EDUCAÇÃO

O Banco Mundial está vencendo a disputa, alerta Brandão

Por Cristiano Goldschmidt / Publicado em 22 de maio de 2019

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Carlos Rodrigues Brandão (Unicamp e UFU) esteve na capital gaúcha no último dia 12 de maio, onde participou do Café com Paulo Freire, evento mensal, que reúne professores, pensadores e educadores para discutir a educação a partir de diversas perspectivas e áreas de estudo. Antes da sua palestra, que aconteceu no Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa), oportunidade em que falou sobre a amorosidade Freireana em tempos de desamor e de resistência, ele conversou com exclusividade com o Extra Classe. Professor, pesquisador e autor de mais de 80 livros, Brandão falou sobre a atual conjuntura brasileira e mundial, contextualizou a crise política, educacional e ética contemporânea e apontou suas causas e possíveis efeitos. Ele é psicólogo (PUC/RJ), mestre em Antropologia (UNB), doutor em Ciências Sociais (USP) e pós-doutor (Universidade de Perugia e na Universidade de Santiago de Compostela).

 

Extra Classe – A retirada de direitos e cortes de investimentos na educação demonstra um interesse político de usá-la como arma de controle da sociedade?
Carlos Rodrigues Brandão – Esse programa, pelo menos o lado mais assertivo dele, está cumprindo uma agenda, que não é uma agenda para o Brasil, é, pelo menos, uma agenda para o Ocidente, tendo como centro os Estados Unidos. No final do milênio, a Organização Mundial do Comércio (OMC) decretou oficialmente que a saúde, a previdência social e a educação passaram a ser consideradas mercadorias. Pouco antes, dois documentos de fóruns internacionais pensaram o mundo e a educação no mundo: um, da Unesco, que constituiu a pessoa humana como destinatário da educação e a educação com o objetivo do desenvolvimento humano. Assim, faz uma crítica a toda apropriação capitalista da educação. O outro documento, é do Banco Mundial, que subordina a educação ao desenvolvimento econômico, e evidentemente nos padrões do FMI e do Banco Mundial. Ou seja, das agências internacionais de controle do próprio mundo do capital. Os dois documentos se chocam e tem destinações diferentes. O grande problema que a gente está vendo, e estou tomando a educação como um campo, que é o meu campo, é que o documento do Banco Mundial está vencendo esta disputa. A agenda não só da educação, mas de tudo aquilo que a gente chama de direitos humanos, uma vida digna e feliz, a velha quantificação da ONU, habitação, lazer, comunicação, saúde, bem-estar social e assim por diante, como direitos essenciais da pessoa humana e das coletividades, cada vez mais passa a ser pensado, não só na decisão da Organização dos Estados Americanos, mas no documento do Banco Mundial, como mercadorias, entre outras.

EC – Como explicar o processo de negação da cultura artística, científica e filosófica no Brasil contemporâneo?
Brandão – Eu acho que explicações únicas são muito empobrecedoras, porque nós estamos vivendo um momento extremamente complexo. Recentemente estive num encontro internacional de educação onde o Frei Beto fez a palestra de abertura, e ele falava na questão de uma “imbecilização” do mundo moderno via o lado malévolo da informática. No momento em que você pode, com um toque de dedo, colocar o Museu do Louvre diante de você, ou colocar a obra completa de Van Gogh, ou colocar em quatro línguas diferentes toda a obra de Dickens ou de Shakespeare, a internet pode ser uma espécie de loucura perversa. Eu diria que é uma magia que virou feitiçaria. Quer dizer, as pessoas, e eu vejo isso nos meus netos, nos meus alunos, vejo quando estou num aeroporto, enquanto eu sou a única pessoa que está lendo um livro, todo mundo está clicando numa maquininha, e clicando pra comunicações, muitas vezes, supérfluas, vazias, vãs. Então existe esse lado, que eu acho lastimável, e que eu chamaria de um empobrecimento cultural como nunca vi.

