POLÍTICA

O relatório da transição e o que esperar do governo Lula

Desmonte do estado e assédio institucionalizado como método, descaso com educação e profundas mudanças na proteção social, além da revogação e revisão de decretos estão no diagnóstico da transição
Por César Fraga / Publicado em 22 de dezembro de 2022
O relatório da transição e o que esperar do governo Lula

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Gleisi Hoffmann (presidente do PT), a primeira-dama Rosangela da Silva, Luis Inácio Lula da Silva, Geraldo Alckmin e Aluísio Mercadante na apresentação relatório final da transição

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Na manhã desta quinta-feira, 22, o Grupo de Transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, que assume em 1º de janeiro, apresentou o relatório de 100 páginas que mostra um diagnóstico de desmonte do estado, descaso com a educação e destruição dos mecanismos de controle e administração pública, além de sugerir revogação e revisão de normas estabelecidas durante o governo de Jair Bolsonaro.

Entre as muitas políticas a serem afetadas pelas mudanças propostas estão as que abrangem controle de armas; sigilo de 100 anos para documentos suspeitos; frear processos de desestatização de empresas; e medidas que teriam reduzido direitos sociais e econômicos, em especial de grupos em situação de maior vulnerabilidade.

De acordo com o relatório, “a lista de sugestões, de revogações e revisões de atos normativos elencada demonstra o tamanho dos desafios do novo governo eleito, quanto à reconstrução do Estado brasileiro em áreas bastantes sensíveis, cujas políticas públicas são essenciais para a efetivação de direitos da população”. O indicativo é que isso seja feito já nos primeiros dias de governo.

Houve desmonte do estado e assédio institucionalizado como método, diz relatório

Segundo o grupo que elaborou o relatório, foram identificados casos de desmonte de políticas públicas, restrição da participação social, enfraquecimento de mecanismos de controle social e obstrução para o acesso a direitos individuais, sociais e econômicos.

“Essas sugestões serão avaliadas com todo o rigor jurídico e técnico pelos novos ministros e ministras e suas equipes e passarão pela avaliação do novo presidente eleito”, informa o documento.

Na estrutura ocupacional no setor público federal, o assédio institucionalizado, a pre­carização laboral, a redução de pessoal, os sete anos sem reajuste para o funcionalismo tornaram mais precário o serviço prestado à população.

A falta de planejamento impediu a modernização da gestão pública, com o esvazia­mento completo do PPA e suas estruturas e funções de gestão e burocracias correlatas.

Descompromisso com a educação é apontado por relatório

Conforme o Grupo de transição, na educação, o governo Bolsonaro “mostrou seu descompromisso com o futuro. Cortou deliberadamente recursos, não contratou a impressão de livros didáticos, colocando em risco a qualidade do ano letivo em 2023. E contribuindo para am­pliar a evasão escolar que cresceu com a pandemia, o governo Bolsonaro congelou durante quatro anos em R$ 0,36 centavos por aluno a parte da União para a me­renda escolar”.

Emergências orçamentárias

“O período 2016-2022 foi marcado por uma forte deterioração nas finanças públicas e no orçamento, a irresponsabilidade do atual governo culminou em um apagão fiscal no final de 2022 e em uma proposta orçamentária para 2023 incapaz de garantir a manutenção dos serviços públicos essenciais e o funcionamento da máquina pública. Enfrentar esse cenário adverso foi parte do processo de transição governamental”, assinala o Grupo da Transição.

No documento, a equipe detalhou a sugestão de distribuição dos R$ 145 bilhões resultados do aumento do teto de gastos, com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição.

“A Coordenação da Transição enviou para o relator do orçamento as sugestões de ampliação das programações, buscando concentrar as demandas em despesas capazes de induzir a retomada do crescimento econômico com inclusão social, sendo dotadas de elevados efeitos redistributivos e multiplicadores sobre a renda. As despesas adicionais são fortemente inclinadas a gastos sociais, investimentos e Ciência e Tecnologia. Ademais, consideram a recomposição de orçamento para permitir o funcionamento do Estado em áreas cruciais”, diz o documento da transição.

