GERAL

Quando a vaidade veste toga

Por Gilson Camargo / Publicado em 22 de junho de 2013

Foto: Paulo Barreto/Ipea/Divulgação

Foto: Paulo Barreto/Ipea/Divulgação

Foto: Paulo Barreto/Ipea/Divulgação

Ao julgar com base em critérios políticos e ao arrepio de leis vigentes, juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) instauram a insegurança jurídica no país. A constatação do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, embasada na observação do comportamento recente de desembargadores da Suprema Corte e ancorada em amplo conhecimento da ordem jurídica, leva em consideração especialmente o episódio do julgamento da Ação Penal 470. Mas, não é de hoje que seus ministros ignoram preceitos constitucionais, atropelam ou distorcem jurisprudências, condenam sem provas e o fazem flertando com a mídia e se imiscuindo na vida política do país. Está na Constituição Federal: a função do STF é proteger a Constituição, preceito cada vez mais ofuscado pelas demonstrações de poder e arroubos de vaidade dos seus ministros – mais visíveis nas sessões do julgamento do Mensalão, transformadas em espetáculos midiáticos. Um tribunal opiniático que remete aos primórdios do processo democrático, em que juristas ironizavam que cabia ao STF errar por último. “Uma instituição destinada a reduzir a taxa de imprevisibilidade da vida social, o STF, transmuta-se, ele mesmo, em fonte de aleatoriedade”, alerta. Wanderley Guilherme dos Santos é professor titular aposentado de Ciência Política na UFRJ. Nascido em 1935, graduou-se em filosofia pela Universidade do Brasil, atual UFRJ, doutorou-se em Ciência Política pela Universidade Stanford (EUA), presidiu a Fundação Casa de Rui Barbosa, autarquia do Ministério da Cultura, entre 2011 e 2012, e é integrante do Conselho de Orientação do Ipea. Fundador do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), Santos, que em 1962 publicou Quem vai dar o golpe no Brasil, denunciando as manobras que dois anos depois culminariam com a queda do presidente João Goulart, tornou-se referência bibliográfica nos meios acadêmicos e um dos mais influentes cientistas políticos do país. É autor de trinta livros – que se somam ao seu extenso acervo de obras acadêmicas. Escreveu Paradoxos do liberalismo: teoria e história, Décadas de espanto e uma apologia democrática (Revan, 1999), Cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira (FGV, 2003), O ex-Leviatã brasileiro: do voto disperso ao clientelismo concentrado (Civilização Brasileira, 2006) e Horizonte do desejo – Instabilidade, fracasso coletivo e inércia social (FGV, 2007), entre outros. Em uma pausa no livro que está produzindo sobre a oligarquia brasileira, Santos falou ao Extra Classe.

Extra Classe – Por que o STF afronta a segurança jurídica do país?
Wanderley Guilherme dos Santos
 – O STF ameaça a segurança jurídica quando decide, contrariando expressa determinação de leis vigentes.

EC – Por exemplo?
Santos
 – Ao avocar para si o julgamento penal de acusados que deveriam responder a processos em primeira instância, transformando o instituto do “foro privilegiado” de proteção a figuras públicas contra vinganças políticas em cassação do direito de revisão judicial em diferentes instâncias. Ou, ainda pior, quando um mesmo juiz decide diferentemente em casos estritamente semelhantes, na decisão volúvel do decano Celso de Mello a propósito do direito do Supremo de cassar mandatos parlamentares, tendo pontificado que apenas o Congresso detinha esse direito, em 1995, e reconhecendo-o ao Supremo, agora. (Nota: o ministro Celso de Mello, que no caso do Mensalão defendeu abertamente a cassação automática de mandato pelo STF em caso de condenação criminal de parlamentar, já foi radicalmente contra esse tipo de decisão. Em maio de 1995, evocando o artigo 55 da Constituição Federal, o ministro aceitou recurso de um vereador de Araçatuba (SP) que questionava a cassação de seu mandato após condenação criminal.)

EC – Mas o artigo 55 da Constituição Federal determina que um congressista, enquanto durar seu mandato, só pode ser cassado em caso de condenação transitada em julgado (sem chance de apelação), por voto secreto e maioria absoluta de parlamentares…
Santos
 – Pois, no mérito, entendo que ele (o ministro Celso de Mello, que antes defendia o preceito constitucional e mudou sua posição em relação à cassação de parlamentares) andou mais certo agora do que andava em 1995. Talvez, em ambas as ocasiões, ele tenha pontificado por razões erradas de conveniência. Por sua amplitude, a Ação Penal 470 propiciou grande número de surpreendentes exemplos que os juristas não deixaram de acentuar, preferências político-partidárias à parte.