EC – O senhor acha que existe uma legitimação da ignorância?
Brandão – Eu acho que as coisas começam a acontecer, e de repente elas são legitimadas. E mais do que isso, são impostas, como se esse fosse um comportamento padrão. Assisti a um vídeo sobre o que aconteceu com a calça jeans nos Estados Unidos. Eles demonstram, com crítica, como é que uma calça pesada e grosseira que só os mineiros usavam foi assumida por uma empresa, a Levis-Strauss, e como eles convenceram Hollywood a colocar essas calças em cowboys, em artistas famosos, e como foi articulada toda uma ação de propaganda bem dirigida. Mostram como chegou à Rússia, onde, no tempo da União Soviética, ela custava o salário de dois meses de trabalho do operário. E eles compravam. Chegou à China e em todos os lugares. É um exemplo pequenino desse extremo poder da mídia. O antropólogo gosta muito de pegar as coisas mais simples pra tentar explicar a globalidade. E acho que nós estamos vivendo isso. Nós estamos vivendo um momento em que existem alguns ganhos. Por exemplo, eu vejo na garotada da idade dos meus netos, de 11 a 15 anos, uma sensibilidade maior com os animais, com a natureza, com o mundo. Até o imaginário é mais aberto do que no meu tempo. Por outro lado, percebo uma incapacidade de aprofundar o próprio sentido da vida.

EC – E a que se deve essa perda?
Brandão – É tudo muito complexo. Se você disser que a culpa é da mídia, ou a culpa é da educação que não tá dando conta, você nunca vai chegar lá. Acho que é como se fosse uma praça maldita ligada por duas, três, quatro ou cinco ruas, e o que está acontecendo chega de todas elas. Eu não sei se é uma coisa definitiva, e se for, seria uma tristeza, porque realmente nós vamos chegar num mundo em que os avanços da robótica em 20 anos estarão produzindo computadores muito mais criativos e inteligentes, e com vida interior maior do que a de nossas crianças.

EC – O senhor acredita nisso?
Brandão – Sou seguidor do Teilhard de Chardin. Acredito que nós estamos na pré-história. Não penso o fim do mundo no ano 3 mil. Imagino a humanidade no ano 3528. Uma humanidade iluminada, transcendente, na visão do Teilhard de Chardin.


Ou seja, a única evolução da humanidade se dá dentro
da mente da gente, o que ele chama noosfera, e a cefalização, a evolução contínua da nossa mente. A grande revolução pra mim é uma revolução de consciência, que por agora não está dando pra sentir. Pelo contrário. Então, sou muito esperançoso, imagino uma humanidade levitando, flutuando, iluminada. Acredito numa humanidade em que tudo o que a gente está conversando aqui, de educação para a paz, educação popular, direitos humanos, não renda mais congressos nem conversas, porque tudo estará realizado. Quer dizer, acho que aí já é meu mundo utópico.


EC – Voltemos então do mundo utópico para a realidade. A sensação é a de que a maioria de nossos políticos desconhece a realidade brasileira e é insensível às necessidades e ao sofrimento do povo. Vivemos uma crise ética generalizada?

Brandão – Você tem toda a razão, acredito que o grande problema da classe política, não só aqui no Brasil, está nisso que você falou. A classe política está extremamente embrutecida, no mundo inteiro. Procura ver quem é hoje em dia um líder, não precisa nem ser um Gandhi, a gente tem saudade de um Obama, de um Kennedy, de um de Gaulle, de presidentes de agora a pouco. Aqui na América Latina hoje, quem tem? Aliás, o Lula, na entrevista que ele deu ao El País, tem um momento em que ele fala do apagão político, ele está se referindo no caso brasileiro, e diz: “que saudade do Ulisses Guimarães”. Esse (falando do Lula) é um homem, primeiro que pensa, e um homem que tem sensibilidade, que pensa o ser político como sendo um devedor à causa pública, à sociedade civil. Eu acho que a classe política se mediocrizou demais em termos intelectuais. Se você der uma olhada por aí, quando tem algum político que diga alguma coisa do Mandela, a gente já considera maravilhoso. É um clima em que o mundo político não se abre mais para o político no sentido grego da palavra, no sentido cidadão da palavra. O político agora é o espertalhão, é o homem que lê muito mais pela cartilha do como influenciar pessoas e conquistar espaços, do que por um mínimo de leitura de cidadania. E me espantaria saber que tem algum político que ainda se dedica a alguma coisa desse tamanho. Isso envolve tudo. Então é muito triste, pegando o mundo da igreja, o mundo da política, até mesmo em boa medida o mundo da universidade, e ver que há um processo de sucateamento de cabeças, sucateamento de preocupação de estudo e de formação humana. Sucateamento até de afetividade e de sensibilidade. Você ouve esses políticos e é uma coisa lastimável. Eles estão lidando com a reforma da Previdência, que é uma coisa que envolve vidas, sobretudo numa sociedade de idades alongadas, pessoas que quando se aposentarem, caso consigam, viverão com uma merreca. Estão nos penalizando ao invés de dizer quanto é que os juízes, quanto é que os políticos recebem. Sem falar, e todo mundo sabe, que da Vale do Rio Doce à Embaixada Americana, muitos devem à Previdência. A Embaixada Americana deve R$ 150 milhões à Previdência. Ou seja, se todas as empresas e instâncias públicas pagassem o que devem à Previdência, não tinha rombo. Só que isso só é comentado nos jornais de esquerda. Então é um processo muito perverso.