No último dia 21, o Congresso Nacional promulgou a PEC, que passa a fazer parte da Constituição por meio da Emenda Constitucional 126 de 2022. Para a equipe de transição, a medida aponta para a “necessidade de revisão e reconstrução das instituições e normas fiscais e orçamentárias do país, combinando estabilização econômica, sustentabilidade fiscal e redução das desigualdades”.

Instituído em 2019, o regime do teto de gastos limita o aumento das despesas do governo à inflação do ano anterior. “Na prática, mesmo diante de qualquer nível de crescimento real do PIB, a regra implica numa redução da despesa primária em relação ao tamanho da economia, e também independente do comportamento da arrecadação”, diz o relatório.

Do total dos recursos, a equipe sugere a seguinte distribuição, a ser incluída na Lei Orçamentária Anual, aprovada pelo Congresso Nacional depois da divulgação do relatório

Ministério da Cidadania – R$ 75 bilhões, sendo que R$ 70 milhões serão para custear o Auxílio Brasil (que voltará a se chamar Bolsa Família em 2023) de R$ 600 com um adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos.

Ministério da Saúde – R$ 22,7 bilhões, incluindo recursos para o programa Farmácia Popular

Ministério da Educação – R$ 10,8 bilhões

Ministério do Desenvolvimento Regional – R$ 9,5 bilhões

Para o reajuste do salário mínimo – R$ 6,8 bilhões

Encargos Financeiros da União – R$ 5,6 bilhões

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações – R$ 4,9 bilhões

Ministério do Turismo – R$ 3,7 bilhões

Ministério da Economia – R$ 1,7 bilhões

Ministério da Defesa – R$ 1 bilhão

Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – R$ 933,9 milhões

Ministério da Justiça e Segurança Pública – R$ 799,9 milhões

Ministério do Meio Ambiente – R$ 536 milhões

Ministério do Trabalho e Previdência – R$ 400,6 milhões

Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – R$ 250 milhões

Ministério das Comunicações – R$ 126,4 milhões

Presidência da República – R$ 35 milhões

Banco Central do Brasil – R$ 10 milhões

Reverter desaceleração

Segundo o documento, do ponto de vista macroeconômico, a despesa prevista está concentrada em gastos que podem reverter a expectativa de desaceleração da economia. “Ademais, a PEC evita uma queda abrupta do gasto como proporção do PIB, apontando para a manutenção dos patamares de despesa para 2022 e impedindo uma contração fiscal significativa, que reforçaria o cenário indesejável de desaceleração da economia”, diz a transição.

A equipe destaca que, sem os R$ 145 bilhões viabilizados pela PEC, “a população sofreria uma precarização adicional dos serviços públicos”. O diagnóstico também aponta que vários desses serviços sofreram queda acentuada de recursos desde 2015.

Entre os exemplos citados pela equipe, de redução entre o Orçamento de 2022 e o projeto enviado pelo atual governo ao Congresso para 2023 estão o benefício do Auxílio Brasil de R$ 600 para R$ 405; a construção de escolas de educação infantil de R$ 111 milhões para R$ 2,5 milhões; o Apoio a Obras Emergenciais de Mitigação para Redução de Desastres de R$ 2,57 milhões para R$ 25 mil; a saúde indígena de R$ 1,49 bilhão para R$ 610 milhões; a aquisição e distribuição de alimentos da agricultura familiar de R$ 679,5 milhões para R$ 2,67 milhões.

Política de armas e sigilo de 100 anos

O relatório sugere a revogação de oito decretos e uma portaria interministerial “que incentivam a multiplicação descontrolada das armas no Brasil, sem fiscalização rigorosa e adequada”, o que, na avaliação do grupo, coloca em risco a segurança das famílias brasileiras.

A ideia é alterar a política pública de controle das armas no país, apresentando uma nova regulamentação para a Lei 1.0826 de 2003. o Estatuto do Desarmamento.

O grupo propôs também a revisão de atos que impuseram “sigilo indevido de 100 anos em documentos de acesso público” pelo governo atual “para impedir o conhecimento público” de diversos documentos.

