CULTURA

Pintando a emoção

Marcia Camarano / Publicado em 30 de julho de 1998

Despojada para falar, pintar, contar as histórias de seu tempo de criança, a artista plástica Ruth Schneider faz da pintura um espaço de solidão, onde projeta e extrai emoções. Um amigo costuma dizer que ela é uma fada da arte. Com as mãos e os dedos, mais do que os pincéis, recria um mundo de onde emergem grandes figuras humanas, como ela.

O edifício residencial é comum, no bairro Menino Deus, um dos mais tradicionais de Porto Alegre. Mas chegar no apartamento onde mora a pintora Ruth Schneider é como entrar em outro mundo. Ela fez da sala de estar seu atelier. Portanto, quem é convidado a entrar em sua casa, pode apreciar sua obra. São quadros com o tamanho da figura humana, onde homens e mulheres assumem dimensões tão grandes que extrapolam a tela.

O apartamento pode ser pequeno, mas a criatividade é tanta que nem a porta do banheiro escapa: seus dois lados foram transformados em belos quadros. O trabalho é impressionante, e impressiona mais ainda o fato de Ruth utilizar mais os dedos e as mãos do que os pincéis para pintar. De onde ela tirou essa técnica? De dentro dela mesma. Ruth é pura emoção, como atestam seus amigos, também artistas.

LEMBRANÇAS – “Meu trabalho está ficando tridimensional, com figuras saindo do quadro”, ela analisa. Ruth não se filiou a nenhuma escola e diz não ter sido influenciada por nenhum grande pintor. Sua influência foi a própria infância, muito fantasiosa. “Sempre gostei de fantasiar, de criar, era muito curiosa e gostava de histórias”.

Autodidata, ela não freqüentou muito a escola. Foi até o ginásio. As lembranças da infância marcaram para sempre seu trabalho, que está inspirado principalmente na década de 40: a noite, a boemia, prostitutas, bêbados, músicos, jogos, eis os temas que mais aparecem em suas telas. “Eu era pequena, meu padrasto e minha mãe freqüentavam o cassino, onde tinha restaurante, bailes…”.

O pai, conhecido como Canhotinho, era músico e boêmio. Ruth não conviveu com ele, mas ela retratrou o mundo em que ele vivia nos seus quadros. Os avós – paternos e maternos – também eram músicos e igualmente não fizeram parte de sua vida. O fato dela usar os ambientes da noite como tema de sua pintura é explicitado na frase: “acho que isso é uma coisa que está no sangue”.

Ruth nasceu em Passo Fundo, em 1942. Quando tinha uns dez anos, começou a copiar historinhas de gibi. “Tudo é válido para começar”, ela diz. Lá pelos quinze anos, uma professora perguntou porque ela não copiava outra coisa. “Aí, comecei com artistas famosos, à mão livre. As pessoas achavam maravilhoso”. Ruth fazia esse trabalho por prazer, nunca tinha pensado em vender e viver dele.

Quando casou, em 1963, ela começou a pintar mais. Passou a se interessar em fazer cursos de aperfeiçoamento. Fez intensivos com Fernando Baril, Paulo Porcella, Marcos Lontra, Luiz Paulo Baravelli. Queria aprender técnica com eles. “Esses cursos me davam segurança para eu fazer a minha arte, que quase não é técnica. Eu consegui me liberar sozinha”.

SALÕES – Mas antes disso, logo ao chegar em Porto Alegre, seu primeiro trabalho foi conseguido numa agência de publicidade. Ainda não estava muito ligada na arte. “O Baril é que fez minha cabeça”.

Os anos 80 marcaram seu trabalho. Foi quando começou a mandar amostras para salões. As pessoas que viam, se entusiasmavam e davam conselhos para ela: “manda para lá, manda para cá”. Ruth foi ingressando no circuito artístico dessa maneira. E, sem se dar conta, passou a fazer parte dele. Conheceu colegas, participou de exposições. “Fiquei por dentro e conhecida”.

Para um artista ser conhecido, precisa passar por salões. Ruth passou por muitos, mas houve exposições que marcaram sua vida e deram impulso à sua carreira. No Salão de Brasília, na década de 80, ganhou o Prêmio Aquisição. Os artistas premiados nesse salão foram sondados para fazerem parte da Bienal de São Paulo e ela foi uma das selecionadas.

Uma coisa puxa a outra. Na Bienal, um “olheiro”, o diretor do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, ficou encantado com seu trabalho e pensou em convidá-la para uma exposição. “Interessante que ele me procurava e ninguém dizia onde eu morava, ninguém sabia. Ele veio a Porto Alegre, atrás de mim”. Foi por acaso que eles se encontraram, quando o diretor já tinha desistido de encontrá-la e estava de partida para o Rio de Janeiro, encontrou Ruth em uma galeria. “Você que é Ruth Schneider?”, ele perguntou.

Foi para o Rio de Janeiro e ficou maravilhada. Tudo pago, ela não precisava se preocupar com nada. Lá, ela recebeu convites para exposições na Europa. Ficou um mês na Escócia, outro na Inglaterra, fazendo oficina e exposição. “Foi um sonho. Só acreditei quando estava lá”.