EC – Como é que o senhor enxerga essa movimentação, que já vem de alguns anos, do crescimento das igrejas neopentecostais, inserida inclusive da política?
Brandão – É outra coisa que também tem várias estradas pra se chegar lá. Você tem que pensar momentos. Entre os anos 1960, 1970 e 1980, pra ficar só num campo que é próximo a mim, onde eu circulei, no mundo intelectual, no mundo artístico, do teatro, do cinema, da música popular, da poesia, no mundo religioso, vivemos um tempo de uma fecundidade impressionante. Pra pegar o exemplo da América Latina, foi a primeira vez em que coletivamente, e envolvendo várias áreas, a América Latina se descolonizou. Se pensarmos nos Movimentos de Cultura Popular, da Educação Popular, da investigação-ação participativa, e logo depois com os movimentos sociais, rurais, os movimentos indígenas, a luta pela terra, por territórios, e mais adiante as Comunidades Eclesiais de Base, a Teologia da Libertação, a política de libertação do Enrique Dussel, foi o momento em que pela primeira vez a América Latina parou de importar não só conhecimento, saber, pedagogias, teologias, mas criou as suas próprias e começou a exportar. É impressionante como isso está esquecido. Pouquíssima gente fala nisso. Eu vivi um momento em que os americanos, os americanistas e os europeus vinham pra cá pra ouvir a gente, pra aprender com a gente. Quantos americanos vieram pra entrevistar só o Paulo Freire? Foi um tempo em que a América Latina produziu músicas, cinema, teatro, música de protesto, propostas de educação, de pesquisa, com uma intensidade e com uma força como talvez poucas vezes tenha havido no mundo europeu e no mundo norte-americano. Isso está sendo apagado. E estou lembrando, pra responder um pouco mais da sua pergunta, de um livro que o Frei Beto acabou de publicar, Fé e Afeto, em que ele sai daquela toada de ficar pondo a culpa do que está acontecendo na religião, nos evangélicos, e põe na Igreja Católica. Ele que é um frade dominicano. Ele diz que o que aconteceu é que a Igreja Católica perdeu o trem da história. No momento em que o Concílio Vaticano apontava para uma abertura, desde acabar com o celibato de padre, dar lugar às mulheres, quer dizer, abrir a Igreja, com o João Paulo II ela se fechou. Um papa poderoso, inteligente, intelectualmente muito bem formado, mas cuja preocupação foi proteger a interioridade da Igreja. Isso ele fez a ferro e a fogo. Inclusive punindo o Leonardo Boff, desqualificando a Teologia da Libertação. Ou seja, essa abertura que durou pouco tempo e foi muito fecunda, ela foi abruptamente fechada. E nesse vazio entraram as igrejas evangélicas neopentecostais. Amigos meus, como o Marcos Arruda, que tem acesso a muito mais informação, que está sempre nos Estados Unidos, dizem que essas igrejas neopentecostais, como a Universal do Reino de Deus, que apregoam a Teologia da Prosperidade, foram produto de uma ação da CIA, quando descobriu que o melhor instrumento pra combater a esquerda não é a política de direita, mas é solapar, a partir do povo, todo o imaginário de ação, digamos, mais Paulo Freireano. Então eu diria que estamos vivendo um momento em que o homem do momento não é mais Paulo Freire, ele é a moeda corrente de uma imensa minoria, mas é o Edir Macedo, que não só é um arquimilionário, como é um homem que tem um poder político pra hoje em dia entrar no Congresso e dizer o que pensa de forma muito forte. Mas essas experiências religiosas, vamos separá-las muito bem. Por exemplo, a Assembleia de Deus, a Congregação Cristã no Brasil são igrejas pentecostais, igrejas rigoristas, onde você tem que ter uma vida extremamente devotada. Tem até um movimento evangélico de resistência ao Bolsonaro e a tudo o que ele representa.

