EDUCAÇÃO

Matrícula aos cinco anos é inconstitucional

Entidades educacionais e especialistas repudiam Lei estadual que altera corte etário para ingresso no primeiro ano do ensino fundamental
Por Gilson Camargo / Publicado em 20 de fevereiro de 2020
Além de atropelar a legislação educacional e a Constituição, a lei estadual retirar mais um ano da educação infantil  e empurra as crianças mais cedo para o ensino formal

Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Além de atropelar a legislação educacional e a Constituição, a lei estadual retirar mais um ano da educação infantil e empurra as crianças mais cedo para o ensino formal

Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Redigido em apenas uma página e composto por quatro artigos que remetem a conceitos genéricos como “ingresso no tempo certo de acordo com a capacidade de cada um”, um projeto de lei protocolado em março de 2019 pelo deputado Eric Lins (Dem) na Assembleia Legislativa atropelou a Legislação, normas educacionais vigentes e princípios pedagógicos que orientam o processo de aprendizagem ao propor a matrícula precoce de crianças no ensino fundamental.

Em busca de apoios à sua proposta pelos corredores do Legislativo antes da votação, o parlamentar teria argumentado aos seus pares que ele próprio, quando criança, teria sido um aluno com altas habilidades que sofria com a “lentidão” dos coleguinhas. Por isso, se sentia autorizado a propor uma mudança nas regras do jogo para contemplar outros “superdotados” com o acesso prematuro ao ensino formal. “O objetivo da matéria é colocar a criança para receber os estímulos adequados, visando o seu melhor aproveitamento na escola. Isso evita que o aluno se desestimule”, argumentou Lins no plenário. A ideia não faz sentido para educadores, especialistas e entidades educacionais, que alertam para os prejuízos que a antecipação do ingresso no ensino formal representa para as crianças e enfatizam que o tema não é prerrogativa das instâncias de governo ou legislativo locais. O corte etário diferente do previsto na legislação federal é de competência privativa da União, de acordo com o artigo 22 da Constituição Federal. Apesar disso, a ideia encontrou eco entre a maioria dos deputados estaduais.

Com um parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a proposta sequer passou pela Comissão de Educação da Casa antes de ir a plenário. Aprovada por maioria no dia 4 de dezembro, virou lei com um canetaço do governador Eduardo Leite (PSDB) nos últimos dias do ano para vigorar parcialmente a partir do ano letivo de 2020. Contestada judicialmente e alvo de uma Recomendação do Ministério Público para que não seja cumprida por conselhos e secretarias de ensino, a Lei estadual 15.433/2019 estabelece um corte etário diferente do previsto na legislação federal, que estabelece o ingresso das crianças no ensino fundamental somente aos seis anos de idade completados até 31 de março. “O Brasil inteiro espera que o Rio Grande do Sul reverta esse absurdo, que prejudica a criança e usurpa a competência federal”, defende a integrante do Conselho de Educação de Porto Alegre (CME/POA), também diretora do Sinpro/RS”, Margot Andras.

“Projeto aprovado de forma irresponsável que impacta no ano letivo e na organização dos sistemas de ensino”, destaca Paulo Fochi

Foto: Igor Sperotto

“Projeto aprovado de forma irresponsável que impacta no ano letivo e na organização dos sistemas de ensino”, destaca Paulo Fochi

Foto: Igor Sperotto

Paulo Fochi, doutor em Educação pela USP e representante do Fórum Gaúcho de Educação Infantil, considera absurda a ideia, embutida na Lei estadual, de que antecipar o acesso ao ensino fundamental representaria um ganho para os alunos. “Nenhuma criança é prejudicada por ficar na educação infantil. Ela não está perdendo, mas ganhando tempo em uma instituição e num momento da educação em que os seus aspectos sociais, emocionais e cognitivos são melhor considerados para o modo como ela está aprendendo naquele momento”, ressalta. “É um projeto aprovado de forma irresponsável que impacta no ano letivo e na organização dos sistemas de ensino”.

