JUSTIÇA

STF poderá extinguir marco temporal no dia 28 de outubro

Julgamento da tese que só reconhece direito de povos tradicionais a terras ocupadas ou em disputas na data de promulgação da Constituição repercute sobre processos estagnados de demarcação e identificação
Por Cristina Ávila, de Brasília / Publicado em 16 de outubro de 2020
Em uma sessão, caso o julgamento não seja adiado por um pedido de vistas, o Supremo poderá resolver a questão sobre terras indígenas mais polêmica dos últimos anos

Foto: Renato Santana/ Cimi

Em uma sessão, caso o julgamento não seja adiado por um pedido de vistas, o Supremo poderá resolver a questão sobre terras indígenas mais polêmica dos últimos anos

Foto: Renato Santana/ Cimi

O principal argumento para expropriação de terras indígenas poderá finalmente ser extinto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no próximo dia 28 de outubro, quando o plenário julgará a “repercussão geral” do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365. Na prática significa a possibilidade de derrubar a tese do marco temporal – defendida por ruralistas que dizem ter direito às terras somente povos que as ocupavam ou as disputavam, física ou judicialmente, em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal – o que afeta processos estagnados de demarcação de 310 territórios tradicionais e também 537 que não tiveram sequer providências de identificação.

Uma comitiva Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, sairá de ônibus de Santa Catarina para acompanhar o julgamento em Brasília. Eles vão carregar faixas, apelando pela garantia de direitos constitucionais originários, que incluem território tradicional e cultura. O RE 1.017.365 é um pedido de reintegração de posse movido pela Fundação de Meio Ambiente de Santa Catarina (Fatma) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai), requerendo parte das terras indígenas. Em fevereiro de 2019, esse recurso foi reconhecido pelo plenário do STF como de repercussão geral, o que significa que seu resultado repercutirá em todos os processos em que possa haver alegação do marco temporal.

Povo Xokleng admitido pelo STF como parte no processo

Brasílio (E), liderança Xokleng admitido como parte no processo: “A garantia de territórios não é apenas para os povos indígenas, mas pela água limpa e pelo ar puro que preservamos para índios e não índios”

Foto: Tiago Miotto/Cimi

Brasílio (E), liderança Xokleng: “A garantia de territórios não é apenas para os povos indígenas, mas pela água limpa e pelo ar puro que preservamos para índios e não índios”

Foto: Tiago Miotto/Cimi

“Confiamos em Deus e acreditamos na força da sociedade brasileira. A garantia de nossos territórios não é apenas para os povos indígenas de todo o Brasil, mas pela água limpa e pelo ar puro que preservamos para índios e não índios”, afirma Brasílio Priprá, neto do líder homônimo, que em 1954 foi assassinado na luta pelo mesmo território tradicional Xokleng. Ocupando originalmente florestas de araucárias devastadas por colonos entre Porto Alegre e Curitiba, eles vivem hoje numa restrita área de Mata Atlântica conservada.

Nos anos de vai-e-vem de processos para a garantia das terras tradicionais que tramitam há décadas entre a Funai e o Ministério da Justiça, os Xokleng tiveram por diversas vezes a população espalhada por madeireiros e fazendeiros, sofreram inundação das aldeias pela Barragem Norte no Alto Vale do Itajaí e já tiveram líderes presos pelo estado por serem considerados não índios (questões indígenas são federais). No STF, o governo de Santa Catarina usa o argumento do marco temporal. É a comprovação da hipocrisia da tese ruralista, que julga, condena, expulsa, assassina e depois alega que os indígenas não ocupavam os territórios reivindicados.

Comitivas de indígenas de todo o país irão acompanhar a sessão no STF

Foto: Apib/ Divulgação

Comitivas de indígenas de todo o país irão acompanhar a sessão no STF

Foto: Apib/ Divulgação

Em maio de 2019, o STF admitiu o povo Xokleng como parte do processo de repercussão geral. Notificação e habilitação de partes envolvidas é um preceito jurídico básico em qualquer processo, mas para os índios não é regra, por ainda serem muitas vezes tratados como “tutelados” pelo Estado, como previam antigas leis. “O papel da comunidade é fundamental nesse processo. A conquista do direito de ser parte significa o direito de sustentação oral, entrega de memoriais e outros documentos no processo, de pedir audiências e tudo o que uma parte tem direito em um processo”, explica o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto, um dos defensores dos índios.

Mulheres Guarani Kaiowá protestam contra o marco temporal

Foto: Guilherme Cavalli/ Cimi

Mulheres Guarani Kaiowá protestam contra o marco temporal

Foto: Guilherme Cavalli/ Cimi

“Nossa expectativa é boa. Acreditamos que temos os votos favoráveis”, prevê o advogado. Outro motivo para estar otimista é que, atendendo a pedido dos Xokleng e de organizações indígenas e indigenistas, o relator do processo, ministro Edson Fachin, suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União (AGU), que vem sendo utilizado para barrar demarcações com base no marco temporal. A suspensão foi determinada pelo ministro até que a repercussão geral seja julgada pelo STF ou até o fim da pandemia de Covid-19, caso as definições ocorram antes. Estão suspensos todos os processos de reintegração de posse contra indígenas e de anulação de demarcações.

Foto: Guilherme Cavalli/ Cimi

Foto: Guilherme Cavalli/ Cimi

Entre as comitivas que estiveram em Brasília em março para pedido de suspensão do Parecer 001/2017 da AGU, estava o cacique Ramon Tupinambá, da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, de Ilhéus, na Bahia. “O marco temporal é inconstitucional”, crava ele. “A Constituição é clara quando determina o prazo de cinco anos após sua homologação para demarcação de todas as terras indígenas do país. Isso faz 32 anos e não foi cumprido. Só aí já cai a tese criada pela bancada ruralista e evangélica”, argumenta.

Distribuição de cargos, o veneno dos pastores e conflitos nas aldeias

Os Tupinambá são o primeiro povo a entrar em conflito contra os portugueses em sua chegada ao Brasil, no Massacre do Rio Cururupe, em 1559. Hoje, é um povo de “declaração recente”, ou seja daqueles que eram considerados extintos e devido à luta indígena por direitos que foram assegurados pela Constituição estão novamente em processo de reivindicação de direitos originários. “Estamos buscando nos nossos encantados (seres da religiosidade), em nossa força espiritual, que sejam sensibilizados aqueles que têm a caneta. Tomara não haver prorrogação desse julgamento”, assevera o cacique.

Militares que ocupam a Funai estão mapeando as aldeias e promovendo conflitos internos, denuncia Tupinambá

Foto: Reprodução

Militares que ocupam a Funai estão mapeando as aldeias e promovendo conflitos internos, denuncia Tupinambá

Foto: Reprodução

“Há outras investidas criminosas”, enfatiza ainda. “Os militares que ocupam a Funai no governo Bolsonaro estão mapeando as aldeias e promovendo graves conflitos internos, pra que os índios briguem e se matem eles próprios”, ressalta Ramon Tupinambá. O cacique cita divisões entre os Xavantes (MT) por conta da distribuição de cargos de governo e “o perverso veneno dos guerreiros de jesus” nas aldeias Guarani Kaiowá (MS). “Dia desses, um índio encostou a lâmina de um facão no rosto de uma senhora índia. Os evangélicos estão entrando na mente dos Guarani, que têm sua reza própria secular”, lamenta.

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