Carlos Rodrigues Brandão

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Outra coisa são essas igrejas neopentecostais que trouxeram a Teologia da Prosperidade, que é a versão religiosa do capitalismo neoliberal. Só que ao invés de você pedir ao banqueiro, você pede a Deus. Se eu tiver fé, não em Deus, mas nessa Igreja para a qual estou pagando, eu fatalmente vou receber em dobro aquilo que eu estou dando. É lastimável você ver na televisão pessoas com carteira de trabalho implorando por emprego, desde a cura do câncer até ficar rico. Inclusive com reuniões semanais para empresários. Uma aplicação religiosa, confessional, do mundo do mercado.

 

EC – O senhor vê nisso um perigo maior para além do que já acontece?
Brandão – Como eu te disse, sou um cara criticamente otimista. Agora, no fim da vida, estou trabalhando muito com paleontologia. E a minha pergunta é: em que momento da pré-história apareceu a educação? E eu acho que a gente, às vezes, tem um olhar de curtos ciclos, por exemplo, décadas. E, às vezes, você precisa olhar o mundo com um olhar mais alongado. Se você pegar a história de Roma, por exemplo, ela teve seus inúmeros “Bolsonaros”, ou na própria história da Inglaterra, dos Estados Unidos. Acredito que nós estamos vivendo um momento em que o Brasil está sendo apenas um dos quadradinhos de um tabuleiro de xadrez muito maior, em que de fato há e vai continuar havendo, durante um bom período – e acho que vou morrer nesse período – um avanço da direita, mas não é grosseiramente da direita, é um avanço de alguma coisa que tem a ver com filosofia, com religião, com pedagogia, com arte, centrado numa re-individualização (ou seja, é tudo aquilo que foi um apelo ao coletivo, à solidariedade, à integração entre as pessoas, e que eu sempre escrevi sobre isso, à economia solidária, à vida solidária), numa espécie de neo-individualismo, que evidentemente está associado ao populismo de direita, como a gente tem visto ganhar em alguns países. Está muito centrado também nessa ideia americana antiga do século XIX, vindo da Inglaterra do self made man, que tanto pode ser na igreja, com o “peça a Deus que ele vai dar pra você e não pros outros”, porque Deus sempre é muito seletivo, Deus ajuda um e deixa mil ou dez mil de fora, como também basta ver, por exemplo, os apelos das universidades mercantilistas.

 

Não é só mercantilista em termos de transformar a educação em mercado, é mercantilista no sentido de que você estuda pra ser o melhor e ter um lugar no mercado passando por cima dos outros. Alguns outdoors de universidades dizem isso com toda a cara de pau. Então, acho que nós estamos vivendo esse momento. A gente está num mundo em que de repente se diz descaradamente “danem-se os outros com a ética, pense em você, passe por cima”. E você às vezes vê o respaldo até da própria religião. Porque nesse mundo da Teologia da Prosperidade ainda tem uma penalização muito perversa que é a seguinte: Deus é onipotente e ele não deixa de atender. Se ele não te atendeu é porque você não merece. Não só você é pobre como você é besta, porque senão você venceria, como o Trump venceu, como o Ford venceu, e assim por diante.