Um dos parlamentares contrários à proposta que deu origem à controversa Lei estadual, a deputada Sofia Cavedon (PT), presidente da Comissão de Educação da ALRS, defendeu à época da votação que “a legislação já está definida e que o tema já foi objeto de muita discussão nas escolas do país inteiro e que gerou muita controvérsia entre pais, dirigentes escolares, pedagogos e legisladores”. Inúmeras ações judiciais já haviam sido contestadas pelo STF, que manteve o que já estava previsto na legislação, ressalta.

A alteração da idade para possibilitar o ingresso de crianças com menos de 6 anos no ensino fundamental, alerta Sofia, nega o direito à infância e desconsidera o quanto esse ciclo da vida é importante para a organização escolar e curricular. “Aos cinco anos, a prioridade não deve ser a aquisição formal de conhecimento, mas a preponderância do brincar, dos tempos mais largos, das atividades dirigidas mais curtas, da ludicidade, da liberdade para a construção de conhecimento e de desenvolvimento da primeira infância. E nós sabemos que ensino fundamental, por mais que se tenha uma pedagogia avançada, progressista, sempre haverá a imposição da avaliação, do tempo para apreender, da tradução em códigos de construções e conceitos que deveriam acontecer lá na primeira infância. E quando não acontecem poderá causar conflitos, fracasso escolar”.

Sofia Cavedon, presidente da Comissão de Educação: STF sempre manteve o que já está previsto na legislação

Foto: Celso Bender/ Agência ALRS/ Divulgação

Sofia Cavedon, presidente da Comissão de Educação: STF sempre manteve o que já está previsto na legislação

Foto: Celso Bender/ Agência ALRS/ Divulgação

A deputada diz que o MPRS acerta quando recomenda aos conselhos e secretarias de educação que desobedeçam. “É uma lei que desrespeita todo o conhecimento acumulado do ponto de vista pedagógico, do desenvolvimento da criança, da organização do sistema no país e que, portanto, desrespeita o setor da educação. Mas acima de tudo, desrespeita e não garante mais o direito à infância crianças pequenas”, aponta.

INCONSTITUCIONAL – A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra dispositivo da Lei estadual 15.433/2019. A ação, com pedido de liminar, foi distribuída ao ministro Luís Roberto Barroso e ainda não foi julgada. A entidade ressalta que o artigo 2º, incisos II e III da lei estabelece que a matrícula para crianças com seis anos completos até 31 de março do respectivo ano e prevê condições para o ingresso de crianças mais novas, que só completariam seis anos depois de 31 de março. Segundo a confederação, o corte etário diferente do previsto na legislação federal é de competência privativa da União (artigo 22, inciso XXIV, da Constituição Federal).

Destaca ainda que o Ministério da Educação, por meio da Portaria 1.035/2018, estabeleceu as datas de corte etário a serem aplicadas em todo o território nacional, para todas as redes e instituições de ensino, públicas e privadas, para matrícula inicial na educação infantil e no ensino fundamental. O ingresso no ensino fundamental aos seis anos de idade, observa a Contee, também está assegurado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996 – LDB).

Todas as escolas integrantes do Sistema Estadual de Educação devem manter a data de 31 de março, diz Sônia Fonseca, do CEEd-RS (C)

Foto: CEEd-RS/ Divulgação

Todas as escolas integrantes do Sistema Estadual de Educação devem manter a data de 31 de março, diz Sônia Fonseca, do CEEd-RS (C)

Foto: CEEd-RS/ Divulgação

O Conselho Estadual de Educação (Ceed/RS) emitiu  uma manifestação em janeiro recomendando a todas as escolas integrantes do Sistema Estadual de Educação que mantenham a data de 31 de março para o ingresso do ensino fundamental.

MINISTÉRIO PÚBLICO – No início de fevereiro, a Promotoria Regional da Educação de Porto Alegre do Ministério Público Estadual publicou parecer que rejeita o ingresso de alunos no ensino fundamental aos cinco anos. Uma Recomendação Conjunta foi enviada aos conselhos e às secretarias de educação pelo MPRS para que “os procedimentos de matrícula para o primeiro ano do ensino fundamental estabelecidos para o ano letivo de 2020, assim como para os próximos anos letivos, no âmbito dos respectivos sistemas municipais de ensino, independentemente de possuírem ou não sistemas próprios de ensino instituídos por Lei, estejam em consonância com as Diretrizes Curriculares e Operacionais Nacionais da Educação Básica definidas pelo Conselho Nacional de Educação”.