“A judicialização da política é um processo de cumplicidade clandestina que produz barbaridades de ignorância específica que vários ministros fazem questão de alardear, embrulhadas em um gongorismo retórico de arrepiar”

EC – Na prática, quais são os desdobramentos dessa insegurança jurídica decorrente do comportamento volúvel dos magistrados?
Santos
 – As consequências estão sendo inevitáveis: os advogados e legisladores não tomam as leis vigentes nem decisões anteriores da própria Corte como antecedentes mais ou menos seguros do que virá a ocorrer em decisões posteriores em matérias da mesma natureza. Uma instituição destinada a reduzir a taxa de imprevisibilidade da vida social, o STF, transmuta-se, ele mesmo, em fonte de aleatoriedade.

EC – Uma Corte Suprema com viés político?
Santos 
– O Supremo Tribunal Federal é uma corte de política constitucional por definição da própria Constituição. Certamente suas decisões podem e frequentemente produzem impacto em outras políticas, mas isso não deve estar automática nem necessariamente nas considerações preliminares dos juízes. Cabe ao legislador eleito e ao Executivo administrar essas consequências sobre políticas específicas conforme a agenda de cada qual. O Supremo não pode ter agenda de políticas substantivas a orientar as decisões que toma como intérprete último da Constituição. Quando os políticos procuram o judiciário para decidir pendências de engenharia operacional da política – caso de transferências partidárias, propriedade de mandatos e assuntos semelhantes –, estão abdicando de parcela de sua soberania decisória em favor de outra esfera de poder. Quando o judiciário decide pela admissibilidade da demanda, entra em conluio com os demandantes.

EC – Que resultados podem surgir dessa inversão de papéis?
Santos
 – A judicialização da política é um processo de cumplicidade clandestina em que os políticos buscam no judiciário o apoio dogmático que não conseguem no voto, e os juízes se declaram constitucionalmente autorizados em matéria que escapa à sua competência e conhecimento. Daí as barbaridades de ignorância específica que vários ministros, porque impunes, fazem questão de alardear, embrulhadas em um gongorismo retórico de arrepiar. Mas o pernosticismo da linguagem só torna a ignorância medonha.

EC – Algum juiz do STF tem pretensões político-eleitorais?
Santos
 – Acredito que as eleições de 2014 estão no horizonte de todos os juízes do país e seria impossível de outro modo. Outra coisa é violentar o processo jurídico pensando em favorecer este ou aquele partido, embora, na prática, decisões com impacto político sempre hão de favorecer um partido ou outro. Daí, a dizer que a decisão foi tomada com esse objetivo, vai uma distância muito grande. Pecado menor é o da busca por reconhecimento pessoal, prestígio e fama, e aí me arrisco a afirmar, tendo acompanhado praticamente todas as sessões da Ação Penal 470, que os juízes buscavam, no mínimo, a simpatia da audiência doméstica. No exemplo do relator, Joaquim Barbosa, do presidente Ayres Britto, e dos falastrões Celso de Mello, Marco Aurélio e Luiz Fux, o comportamento teatral foi escandalosamente óbvio.

EC – Para uma parcela do eleitorado, o ministro Joaquim Barbosa virou uma espécie de herói nacional por causa do seu desempenho no julgamento do Mensalão. Por quê?
Santos
 – O atual presidente (do Supremo) Joaquim Barbosa tornou-se heroe circunstancial em parte pela convergência opinativa com os segmentos oposicionistas e em outra parte pela constante inclinação popular em aplaudir, no momento, quem chicoteia poderosos. Não implica compromisso político maior, muito menos de voto. Os eleitores de José Serra, se chamados a decidir entre os dois, votarão, nove em cada dez, em Serra.

EC – O que pensa sobre as ligações dos ministros Gilmar Mendes e Luiz Fux com Sérgio Bermudes? Dono de influente banca de advocacia, Bermudes tem causas tramitando no STF e emprega a mulher de Mendes e a filha de Fux, além de ser generoso com outros ministros como José Dias Toffoli?
Santos
 – Essas relações não são saudáveis, do mesmo modo como são perigosas as que se estabelecem entre políticos e grupos de interesse. Operadores e clientelas estão obrigatoriamente conectados por razões de operação dos sistemas a que pertencem. Por isso, as tentações para o deslize são permanentes, e a vigilância e a autorrestrição mais imperiosas. Esse aspecto ainda é pouco acompanhado no Brasil e menos ainda combatido.