EC – O senhor veio a Porto Alegre proferir uma palestra sobre A amorosidade Freireana em tempos de desamor e de resistência. Por que a pedagogia de Paulo Freire provoca tanto ódio?
Brandão – Em primeiro lugar, a gente tem que se perguntar se realmente esse ódio está disseminado ou se a gente não está caindo numa armadilha, porque eu até agora não vi, talvez por azar meu, é verdade que eu não vejo muita televisão, ninguém falando de ódio. Eu sei que tem, mas não vejo assim claramente. Segundo, eu tenho impressão que é uma enorme minoria.

EC – Se não há ódio, a gente vê pelo menos um grande processo de negação do Paulo Freire e de suas ideias. E como é que a gente poderia então caracterizar esse grupo de pessoas que nega a importância dele pra educação brasileira e mundial?
Brandão – Há pouco tempo comecei a receber e-mails de alguns amigos que me disseram: “Brandão, escreveram um livro contra o Paulo Freire, o que é que nós vamos fazer?” Eu respondi: Nada. O Paulo Freire sempre foi o maior defensor da diferença, do direito livre pra que as pessoas expressem o seu pensamento. Por que a gente vai ficar nervoso? O maior respeito a Paulo Freire é deixar que haja pessoas que falem mal de Paulo Freire. O que a gente pode fazer, é com inteligência contrapor, mas num clima de diálogo, tanto que eu estou participando de um curso do Instituto Paulo Freire chamado Paulo Freire em tempos de Fakenews. E eu fiz questão de não fazer uma grande defesa de Paulo Freire. Você precisa ver o seguinte: o que está acontecendo faz parte do curso da história. Paulo Freire é uma pessoa de uma extrema visibilidade, de uma posição inovadora, questionadora, emancipadora de educação. E existem muitas pessoas, inclusive pessoas muito boas, que não aceitam as ideias dele, porque acham que essas ideias estão criando uma turbulência na educação, porque são propostas irrealizáveis. Essas pessoas são bem intencionadas. Eu acho que o Paulo se transformou num ícone, assim como o Lula é um ícone, como o Gandhi foi no seu momento, como o Mandela foi no seu momento. Todos foram perseguidos. Não há personagem mais à esquerda, com uma visão mais humanizadora, de Jesus Cristo a Lula, sem querer aproximá-los, só pra fazer um paralelo, que não suscite desconfiança ou ódio. Se você pegar a História, inclusive dos vários povos, é muito impressionante as semelhanças. Então eu acho realmente que essas pessoas não estão sendo atacadas pelo que elas são, porque a maioria das pessoas que tem ódio de Paulo Freire nunca leu Paulo Freire.

EC – Que análise o senhor faz das políticas educacionais dos governos Lula e Dilma?
Brandão – Acho que tivemos alguns avanços, desde a alfabetização até universidades. O sistema de cotas, a abertura de universidades mais avançadas, os Institutos Federais que o Lula semeou pelo Brasil, muito mais que o Fernando Henrique Cardoso, foram grandes avanços. Foi um tempo realmente áureo. Mas avanços, muitas vezes, travados justamente por princípios democráticos. Vou te dar um exemplo: as três universidades dos Movimentos Populares, uma no Paraná, uma aqui no Rio Grande do Sul e uma em Santa Catarina. Numa delas o pró-reitor estava colocando o seguinte dilema: essas universidades são até estatutariamente devotadas não só a pessoas e a movimentos populares, mas a desenvolver políticas populares, só que por um princípio democrático da nossa constituição, os concursos têm que ser universais, porque você não pode fazer uma prova ideológica. Isso é coisa da Rússia de Stalin ou do regime Hitlerista, ou então da ditadura militar, em que você tinha que provar com antecedente político e criminal que você não era uma pessoa de esquerda. Resultado: eles abriram concursos, foi o maior concurso da história do Brasil, pra 500 professores. Mais da metade dos que passaram eram matemáticos, químicos, físicos que queriam fazer carreira, não estavam nem aí pras questões comunitárias, o pensamento dominante era o de não vou me ocupar com o povo quando eu tenho condições de produzir conhecimento e publicar em revista americana. E ninguém fala mais dessas universidades. Você vê que é muito delicado, é um trabalho de base, lento, de conscientização e de abertura da cabeça dos professores, de educadores, não diria nem no sentido revolucionário, como escrevi tantas vezes, mas pelo menos no sentido humanista. Chegamos ao momento em que temos que, como tarefa da conscientização, centrar não no mercado, nem no poder de Estado o destinatário da educação, mas na pessoa humana. E se é a pessoa humana, que pessoa humana? A pessoa humana individualista, sequiosa de sucesso, do bispo Edir Macedo ou desses livros de marketing, ou a pessoa humana afetiva, acolhedora, corresponsável, solidária, que é o que escrevo em todos os meus livros.

