ECONOMIA

Moeda social para enfrentar a desigualdade

Na contramão dos bancos comerciais, as instituições comunitárias apostam no potencial de empreendimento e geração de renda nas periferias – que movimentam R$ 168 bilhões por ano em todo o país
Por Cátia Cylene / Publicado em 17 de agosto de 2021

Foto: Igor Sperotto

Cenira comercializa roupas, artesanato e o churrasco dos finais de semana, além de organizar a doação de marmitas e insumos para a comunidade da Vila Bom Jesus, em Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Para salvar a economia do planeta, é preciso apostar na produção e no consumo dentro das comunidades, aponta o cearense Joaquim Melo, diretor do Instituto E-Dinheiro Brasil e coordenador-geral da Rede Brasileira de Bancos Comunitários – a qual reúne 120 instituições financeiras de caráter comunitário em 47 municípios, com 145 mil usuários cadastrados – contingente que movimenta cerca de R$ 40 milhões por mês.

Foto: Acervo Pessoal

Joaquim Melo: “a solução para a economia está nas comunidades”

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NESTA REPORTAGEM

A circulação de recursos com a intermediação dos bancos comunitários em todo o país, o que engloba todas as operações do comércio e dos serviços e R$ 300 milhões em créditos, superou R$ 1,1 bilhão de janeiro a dezembro de 2020. Nessa contabilidade é preciso lembrar que o movimento de recursos é diferente da entrada de dinheiro, ressalva Melo, que calcula um resultado de R$ 300 milhões no período.

No Ceará, o uso de moedas sociais no primeiro semestre do ano passado cresceu 60,6%, com um volume de R$ 8,2 milhões em operações nos bancos comunitários.

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Nelsa Nespolo, do Justa Trama, banco comunitário que tem moeda própria e 300 clientes nas comunidades da zona norte de Porto Alegre

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Fundador do Palmas, instituição precursora dos bancos comunitários no país, Melo foi responsável pela circulação da primeira cédula de microcrédito, em 1998. Ele enfatiza que o dinheiro das pessoas que vivem nas comunidades circula localmente, é gasto ali mesmo. Por isso, ganha quem apostar nessa economia local. A moeda social, ele diz, é a alternativa para o enfrentamento da desigualdade e a motivação para implementar e gestar iniciativas pautadas pelos princípios da economia solidária voltadas ao desenvolvimento de territórios por meio do fomento à criação de redes locais de produção e consumo.

As operações mais comuns das instituições da Rede são pagamentos de serviços, transferências e compras no comércio das comunidades – em um universo de 14 mil estabelecimentos comerciais. No município de Maricá, no estado do Rio de Janeiro, o Banco Mumbuca triplicou o número de clientes desde o ano passado, de 3 mil para 10,4 mil comércios credenciados.

Foto: Banco Palmas/ Divulgação

Circulação de moeda social cresceu acima de 60% durante a pandemia

Foto: Banco Palmas/ Divulgação

A vantagem é que tudo que se compra e se paga, ou seja, o dinheiro que circula, permanece dentro da própria comunidade. “A gente acredita que ainda terá uma explosão de bancos comunitários daqui para frente, justamente porque o Brasil está sem perspectivas em nível federal. A gente acredita que a solução é local”, destaca Melo.

No banco comunitário municipal, a taxa administrativa de 2%, paga pelo comerciante, retorna para o banco na forma de fundo e é emprestado a juros zero, ou, no máximo, por meio por cento, para o cidadão. São créditos de um banco local, que gera essa verba através de produção e consumo locais, cujas taxas retornam para fortalecer a economia, aponta o coordenador da rede de bancos comunitários.

FUNÇÃO SOCIAL – No bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre, o Banco Comunitário de Desenvolvimento Justa Troca, que mantém 300 pessoas cadastradas, vem se firmando como referência para o desenvolvimento local e a autonomia nas comunidades. No ano passado, a instituição promoveu oficinas para a confecção de sabão e, agora, em setembro, serão retomadas as oficinas de costura, crochê, cuidado de idosos e manicure. O banco criou sua moeda própria, o Justo.

Nelsa Inês Fabian Nespolo, relações institucionais do Justa Troca e presidente da Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários no Rio Grande do Sul (Unisol/RS), reafirma a importância da função social dessa iniciativa. “Bancos comunitários são uma estratégia de desenvolvimento, importantes para uma mudança estrutural da sociedade. O banco reorganiza o local, traz o debate sobre a questão financeira, faz pensar para onde vai nosso dinheiro e incentiva a criação de iniciativas de fontes de trabalho e renda”, enumera.

Fortalecimento pelas redes

Foto: Banco Palmas/ Divulgação

Bancos comunitários movimentam R$ 40 milhões por mês em
fomento à produção e consumo nas periferias

Foto: Banco Palmas/ Divulgação

Alguns bancos comunitários seguiram se articulando e desenvolvendo ações de forma on-line. É o caso do Banco Comunitário Cascata, do bairro Primeiro de Maio, na capital gaúcha. Em 2020, em parceria com o coletivo Misturando Arte e a Fiocruz, costuraram máscaras, produziram sabão e distribuíram esses insumos na comunidade.

Após essa ação emergencial, as vendas em feiras presenciais deram lugar à comercialização na modalidade virtual. Para se adaptar a essa nova realidade, a instituição buscou a assessoria do Núcleo de Estudos em Gestão Alternativa (Nega) da Ufrgs para desenvolver estratégias de vendas on-line.

“Queremos atuar na formação de ações que vão gerar renda. Ensinar a transformar aquela farinha que vem na cesta básica em pão, em bolos, e virar sustento para aquela mulher”, ressalta Jocelaine Santos da Silva, presidente da instituição.

