MOVIMENTO

A teoria e a prática da economia feminista

por Cátia Cylene / Publicado em 13 de novembro de 2019
Projeto de economia feminista envolve cerca de 500 cooperados desde o plantio de algodão orgânico até a confecção do produto final

Foto: Igor Sperotto

Projeto de economia feminista envolve cerca de 500 cooperados desde o plantio de algodão orgânico até a confecção do produto final

Foto: Igor Sperotto


Visibilizar as dimensões de gênero dentro da dinâmica econômica, como ato essencial ao desenvolvimento da equidade de gênero, com foco na análise da reprodução da vida e não na reprodução do capital. Eis o cerne da economia feminista − corrente de pensamento heterodoxo, promotora de reflexões sobre a diferenciação entre cuidado com a vida e benefício capitalista. É isso que a universidade – por meio de cursos e disciplinas específicas – e organizações civis de mulheres têm buscado: além de debater, implementar de fato.

Tudo que dá sustentação à vida deveria ser contabilizado no Produto Interno Bruto (PIB) dos países, no entanto, a execução dos afazeres domésticos é ignorada pela teoria econômica que não a valora e, portanto, não a contabiliza.

Essa forma de tributar no Brasil impacta principalmente as mulheres, já que são as que recebem salários inferiores, cumprem jornada dupla de trabalho e adentram em maior número no mercado informal, o que implica  desvantagens na aposentadoria. É a chamada feminização da pobreza. Esta realidade é ainda pior entre mulheres negras, que sofrem com recorte racial.

A Justa Trama recebeu, em outubro, o Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social, em duas categorias. Levou o 1º lugar em Geração de Renda e o 3º na Gestão Comunitária e Algodão Agroecológico.

Foto: Igor Sperotto

A Justa Trama recebeu, em outubro, o Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social, em duas categorias. Levou o 1º lugar em Geração de Renda e o 3º na Gestão Comunitária e Algodão Agroecológico.

Foto: Igor Sperotto

Baseado nisso, em 2016, antes do impeachment que destituiu a presidente Dilma Rousseff, o Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014), quando ainda era pauta prioritária de governo, norteou a criação da disciplina de Economia Feminista.

Oferecida pela Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) da Ufrgs, ela fundamenta-se na necessidade de superação das desigualdades sociais, étnico-raciais, de gênero e relativas à diversidade sexual presentes na sociedade e no ensino brasileiro. E, por conta do interesse público gerado pela nova disciplina, em setembro deste ano, a FCE ofereceu um curso de extensão intitulado O papel e os desafios da economia feminista no contexto contemporâneo.

O objetivo do curso é estudar os princípios da economia feminista e discutir como essas ideias fornecem condições para a compreensão das questões de gênero e sua relação com os processos econômicos, oferecendo uma abordagem crítica ao pensamento dominante. O curso teve excelente adesão. Pensado, inicialmente, para 20 pessoas, contou com 70 participantes e mantém lista de espera para próxima edição.

Conforme a professora Janice Dornelles de Castro, coordenadora do curso, refletir sobre a forma do cálculo da produção no país, que exclui o trabalho doméstico − normalmente, 90% ou mais, feito pelas mulheres − leva ao questionamento do status quo. “O que significa esse cálculo do ponto de vista da aposentadoria das mulheres? Da riqueza produzida no país? Quem se apropria disso? O marido? O capitalismo? A riqueza é produzida e alguém se apropria dela”, reflete.

Em alguns países isso já está avançando e os serviços realizados no interior dos lares são remunerados. Existem creches e asilos o suficiente para atender a toda demanda, inclusos nas contas nacionais.

“Aqui no Brasil, quando nasce uma criança é a mulher que para de trabalhar para cuidar. Quando se torna idoso, quando a criança, ou o marido adoece, é a mulher que não vai trabalhar fora para se dedicar a este cuidado”. Existe, além do fator cultural, uma carência de atendimento do Estado. Daí a importância de trazer esta discussão para dentro da Faculdade de Economia, cuja composição é apenas 25% feminina.

Professora Janice Dornelles de Castro, coordenadora do curso O papel e os desafios da economia feminista no contexto contemporâneo, na Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) da Ufrgs

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Professora Janice Dornelles de Castro, coordenadora do curso O papel e os desafios da economia feminista no contexto contemporâneo, na Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) da Ufrgs

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Teorias de economia feminista, Mercado de trabalho e Políticas Públicas de gênero, Economia solidária e Desestruturação do Estado, Empreendedorismo feminino e Ecofeminismo são as temáticas abordadas no curso de extensão.

Para a professora Lucia Garcia, tratar de temas que são candentes da sociedade explica a participação de mulheres jovens que estão adentrando nos movimentos sociais e no mercado de trabalho, além de mulheres que participam há mais tempo destes grupos e buscam compreender qual o papel que desempenham na atualidade.

“A importância de estudar economia feminista é que ela desnuda muitas questões que a economia tradicional não faz. Ela joga luz sobre a segmentação do tempo das atividades necessárias à vida. Que tipos de atividades o mercado valoriza e quais tipos não valoriza? Quem apontou estas diferenças entre formas de trabalho e ação humana que promove a vida?

Do percurso entre a academia e a vida real, verifica-se que no cotidiano das mulheres da periferia não há divisão do tempo entre aquilo que é do mercado e o que é da sua vida particular. Há coletivização para organizar suas ações. Reúnem seus filhos para o cuidado comunitário, por exemplo, quando necessitam sair dos seus lares para batalhar pelo seu sustento.