Entre as medidas propostas para essa revisão específica está a determinação, via despachos presidenciais, para que a Controladoria-Geral da União reavalie “casos denunciados”; e para que a Advocacia-Geral da União elabore “proposta de Parecer Vinculante que indique o escopo de aplicação possível da atual redação da Lei de Acesso à Informação relativa à proteção de dados pessoais”.

Desestatização, cultura e participação social

O documento a firma que “o programa de desestatização caracterizou-se por decisões erráticas que implicaram em: desnacionalização patrimonial e perda de soberania nacional; desarticulação dos investimentos públicos indutores e multiplicadores dos investimentos privados e do próprio crescimento econômico. Os consumidores de energia elétrica poderão pagar uma conta que pode chegar a R$ 500 bilhões nos próximos anos, em razão de uma série de ações tomadas pelo governo Bolsonaro no setor elétrico”.

O Grupo de Transição propõe que Lula revogue atos que pretendiam fazer avançar os processos de desestatização de algumas empresas públicas ou estatais que, segundo o grupo de transição, têm “grande relevância nacional”. No caso, Petrobras, Correios, Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Nuclebrás Equipamentos Pesados (Nuclep), Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural (PPSA) e Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Revogações e revisões também foram apontadas na área das políticas públicas de cultura, de forma a “adequar as normas de fomento indireto à realidade da economia da cultura”, como é o caso do Decreto n10.755 de 2021, que regula o fomento a ações culturais via mecanismo de incentivo fiscal em âmbito federal.

Acesso social aos espaços de poder 

Uma outra preocupação do grupo é relativa a atos que limitaram o direito de participação social nos “espaços de poder”, o que favoreceria, segundo o relatório, o aumento do controle social na gestão de recursos públicos.

A ideia é, por meio da edição de um despacho orientando ministérios, rever o teor de decretos e atos relativos à formação de colegiados que tratam de temas como discriminação, trabalho escravo, população em situação de rua, crianças, jovens e adolescentes, pessoas com deficiência, bem como de direitos de trabalhadores, povos indígenas e educação.

Nesse sentido, foi proposta a revogação do Decreto n. 9.759 de 2019, cujo teor visava a redução da participação social em todo o governo. Neste mesmo âmbito – participação social – foi proposta a derrubada de entraves que dificultavam o acesso de movimentos populares ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Direitos sociais e econômicos

As equipes ministeriais terão o desafio de rever atos normativos que, segundo o relatório, prejudicaram significativamente direitos sociais e econômicos dos brasileiros, em especial da população mais pobre.

As propostas apresentadas no documento sugerem acabar com a obrigação que agricultores rurais de famílias de baixa renda teriam, no sentido de entregar parte de sua produção para o governo –  previsto no Decreto 10.852/2021, que regulamentou a contraprestação do “auxílio inclusão produtiva rural”. “Essa revogação é urgente”, enfatiza o relatório referindo-se a medida prevista para vigorar a partir de janeiro de 2023.

A revogação de um outro decreto (10.473/2020) possibilitará, segundo a equipe de transição, a recriação do Programa dos Catadores, que reunia ações de apoio a trabalhadores de baixa renda que se dedicam à coleta de materiais reutilizáveis e recicláveis, “promovendo inclusão social e econômica dessas pessoas e contribuindo para a sustentabilidade”.

Superendividamento

Foi também proposta a revisão do Decreto do Superendividamento (11.150/2022), de forma a dar clareza sobre quais seriam os caminhos para ajudar, de forma mais efetiva, as famílias de baixa renda que se encontram nessa situação.

Outro ponto abordado no documento é a necessidade de revogações e revisões de atos contrários a direitos de crianças, jovens e adolescentes (tanto das cidades como do campo), bem como de atos contrários à igualdade racial.

Entre as sugestões apresentadas está a derrubada de “regras ilegais que retiram proteção do adolescente aprendiz” previstas no Decreto 11.061 de 2022; e acabar com a política pública de educação especial do chamado “Decreto da Exclusão” (10.502/2020), que promove o isolamento social das crianças com deficiência. Trata-se, segundo o grupo de transição, de uma “política preconceituosa que exclui as crianças com deficiência do convívio com as demais crianças nos ambientes escolares, promovendo isolamento social inaceitável”.