Tempo como moeda social

Foto: Banco de Tempo/ Divulgação

Horta comunitária do Banco de Tempo, em Lomba Grande, Novo Hamburgo

Foto: Banco de Tempo/ Divulgação

O Banco de Tempo Lomba Grande, na zona rural de Novo Hamburgo, criou possibilidades de troca de horas trabalhadas nas hortas por alimentos cultivados sem veneno, uma iniciativa para garantir o acesso das famílias aos alimentos. “Somos uma experiência de autogestão e soberania alimentar que conecta comunidades urbana e rural. Quem gosta do trabalho com a terra, tem tempo disponível e precisa garantir a sua alimentação encontra aqui uma maneira pedagógica de suprir suas necessidades alimentares, além de poder trocar saberes e momentos importantes ao ar livre”, enfatiza a bióloga Solange Mânica, responsável técnica do projeto.

Até abril deste ano, o Banco de Tempo envolveu 57 famílias, sendo que 14 pessoas trabalharam 923 horas, que foram trocadas por 843 unidades de verduras e 37 sacos de compostos orgânicos. Nesse mesmo período, outras 43 famílias adquiriram cestas de produtos agroecológicos cultivados no organismo agrícola da Família Bühler, onde funciona o banco.

Renda e identidade comum na Vila Bom Jesus

Foto: Igor Sperotto

Aos 80 anos, Haidee recicla de tudo em oficinas de arte para as mulheres da Vila Bom Jesus, em Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Por Adriana Lampert


Característica fundamental para todo o empreendedor, resiliência é uma boa definição para traduzir o dia a dia de boa parte da comunidade da Vila Bom Jesus, na zona leste da Capital. Abrigando cerca de 50 mil moradores, e estigmatizada pela ação do tráfico, da pobreza e da violência, a região também é território fértil para a economia solidária.

É lá que a microempreendedora Cenira Vargas da Silva, de 55 anos, realiza diversificadas atividades comerciais e sociais. Além de administrar um bazar de roupas e artesanato feitos com material reciclado (a exemplo de fibra de garrafa pet) ou fruto de doações, ela é referência na localidade quando o assunto é comprar o churrasco ou o galeto do final de semana.

“Domingo, perto do meio-dia, lota a frente do meu negócio. O pessoal gosta bastante”, comenta Cenira. “Tudo é vendido no mesmo endereço, a preços acessíveis.” O local também é ponto de compra e venda de alumínio, além de sediar a sala de costura da empreendedora.

Paralelamente, a cada 15 dias, dona Cenira distribui cerca de 150 marmitas de comida (feitas com alimentos que arrecada de doação de supermercados do bairro) para famílias em maior vulnerabilidade. Além disso, ela costuma doar sabão líquido (que fabrica com óleo reciclado) e máscaras (costuradas por ela e um grupo de artesãs parceiras), para a vizinhança se proteger da covid-19.

Delegada do Movimento Nacional de Luta pela Moradia da Região Leste, conselheira do Orçamento Participativo, integrante da Rede Ideia Avesol (de economia solidária e voluntariado), ela ainda está à frente do grupo Arte Mãe da Vila Bom Jesus. Este último conta atualmente com 12 artesãs, que também vivem da venda de mantas, trilhos para mesa, bolsas, roupas, e outros produtos feitos da fibra de garrafa pet.

Perto dali, outra moradora da comunidade Bom Jesus – dona Haidee da Rosa Brito de Lucena, de 80 anos –, reaproveita caixas de ovos, garrafas pet, rolos de papel higiênico, palitos de sorvete, latas de café, entre outros materiais, para usar nas oficinas de arte que ministra para mulheres da Vila. Ela vive da criatividade, produzindo bolos fakes e outros itens decorativos para eventos da vizinhança. “Casamentos, chás de fralda, aniversários, festas de 15 anos”, resume. “Como está tudo parado, estou investindo agora mais em brechó e loja de bijuterias”, pondera dona Haidee.

Foto: Igor Sperotto

“Uber” alternativo tem tarifa fixa e leva passageiros onde os motoristas de aplicativos convencionais não querem entrar

Foto: Igor Sperotto

Além desse cenário, outros negócios atendem à demanda dos vizinhos da “Bonja”, como é conhecida a região entre os locais. São dezenas de lancherias, restaurantes, pizzarias, que trabalham com tele-entrega, grande oferta de fretes, e outros serviços que viabilizam ser atendidos sem sair do bairro, como a aplicação de piercings e design de sobrancelhas.

Há, ainda, um sistema de uber independente, para atender com transporte individual aos vizinhos que enfrentam preconceito e recusa de serviços em apps comuns quando a solicitação é feita de dentro da Vila ou com destino ao bairro. Um dos motoristas que atuam em um dos três pontos de embarque ou chamada – e que prefere não se identificar – explica que os valores são fixos, dependendo do destino. “Os deslocamentos dentro da Bonja custam R$ 7,00. Para ir até à Protásio Alves (uma das fronteiras do bairro), são R$ 10,00, e para o Centro, o valor é R$ 25,00”, comenta.

“Funciona como um ponto de táxi, e somos acionados por whatsapp, onde nos comunicamos em um grupo privado.” Atualmente, a Vila conta com, pelo menos, 30 veículos disponíveis para atender à vizinhança. O negócio agradou tanto que os motoristas contam inclusive com clientes fixos. “Além de ter certeza que será atendido, o usuário também se beneficia de não ser obrigado a pagar tarifas dinâmicas”, valoriza o motorista, que trabalha no ramo há oito meses.

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