EC – Se o setor privado se beneficia de políticas públicas de incentivos, inclusive fiscal, pra expandir os seus negócios, de onde surgiu essa ideia de que o Estado é que é o inimigo do desenvolvimento?
Brandão – O grande problema é que nós estamos vivendo uma luta que, no momento, não é nem entre socialismo e capitalismo, é entre modelos de capitalismo. A questão é como é que você pode, dentro desse sistema que durante algum tempo ainda vai ser hegemônico, criar instâncias de resistências, como o Movimento dos Sem Terra (MST), movimento dos quilombolas, movimentos sociais. Isso que está começando a acontecer no Brasil, nos Estados Unidos é regra. Existem diferentes lobbys que disputam o espaço. Lá só tem dois partidos, Republicanos e Democratas. Na verdade, quem manda é o lobby siderúrgico, o lobby do petróleo, o lobby disso e o lobby daquilo. Isso está acontecendo no Brasil também. O governo Bolsonaro, por exemplo, não tem partido. O partido dele é totalmente inexpressivo, aliás, é um saco de gato. O apoio político dele é uma coisa fragilíssima. Ele está apoiado em lobbys, que, aliás, estão em lutas, estão em confrontos. E é essa lógica que está vindo para o Brasil. Na verdade, o que o Guedes está dizendo, e é ele que no momento realmente está dando as cartas, é exatamente isso. Por outro lado, no povo brasileiro não existe mobilização cidadã. Nós somos uma sociedade fragmentada. A sociedade não fala por si. Qual é o único espaço na sociedade brasileira que dá certo? É o Bradesco, é o Itaú, é a Odebrecht, ou seja, é o mundo empresarial. Então, na lógica deles, vamos fazer o seguinte, vamos cair na real, vamos entregar o poder ao mundo empresarial que é o que dá certo. A lógica deles é privatizar, sucatear, entregar universidade, saúde, previdência, cada vez mais ao mundo empresarial, e criar um Estado que beneficie em tudo a vontade do mundo empresarial, e mantenha o povo atendido minimamente apenas pra não se revoltar e não criar problemas.

Eu não duvido que na surdina o Mourão não esteja capitaneando uma transição do governo do Bolsonaro pra ele. Aliás, seria muito fácil chegar o momento de desligitimizar o Bolsonaro, chegar nele e dizer: Bolsonaro, avisa o povo brasileiro que você está com câncer e que vai ter que se retirar da política. Tal como fizeram com o Costa e Silva. Eu não duvido disso. Só que tudo vai depender desse jogo de quatro forças, de qual deles vai prevalecer. Eu acho que nunca um governo controlado por militares é uma coisa boa, mas no quadro atual você tem que ver o que está em jogo. Quer dizer, nesse processo que vai se acentuar, de privatização de tudo, de postos de saúde a universidades, até mesmo de penitenciárias, os militares estão, digamos assim, melhores do que o lado empresarial e do agronegócio. O pior ainda é o lado mais puramente empresarial, porque o lado do agronegócio é mais nacionalista, porque interessa a eles o controle da terra e certa independência frente ao capital internacional, para produzir soja, madeira, e enriquecer. Então eu acho que tudo está em aberto, ou seja, é um cenário tão fragmentado, e com um detalhe, a gente sabe muito pouco o que está acontecendo nos bastidores.

