às manifestações das correntes afro-brasileiras, tradicionalmente discriminadas e perseguidas, no longo histórico de escravização e apartheid social que as populações afro sofreram no Brasil”. Dora, que é jornalista, escritora e doutora em Educação, ressalta que a ABPE tem militado há muitos anos em favor do diálogo inter-religioso e a da liberdade de crença e de não crença, “do pluralismo de pensamento e do respeito à rica diversidade cultural brasileira” e, por isso, avalia o apoio às reivindicações e apontamentos do manifesto como “nada mais justo e necessário”.

Bezerra, da Diocese de São Miguel Paulista: contra os puxadinhos de templos

Foto: Divulgação

Bezerra, da Diocese de São Miguel Paulista: contra os puxadinhos de templos

Foto: Divulgação

Ao tomar conhecimento do manifesto, o sacerdote católico Paulo Sérgio Bezerra, da Diocese de São Miguel Paulista, entende que a iniciativa é extremamente válida por evidenciar o respeito e promoção da diversidade cultural e religiosa e “ao denunciar os ‘puxadinhos de templos’ para dentro das estruturas de governo.

Para o padre Bezerra, não menos importante é que o documento evidencia que perseguição religiosa, violência contra religiões de matriz africana, em suas palavras “desde muito tempo demonizadas por segmentos religiosos hegemônicos” é um crime. Bezerra acha um absurdo que alguém, defendendo o governo Bolsonaro na sua “obsessão de colocar a religião no processo de formulação de políticas”, chegue a sugerir o proselitismo de converter ateus e agnósticos. “O tempo da história urge não reproduzir supremacias religiosas. O tempo da história grita por respeito, dignidade, convivência e promoção de toda a humana e rica diversidade religiosa, cultural, étnica, política e social”, diz Bezerra. O religioso lembra que o Papa Francisco tem se empenhado para construir pontes ecumênicas “através das quais o diálogo vença toda tentativa globalizada de ‘colonização’ do pensamento, da cultura, da busca do Sagrado”.

Crime de responsabilidade

Para o advogado Édio Jr. é evidente a pessoalização da gestão pública por Bolsonaro

Foto: Divulgação

Para o advogado Édio Jr. é evidente a pessoalização da gestão pública por Bolsonaro

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O manifesto, que está na fase de redação final e deve ser divulgado oficialmente nesta quinta-feira, 12, sustenta que as declarações do embaixador Fabio Marzano configuram crime de responsabilidade. De acordo com o advogado Hédio Silva Jr., ao expressar em um evento internacional o pensamento do presidente da República, provas foram produzidas pelo embaixador.

Um dos organizadores do documento, Silva Jr. é doutor e mestre em Direito pela PUC-SP e Coordenador-Executivo do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras (Idafro). Para ele, o texto que será divulgado apresenta horizontes a serem trilhados para a responsabilização do atual governo pelos constantes atentados que estão sendo patrocinados contra as religiões de matriz africana no Brasil. “É evidente a questão da pessoalização da gestão pública, que é proibida pela Constituição”, aponta o advogado. Segundo ele, isso abre brechas inclusive para um impeachment.

Terreiro de Candomblé destruído em Nova Iguaçu, no Rio, em março deste ano

Foto: Reprodução

Terreiro de Candomblé destruído em Nova Iguaçu, no Rio, em março deste ano

Foto: Reprodução

ATAQUES – Concretamente, a visão de mundo do novo Itamaraty, preocupa os signatários do documento, que afirmam que “República laica não quer dizer que o Estado deva ser contra as confissões religiosas, mas sim que este não se subordina nem se confunde com nenhuma religião”. Relatos Brasil afora apontam a proliferação de ataques às religiões afro-brasileiras. Casos estão se agravando ano a ano e contemplam invasões de terreiros, destruição de imagens, incêndios de residências e pichações.

Somente no estado de São Paulo, mais de 6 mil casos foram registrados entre 2017 e 2018, ano da campanha eleitoral para a presidência da República. Apesar dos boletins de ocorrência não especificarem a religião das vítimas, a Secretaria de Justiça do estado afirma que as religiões de matriz africana são os principais alvos.

Ultrapassando as fronteiras, o que está acontecendo no Brasil foi capa do Washington Post no último dia 8, sob o título Evangelical Gangs (Gangs Evangélicas). Em extensa matéria, o jornal norte-americano relata que “Soldados de Jesus” entram atirando nos templos com a seguinte ameaça: “Ninguém quer macumba aqui”.

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