A pintora pôde se dedicar à sua arte graças à cumplicidade do marido, Juarez, que sempre lhe deu apoio. Com ele, ela teve três filhos. Dois ela perdeu de forma trágica, César Rodolfo e Juarez. Ficou Willy, pai de seu neto de quatro anos. O marido faleceu há dois anos e a sucessão de perdas fez com que Ruth mergulhasse numa depressão por longo tempo.

“A mãe, quando perde um filho, morre também, morre algo dela. E, quando perdi meu marido, parecia que tinha só metade de mim. Foi tudo bem difícil”. A tragédia familiar fez com que Ruth se apegasse ainda mais à pintura. “A arte me dá uma base para conseguir viver. Quando estou pintando, saio fora do ar”.

Talvez por isso ela anda seguindo um pouco o que se pode chamar de “linha paranormal”. Sua sensibilidade artística anda mais acesa do que nunca. “Um paranormal um dia me disse que via muitos poetas ao meu redor. Acho que é por isso que estou sempre rodeada de poetas. Admiro a poesia e a música. O artista tem a sensibilidade de captar coisas”.

Ruth sonha muito com Van Gogh. “Ele está sempre meio brabo”. Se ela tem sensibilidade de captar energias que não consegue explicar, luta contra isso: “Me seguro. Faço o que quero e não o que algum ‘espírito’ quer que eu faça”.

INTUITIVA – Um poeta que se tornou amigo de todas as horas é Zé Augustho Marques, que também é crítico de arte. Eles se conheceram há oito anos, durante o lançamento de seu primeiro livro. Fizeram uma exposição conjunta no Arte do Beco, um espaço cultural no bairro Rio Branco.

“Começamos a trabalhar juntos, eu fazendo uma leitura dos quadros dela. Isso se chama imagismo”, comenta Zé Augustho. “O mais impressionante nela é a profusão de cores, o desprendimento da técnica. Na verdade, ela tem a técnica, mas se desprende disso. Outra coisa que chama atenção é a objetividade dentro do valor pictórico dela”, diz o poeta.

Segundo ele, a pintura de Ruth “tem muito do Naïf (ingênuo)”. Os dois juntos ganharam um prêmio de histórias em quadrinhos, em 1993 – Prêmio de Desenho para Imprensa Nacional. “Estamos sempre ajudando um ao outro, crescendo em conjunto”, revela Zé.

Para ele, Ruth é o despojamento total. “Ela se despoja para falar, pintar, contar as histórias de seu tempo de criança. Costumo dizer que ela é uma fada da arte. E é a melhor em Porto Alegre”. Ruth classifica seu trabalho como figurativo-expressionista, mas se querem mesmo saber, ela não dá muita importância à nomenclatura.

O artista é solitário na arte. A pintora se sente em casa nessa solidão. Aliás, a fórmula para acabar com a depressão e a amargura que acorda com ela todas as manhãs, é nada mais do que o trabalho. E é dele que tem vivido, em todos os sentidos. O marido lhe deixou o apartamento, carro e casa na praia. Coisas difíceis de sustentar. “Se não fosse minha obra, não conseguiria me sustentar. Vivo de minha arte”.

No dia 13 de agosto, ela vai inaugurar uma exposição individual no Margs, que permanecerá até 13 de setembro. Os trabalhos expostos vão enfocar os temas que a apaixonam, sempre a música, mulheres da vida, amantes. “Desenhar não é difícil. Fantástico mesmo é conseguir transmitir a fisionomia, até mesmo das pessoas decadentes”.

O trabalho da artista chamou tanta atenção que ela protagonizou algo inédito: ao que se tem notícia, é a única pessoa viva a emprestar seu nome a museu ou galeria. Em Passo Fundo, existe o Museu de Artes Visuais Ruth Schneider, da Universidade, inaugurado há três anos.

Seu trabalho tem uma marca tão forte, é tão pessoal que as pessoas logo lhe reconhecem a autoria. No começo da carreira, gostava tanto de Picasso que se inspirava nele. Mas depois passou. Teve vários professores, não foi influenciada por nenhum. Mas, ao longo dos cursos que freqüentou, cultivou vários amigos.

Como a pintora Rusy Scliar. Elas se conheceram durante o curso com Baril sobre “Procedimentos Pictóricos”, na década de 80. “O encontro com Ruth foi através de colegas. Formamos um grupo de artistas plásticos e a convivência aumentou lá por 87, 88”, lembra Rusy.

Segundo ela, o trabalho da amiga é totalmente apaixonado. “Ela tem uma referência da cidade do interior, da infância e aproveitou tudo isso em seu trabalho. Muita coisa é verídica, muita coisa ela cria”, diz. Para Rusy, essa fantasia faz com que Ruth revele um grande domínio de narrativa pictórica. “Ela faz tudo com grande talento e emoção”. Ruth gosta do comentário da amiga e reconhece que seu trabalho “é muito intuitivo”.

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