 

EC – Por que a sociedade transfere aos professores a responsabilidade do fracasso e baixo desempenho escolar dos alunos?
Brandão – E não é só aqui no Brasil, não. Uma coisa muito interessante é que o professor é muito exaltado enquanto mito, mas no mundo inteiro ele é muito mais culpabilizado e penalizado do que enaltecido. Claro que no Brasil isso é mais grave. Agora mesmo no encontro na Paraíba, estava lá o José Pacheco, famoso criador da Escola da Ponte, e ele está à frente desse movimento das Escolas Transformadoras, criando experiências, viajando pra todo lado, e ele disse uma coisa na qual acredito, que o país mais inovador em educação no mundo é o Brasil. Me senti a vontade, porque eu já preguei isso várias vezes. Se a gente for na França, a educação lá é igual a do século XIX, desde a arquitetura das escolas até o que se ensina. É um ensino de qualidade, com excelentes professores, muito bem formados, meus netos, inclusive, sempre estudaram em escolas francesas, mas é de uma caretice de séculos, enorme, onde só se parou de bater nos alunos porque agora não tem mais sentido. É assim na Inglaterra, é assim na Espanha. Então, eu acho que o professor sempre foi um ser mítico, muito exaltado enquanto figura simbólica e muito massacrado enquanto figura real. É claro que com muitas diferenças, inclusive aqui no Brasil.
O que muitas vezes é atribuído à escola, e não tem nenhuma novidade no que eu vou falar, é o fato de que a escola se transformou no reflexo da sociedade, como ela sempre foi. Hoje em dia o estudante desrespeita o professor, bate em professor, a escola é violenta, mas acontece que a sociedade é violenta. A minha casa no Rio de Janeiro, eu sou carioca, ficava a quinhentos metros da Favela da Rocinha. Tinha uma trilha ao lado do muro da minha casa e o pessoal descia pra pegar o bonde, e o portão da minha casa nunca teve chave, e a porta, muitas vezes, ficava aberta durante a noite porque a gente esquecia. Não se falava em violência. A gente ia pra Favela da Rocinha tomar cerveja. Então a escola ficou violenta porque a favela da Rocinha ficou violenta, e a favela da Rocinha ficou violenta porque ela é uma favela de 100 mil habitantes num mundo que de repente começou a abrigar um policial bandido, traficante. Então a escola é o lugar mais sensível, de reflexo de como a sociedade é. Muito mais do que a igreja, muito mais até do que o bar e o boteco. Uma vez, em São Paulo, num encontro sobre violência na escola e violência contra a escola, fiz uma análise de antropólogo e perguntei por que ninguém depreda boteco, puteiro, igreja, mas depredam escola. São as mesmas pessoas, mas por que a escola foi a escolhida? Aí fiz uma interpretação e disse: porque a escola, diferente do bar, do puteiro e da igreja, está com as portas trancadas, e seleciona quem pode entrar e quem não pode. Então, quem não pode vai lá e depreda, ou então diz pra quem está lá que deprede em seu nome. Tanto é assim que algumas escolas de São Paulo que se tornaram exemplos de enorme redução da violência foram escolas em que o diretor resolveu abrir as portas.