Igualdade racial e meio ambiente

“O diagnóstico, quanto às questões relativas à igualdade racial, indica a gravidade dos efeitos do governo Bolsonaro no sentido de desmobilizar a afirmação de direitos e impedir processos de reparação histórica”, diz relatório e sugere a retomada da defesa dos direitos e da demarcação de territórios para comunidades quilombolas.

Com relação às políticas públicas voltadas à preservação do meio ambiente, o relatório propôs a revogação de diversos atos normativos “de extrema gravidade” que, inclusive, já vêm sendo objeto de ações junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).

“O Pacote Verde, analisado pelo STF, é formado por sete processos judiciais em que são analisados atos do governo Bolsonaro que levaram à atuação estatal deficiente, à desestruturação da legislação ambiental brasileira, ao enfraquecimento da fiscalização e do combate a crimes ambientais e crimes relacionados aos povos indígenas, à desproteção do meio ambiente como um todo e, em especial, do bioma da Amazônia”, diz o relatório.

Relatório do Desmatamento

As revogações sugeridas têm, entre seus objetivos, o de controlar o desmatamento, retomando o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM) que, segundo o grupo de transição, é um dos “principais instrumentos capazes de controlar desmatamento, contribuindo para redução de emissão de gás”.

O relatório propõe também que se acabe com a impunidade, revogando “decretos que anularam multas ambientais, paralisaram o sistema de fiscalização ambiental e criaram um ambiente de perseguição aos fiscais”. A perda estimada com a anulação dessas multas é superior a R$ 18 bilhões em recursos para os cofres públicos, segundo levantamentos apresentados no relatório.

Ainda no âmbito da proteção ao meio ambiente, foram apresentadas propostas de revogação total do decreto que liberava o garimpo ilegal na Amazônia (10.966/2022); a retomada do Fundo Amazônia; e a estruturação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

Desenvolvimento social

Conforme o texto, a volta do flagelo da fome ao País é o indicador mais relevante do desmonte das po­líticas de desenvolvimento social ocorrido nos últimos quatro anos. “Um futuro com comida na mesa e mais dignidade para as 33 milhões de pessoas em situação de grave insegurança alimentar demandam a imediata retomada do conjunto de políticas públi­cas que o Brasil implementou com sucesso nos governos do PT”.

A transição indica que governo eleito terá que reverter o quadro atual, no qual as políticas de transferência de renda, os programas de segurança alimentar e nutricional, e a oferta de serviços sociais estão completamente desorganizadas e contam com previsão orça­mentária reduzida ou, por vezes, quase inexistentes.

Outra crítica feita pela transição é que a implementação improvisada do Auxílio Brasil desarranjou todo o sistema de transferência de renda em funcionamento há quase vinte anos e trouxe caos para o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). “Em razão de sucessivas mudanças, o programa perdeu o foco, tratou de maneira igual os desiguais e levou milhões de pessoas para filas nas portas dos serviços socioassistenciais. As condicionalidades em saúde e educação foram alteradas e estão fragilizadas. Por exemplo, o total de crianças menores de sete anos com acompanhamento vacinal passou de 68% em 2019 para 45% em 2022”.

Relatório mostra endividamento da população  

Dados do Ministério da Cidadania informam que R$ 9,5 bilhões de empréstimos consig­nados para beneficiários do Auxílio Brasil e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) foram concedidos nas vésperas da eleição.

A Caixa, segundo o texto, o fez sem respeitar a lei das estatais, com taxas de juros exorbitantes, nenhum dos grandes bancos do país aderiram ao programa dado seu risco, o que foi viabilizado por medida provisória, convertida na Lei 14.431/2022.

De acordo com o levantamento, um em cada cada seis beneficiários do Auxílio Brasil contraiu o emprésti­mo consignado. Essas pessoas terão até 40% do valor de seu benefício comprometido, mesmo que não permaneçam no programa. A medida, claramente eleitoreira, vai na contramão das políticas de proteção social, colocando em risco benefícios futuros.

Leia íntegra do relatório.

Com informações da Agência Brasil, PT e Agência Câmara

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