A legislação federal e um parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) estabelecem que somente os alunos que tiverem a idade de seis anos até 31 de março podem ser matriculados no 1º ano do fundamental.

O Ministério Público determina ainda que os municípios devem estabelecer normas complementares dos respectivos sistemas de ensino de acordo com as diretrizes curriculares da educação básica definidas pelo CNE  “a fim de resguardar a integração e a uniformização às normas nacionais, assegurando à população infantil a devida segurança jurídica, proporcionando-lhe tratamento isonômico e idêntico nos processos de ingresso no 1º ano do ensino fundamental em todos os municípios, assim como tratamento isonômico e idêntico aos processos de ingresso no 1º ano do ensino fundamental junto aos demais estados e municípios da Federação”, ponderam os promotores.

A presidente do Conselho Estadual de Educação (CEEd/RS) Sônia Maria Verissimo da Fonseca afirma que a Recomendação do MPRS coincide com a posição da entidade, que orientou a rede estadual a rejeitar a antecipação da idade para matrícula no ensino fundamental. “Estamos tentando resolver o caos que se estabeleceu com a aprovação dessa Lei. O Conselho se manifestou diversas vezes contrário à medida e alertou sobre a sua inconstitucionalidade, mas não foi ouvido pelo parlamento nem pelo governo estadual”, ressalta a dirigente.

Pragmatismo e estresse escolar

As consequências do eventual ingresso prematuro no sistema formal de ensino são imprevisíveis para cada criança, alerta o professor da Feevale e doutor em Educação pela Ufrgs, Gabriel Grabowski.

“Cada criança é um ser singular, mas as consequências para a infância serão graves, na medida que troca o tempo do conviver, do brincar, das experiências com familiares e amigos por um processo formal de escolarização. As famílias estão tomadas por visões pragmáticas e impensadas. Profissionais do campo da educação e da psicologia que estudam e pesquisam o desenvolvimento infantil não recomendam. Portanto, a pressa pode causar mais danos que benefícios às crianças”, avalia.

Para o especialista, as principais consequências serão de ordem emocional, afetiva, manifestadas pelo estresse escolar precoce, cansaço e infelicidade. “Pais ansiosos em acelerar um processo de educação que se estenderá por toda vida não imaginam o equívoco que estão cometendo. Aprenderemos por toda vida, mas a infância é somente nos primeiros anos de nossa vida”, adverte Grabowski. Para ele, a mudança do corte etário atrapalhou o planejamento dos sistemas de ensino e das instituições. “A iniciativa do deputado foi eleitoreira e do governo estadual, omissa e irresponsável. Ainda bem que os sistemas estão tendo cuidado e bom senso”.

A criança aprende e conhece o mundo através da interação com as outras crianças, com os objetos vivos, com os objetos de conhecimento, através das brincadeiras, ressalta Margareth Simonato, presidente da Associação de Escolas Superiores de Formação de Profissionais da Educação (Aesufope), membro do Departamento de Formação Continuada da Associação de Supervisores de Educação do RS e doutora em Educação. “Essa antecipação pode barrar o seu desenvolvimento dentro do processo de interação e brincadeiras”, pondera.

O ensino fundamental, ressalta, é o início do processo de escolarização da criança e a educação infantil prepara a criança para essa entrada. “Ou seja, estamos antecipando isso em um ano. Cabe lembrar que as crianças já tiveram um ano retirado. Até pouco tempo, elas entravam na alfabetização com a idade de seis para sete anos, agora elas entram de cinco para seis anos. E com essa mudança elas vão entrar com a idade intermediária de quatro para cinco anos. Cada vez mais cedo. Será que o ganho em abertura de vagas que isso representa para a educação infantil compensa os prejuízos que essas crianças vão sentir no decorrer das suas vidas?”, questiona Margareth.

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