EC – E nessa sociedade onde, muitas vezes, os professores são agredidos e tratados como criminosos, como encorajar os jovens a seguirem a carreira docente?
Brandão – Esse é outro grande problema, porque também está acontecendo um fenômeno que, aliás, não é brasileiro, já aconteceu nos Estados Unidos em décadas passadas. Por que até pouco tempo atrás havia uma enorme esperança na educação? Porque a educação era efetivamente uma catapulta pra uma vida melhor qualificada. Pra você ter uma ideia, eu me formei em psicologia e comecei a trabalhar na Universidade de Brasília (UnB). Cheguei lá em 1967 com um currículo vittae de uma página e meia e com meia hora de papo com a diretora saí empregado, contratado. Depois fiz concurso pra Federal de Goiás, pra psicologia social, e só tinha eu de candidato. Então, realmente, ou você estudava numa escola técnica ou você estudava numa universidade com a garantia de que você saía de lá com um futuro aberto a sua frente. Agora, você não tem mais. Boa parte de meus estudantes de doutorado estão desempregados. Que universidade vai abrir concurso pra antropologia? Então, há um momento em que a própria educação deixou de ser, mesmo a um olhar mais capitalista, uma porta de entrada pra felicidade. As pessoas estão vendo nitidamente que talvez seja mais vantagem você virar pedreiro ou mecânico credenciado do que um doutor em antropologia. Há certo desencantamento com relação à educação. Ela parece que já não cumpre mais o que ela realizava no passado, nem no mercado de trabalho, nem do ponto de vista capitalista. Eu já peguei uns três Uber lá em Campinas em que o motorista é físico, químico e mestre em estatística. Então se você juntar todos esses fatores, você vai ver que a educação deixou de ser aquele espaço quase sagrado, a escola como um lugar sagrado. Eu estudei no México em 1966, e era muito impressionante ver como é que a instituição escola era um dos espaços mais sagrados da sociedade. Você entrava com reverência na escola, você tratava um professor, e sobre tudo um diretor, com a reverência que você não tem hoje em dia a um político. Até porque ele nem merece. A verdade é que todo mundo está sendo dessacralizado. Você já reparou em outras áreas, o médico que era no passado um sacerdote, hoje em dia é motivo de piada, de desconfiança, de gozação, só querem enriquecer. Então essa sociedade que em grande medida se robotizou, se mediocrizou e se tornou uma sociedade do conflito, do individualismo, da concorrência, da competição e do sucesso, todas essas experiências de vida e instituições, a igreja, a educação, a saúde, todas elas começaram a ser dessacralizadas.

Você já reparou que pouco a pouco o novo herói apregoado reiteradamente na TV Globo é o empreendedor? Essa palavra não existia dez anos atrás. Empreendedorismo. Retira-se a responsabilidade do Estado e coloca toda no individual. E culpabiliza-se o professor como se dissesse “o meu filho passou 15 anos estudando pra que? Só aprendeu besteira, inutilidade”. Aí vem a educação de resultado, que é a grande oposição, dentro do mundo capitalista, à educação de qualidade apregoada pela Unesco. Uma educação de resultado que vem do pragmatismo americano do século XIX, ou seja, vamos ensinar aquilo que funciona. Então tem sentido tirar filosofia e sociologia do currículo.

 

Para que colocar nossas crianças e jovens a estudar o que é o sentido da vida se isso não dá respostas materiais a esse mundo de conflito e competição, se eu posso colocar no lugar aulas de economia, de empreendedorismo, de competição pra atingir o sucesso na vida, aulas de alto marketing e assim por diante pra que as pessoas conquistem através da escola o único lugar que é o que realmente conta, que é o mercado de trabalho. Então cada vez mais a educação foi sendo americanamente funcionalizada. Ensinemos aquilo que responde a em que isso é útil pra mim e no mundo mercado.

EC – Do ponto de vista pedagógico e científico, qual o valor da obra de Paulo Freire para o Brasil e para o mundo?
Brandão – Então eu costumo dizer o seguinte: Paulo Freire talvez seja um educador ultrapassado mesmo, porque ele escreveu nos anos 1960 e 1970, só que a gente não conseguiu encontrar algum que o substitua, tanto que, muitas vezes, quando pessoas vêm em público ou privadamente e atacam o Paulo Freire, eu digo, tudo bem, mas me diga quem que você apresenta não só como um luminar de educação? Inclusive amigos meus, Frigotto, Saviani, pessoas que, vamos ser francos, são mais profundas que Paulo Freire porque estudaram Filosofia da Educação muito mais anos e tem muito mais leitura do que Paulo Freire. Só que nenhum deles apresentou uma proposta de educação e de alfabetização, e até de transformação da sociedade de tal forma que eu chamaria de o mapa da mina, e o Paulo Freire fez isso com a educação. O Paulo Freire criou uma teoria pedagógica consistente e profunda que inclusive desaguou não só em coisas concretas, mas também em toda uma proposta político-pedagógica que de repente sacudiu Moçambique, Angola, Nicarágua e que até hoje é referência inclusive no primeiro mundo. Tanto é assim que há pouco tempo eu estava num fórum em Turim, na Itália, sobre Paulo Freire. Ele criou uma proposta de transformação de pessoas, de transformação do mundo através da educação. Então eu acho que a atualidade de Paulo Freire é essa.

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