“As mulheres já procuram esta solução, a academia que não reconhece. Basta ver uma mãe reservando parte do seu tempo para acompanhar os temas de casa de seus filhos. Isso é produção, é trabalho e é aposta na formação, na educação e no futuro. Um cuidado de quem aposta num ser humano que não é só força de trabalho, mas alguém que atua na sociedade”.

As mudanças são visíveis, mas carecem de maior amplitude. As mulheres estão revolucionando o conceito de família para poderem sobreviver e revolucionando o conceito de viver − na base da troca.

“Mas se nós ficarmos focados nos modelos estéreis que não conseguem retratar isso, poderemos até ser premiados constantemente, mas não estaremos dando conta do fundamental que um economista deve dar conta, que é garantir o desenvolvimento da sua gente, da sua terra, do seu país”, salienta a professora Lucia.

Pensar numa perspectiva de como a sociedade se reproduz e como a economia feminista está relacionada à economia solidária e à economia ecológica, colabora para a transformação das pessoas, tanto nas micro quanto nas macrorrelações.

É o que observa a doutoranda em Economia, Cristine Pereira Vieceli. “Por isso a necessidade e a importância de encontrar respostas diferentes para a economia, neste momento de crise”. Nesse sentido existe o Congresso de Economia Feminista Internacional e a tendência é que este movimento cresça também aqui no Brasil, dado o cenário de crescimento do desemprego e da economia informal, da retirada de direitos dos trabalhadores, da crise financeira e social que o país enfrenta.

Constituição política do feminino

A economia feminista propõe uma nova forma de pensar a economia, partindo de um ponto que merece atenção nos tempos atuais: “Qual a vida que merece ser vivida”? Sob esse olhar, partilha valores, sentidos e significados com a economia solidária que propõe uma visão mais ampla das práticas sociais e econômicas com base na reprodução social e não na reprodução do capital.

Para a equatoriana Deici Yvets Morales Medina, doutoranda no PPGCOM/Ufrgs, a constituição política do feminino na América Latina opera na solidariedade e no comunitário, por isso é preciso reconhecer os esforços que fazem as mulheres por viverem num sistema patriarcal e colonial de violências.

“São os trabalhos coletivos das mulheres que estão nos convidando a interpelar os sistemas de produção de exploração e os sistemas de consumo global mercantil. Para gerar outras lógicas de produção e consumo baseadas na relação de afetos, que deve operar na solidariedade e no sentido do comum”, avalia Yvets.

A economia feminista na prática

Essa outra forma de economia encontra campo fértil numa cultura política baseada na horizontalidade, pluralidade, democracia e participação. Exemplo disso é a rede sustentável entre fornecedores da cadeia produtiva de roupas e acessórios, formada por trabalhadores do Rio Grande do Sul, Ceará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Rondônia, da qual a Cooperativa de Costureiras Unidas Venceremos (Univens) faz parte.

Criada por 35 mulheres da periferia de Porto Alegre, no bairro Sarandi, em 1996, a Univens impulsiona a criação da incubadora popular, a Escolinha de Educação Infantil Nova Geração – que atende 56 crianças − e a Justa Trama.

Tudo construído a partir do conceito da economia solidária. Com sede própria, clientes e parceiros fidelizados, hoje envolvem cerca de 500 cooperados desde o plantio de algodão orgânico à confecção do produto final. Como reconhecimento deste trabalho, a Justa Trama recebeu, em outubro, o Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social, em duas categorias. Levou o 1º lugar em Geração de Renda e o 3º na Gestão Comunitária e Algodão Agroecológico.

A dupla premiação foi amplamente comemorada. Para a costureira Nelsa Nespolo, coordenadora da Justa Trama e presidente da Unisol RS (Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários), receber este prêmio no momento em que estatísticas demonstram que o povo brasileiro teve a sua renda diminuída e que a concentração de renda entre os mais ricos só aumentou nos últimos dois anos é de extrema importância.

“Sermos premiados numa Tecnologia de Geração de Renda, onde o princípio fundamental é a justa distribuição da renda gerada entre todos que participam, com uma preocupação com o meio ambiente, mostra que estamos na contramão do rumo que vai o Brasil. Por isto, temos certeza que estamos no caminho certo”, ressalta Nelsa.

A iniciativa ainda conta com o Banco Justa Troca que trabalha com a moeda social chamada Justo, com trocas e empréstimos. Vários estabelecimentos comerciais do Sarandi fornecem desconto em seus produtos e serviços para quem adere a este tipo de economia. Além disso, na sede da Justa Trama também são fornecidos cursos de capacitação e geração de renda, teatro, palestras e debates.

Nelsa tanto é referência por seu protagonismo na economia solidária, que é finalista na categoria Empreendedorismo e Negócios do Prêmio Claudia 2019. “São muitos desafios, mas a gente pode se apoiar e saber que as conquistas de umas podem incentivar outras. As mulheres têm a questão dos cuidados com a família, da dupla jornada, e ainda, quando atuam na economia solidária, têm que pensar toda a gestão e o empreendimento. Como se produz, como comercializa, como garante qualidade, comprometimento e consciência política de cada cooperada. Tem todo esse processo e ter identidade própria é fundamental. Nós, mulheres, temos uma capacidade ímpar e carregamos a razão e o sentimento juntos, o que é muito importante para o desenvolvimento social”.

O poder do protagonismo feminino tem impulso na sociedade atual. “A realidade tem mostrado a força das mulheres neste momento de resistência, pois estamos numa fase de desabono salarial, desvalorização e arrefecimento das políticas públicas, além de um governo federal que é uma aberração”, salienta Daniela Oliveira, socióloga, doutoranda em Sociologia na Ufrgs, pesquisadora e trabalhadora da economia solidária.

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