EC – O senhor tem alertado que o comportamento arbitrário de magistrados está provocando inversões na ordem jurídica. Que inversões?
Santos
 – Já me referi a alguns exemplos de imprevisibilidade jurídica, todos em matéria factual. Com as teses do domínio do fato, da dificuldade de imputar crimes a personagens de grande poder (e, na verdade, isso se aplica também ao poder econômico, dimensão que a ministra Rosa Weber descurou) e do abominável pau-de-arara jurídico inventado pelo ex-ministro Ayres Britto de que compete ao acusado provar ignorância em lugar da demonstração acusatória de que teria parceria criminosa por via do conhecimento comprometido, o judiciário privilegiou duas teses controversas, embora dignas de respeito, e uma monstruosidade medieval, fruto da ignorância lógica de um magistrado exibido. Com isso, fica a critério do julgador decidir se houve ou não domínio do fato (provas diretas são dispensáveis), se a ausência de provas é evidência aceitável de inocência ou se resulta de manipulações clandestinas de um criminoso e, finalmente, se o réu foi persuasivo ao argumentar que não possuía conhecimento interessado no crime em julgamento. O juiz está dispensado de sustentar sua sentença em provas, apenas apoiando-as em convencimento subjetivo. Por isso, é possível, sim, condenar sem provas, o que, aliás, foi admitido por vários ministros na Ação Penal 470.

EC – Na sua opinião, o que representa a liminar concedida por Gilmar Mendes à solicitação do MD (Mobilização Democrática) a propósito de tempo de propaganda e acesso ao fundo partidário por novos partidos?
Santos
 – A decisão do ministro Gilmar Mendes quanto à consulta do PSB representou a mobilização de um recurso a que o Judiciário pode recorrer em situações extremas, o que não era o caso. Foi algo intransigente, insensível ao momento da relação tensa entre o Judiciário e o Legislativo, e, ao que parece, inútil, caso se confirme o insucesso da tentativa do deputado Paulinho da Força Sindical e, talvez, de Marina Silva, de criarem novos partidos. De qualquer modo, já está patente que a indiferença do eleitorado diante dessas propostas significa que não existe corrente de opinião pública oprimida pela ausência de representação partidária. Se há interesses estritamente pessoais nas tentativas, aí é outra história, longe de configurar tão grave problema constitucional que justificasse a interferência truculenta do ministro Gilmar Mendes.

EC – Depois da iniciativa do deputado Marco Maia (PT-RS) de barrar decisões monocráticas dos ministros do STF, Nazareno Fonteles (PT-PI), autor da PEC 33, defendeu prisão e afastamento de ministros da Corte que “desrespeitam” o legislativo. São retaliações?
Santos
 – As propostas de Nazareno Fonteles e de Marco Maia têm pouca chance de prosperar, independentemente de mérito, dado o contexto atual em que a maioria do Legislativo e do Judiciário se dispõe a evitar novos atritos.

“Joaquim Barbosa está em evidência pela convergência opinativa com os segmentos oposicionistas e pela inclinação popular em aplaudir quem chicoteia poderosos. Não implica compromisso político nem de voto”

EC – O senhor diz que as ligações de magistrados com advogados não são saudáveis, assim como as relações entre políticos e grupos de interesse. A reforma política poderia combater essas relações e os lobbies com financiamento público das campanhas?
Santos
 – O tema da reforma política é recorrente em editoriais, discursos parlamentares e projetos. Não considero um tema sério, porque responde sempre a circunstâncias fortuitas, sugerindo complexas e controversas engenharias para problemas singulares e circunscritos. Não por acaso as propostas não caminham. Ao contrário do que críticos sustentam, elas não avançam porque as deficiências reais de exercício e representatividade do sistema político brasileiro não requerem, muito menos exigem, engenharias de reforma do porão ao último andar. Todos os sistemas políticos sofrem dos dois problemas em alguma medida, e a insatisfação é universal. Isso é mais do que natural, porque em política há sempre vencedores e perdedores, e, em democracia, os perdedores podem e utilizam o direito de acusar as instituições por seus eventuais insucessos. No Brasil, as instituições vão bem, o que não significa que não possam ocorrer ajustes finos na legislação sobre campanhas eleitorais, suplência e substituição de senadores, controle das ações do Executivo, que, aliás, já são mais transparentes aqui do que na maioria das chamadas democracias tradicionais.

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