MOVIMENTO

Insegurança alimentar atinge mais de 800 milhões de pessoas no planeta e 125 milhões no Brasil

Em mensagem à Pré-cúpula da ONU sobre sistemas alimentares, papa Francisco pediu empenho de governantes para que o pão, a água, os remédios e o trabalho cheguem primeiro aos mais necessitados
Por Gilson Camargo / Publicado em 26 de julho de 2021
Em muitas regiões, como o Iraque, situação de fome extrema é agravada por conflitos internos, alterações climáticas e pela pandemia de covid-19

Foto: Ivor Prickett/ Acnur/ Arquivo

Em muitas regiões, como o Iraque, situação de fome extrema é agravada por conflitos internos, alterações climáticas e pela pandemia de covid-19

Foto: Ivor Prickett/ Acnur/ Arquivo

A Pré-Cúpula da ONU sobre sistemas alimentares iniciou nesta segunda-feira, 26, em Roma, na Itália, e reúne representantes de 110 governos, inclusive o do Brasil. Até quarta-feira, 28, as sessões em formato híbrido, presencial e virtual, encaminham o maior evento global sobre acesso a  sistemas alimentares que será realizado em setembro na Assembleia Geral das Nações Unidas. No mundo, a fome extrema atinge mais de 34 milhões de pessoas e 811 milhões vivem o aumento da insegurança alimentar e fome durante a pandemia.

NESTA REPORTAGEM
A série de encontros na capital italiana pretende ajudar a atingir o progresso em todos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O realce vai para o ODS 2, que prevê o alcance da Fome Zero até 2030.

A organização defende que a meta não pode ser alcançada isoladamente. O argumento é que o fim da fome exige considerar “os alimentos como um sistema, revelando uma série de desafios que se cruzam e estão minando o progresso em direção a todos os ODS.” Entre eles estão o meio ambiente e o clima.

Em Roma, chefes de Estado, ministros e diversos atores estarão debatendo propostas de solução, liderados pela vice-secretária-geral e presidente do Comitê Consultivo da Cúpula dos Sistemas Alimentares, Amina Mohammed.

Fome extrema ronda 34 milhões no mundo

ONU quer ações mais “ousadas” para transformar a produção e o consumo alimentares

Foto: Verena Urrutia/ FAO

ONU quer ações mais “ousadas” para transformar a produção e o consumo alimentares

Foto: Verena Urrutia/ FAO

Um relatório conjunto da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e do Programa Alimentar Mundial (PAM), divulgado em março deste ano, já alertava que em algumas regiões do Iêmen, do Sudão do Sul e no norte da Nigéria, famílias estão morrendo de fome.

A situação de fome extrema é agravada por conflitos internos, alterações climáticas e pela pandemia de covid-19 e, em alguns locais, por pragas de gafanhotos.

A FAO e o PAM estimam que mais de 34 milhões de pessoas no mundo “lutam com níveis alarmantes de fome extrema”. Esse número pode aumentar drasticamente se a assistência internacional não for ampliada, alerta o relatório, divulgado pelas duas agências que têm sede em Roma.

Insegurança alimentar e fome

O aumento da insegurança alimentar e a fome – cujos indicadores são diferentes de fome extrema – atingiram entre 720 e 811 milhões de pessoas em 2020, o que representa um aumento de 161 milhões de pessoas nessa condição em relação a 2019.

Apesar de nenhuma região do mundo ter sido poupada pelo agravamento da fome, dados recentes da ONU mostram que as desigualdades regionais pioraram.

Na África, uma em cada cinco pessoas enfrentaram fome em 2020, o dobro da proporção do resto do mundo. Ao lado da Ásia, o continente africano tem a maior taxa de desnutrição de crianças com menos de cinco anos.

A ONU destaca que os números ainda mostram um quadro incompleto da fome, que aumentou mesmo antes da pandemia.

Brasil: 125 milhões privados de alimentos

No Brasil, que é representado no encontro pela ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do governo Bolsonaro, Tereza Cristina, mais da metade dos domicílios (59,4%) se encontram em situação de insegurança alimentar durante a pandemia.

De acordo com um levantamento feito por pesquisadores do grupo “Alimento para Justiça” da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB).

A falta de alimentos em quantidade ou qualidade necessária traz impactos para a saúde, como enfraquecimento do corpo, prejuízos no desenvolvimento físico e mental e aumento da probabilidade de doenças, o que torna a camada mais pobre da população ainda mais vulnerável à Covid-19.

Infográfico: Food for Justice/ Divulgação

Infográfico: Food for Justice/ Divulgação

A segurança alimentar é um direito humano contemplado no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. No Brasil, desde 2010, este direito está assegurado entre os direitos sociais e previsto no Artigo 6º da Constituição Federal.

No entanto, a realidade atual no país está longe do cumprimento dessas garantias. Na pesquisa realizada em novembro e dezembro de 2020, 31,7% dos entrevistados relataram estado de insegurança alimentar leve; 12,7% moderada e 15% insegurança alimentar grave. Segundo o IBGE, em 2013, a porcentagem de famílias brasileiras que viviam com insegurança alimentar era 23%. Entre 2017 e 2018, esse número ficou próximo de 37%.

Papa: crime contra os direitos humanos

Relatório o Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional no Mundo em 2019 indica que um em cada sete bebês nasceu abaixo do peso

Foto: Manan Vatsyayana/ FAO/ Arquivo

Relatório o Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional no Mundo em 2019 indica que um em cada sete bebês nasceu abaixo do peso

Foto: Manan Vatsyayana/ FAO/ Arquivo

Numa mensagem em espanhol lida pelo secretário para as Relações com os Estados do Vaticano, dom Paul Richard Gallagher, e dirigido ao secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, o Papa Francisco alertou, na abertura do evento, para a urgência de um movimento global que assegure o acesso das populações desassistidas aos alimentos e pela erradicação da fome.

É necessária “uma mudança radical”, alerta o Pontífice, diante da exploração da natureza com o uso irresponsável e o abuso dos bens.

“Produzimos comida suficiente para todas as pessoas, mas muitas ficam sem o pão de cada dia. Isso constitui um verdadeiro escândalo, um crime que viola direitos humanos básicos”, diz o comunicado. Na mensagem, o Pontífice recorda que é “dever de todos extirpar esta injustiça através de ações concretas e boas práticas, e através de políticas locais e internacionais ousadas”.

Destaca “como um dos nossos maiores desafios hoje é vencer a fome, a insegurança alimentar e a desnutrição na era da Covid-19”, uma pandemia que projetou ainda mais as injustiças, “minando a nossa unidade como família humana”, sobretudo os pobres e a casa comum.

Nessa perspectiva, continua o Papa na mensagem, a “correta transformação dos sistemas alimentares desempenha um papel importante” para fortalecer economias locais e reduzir o desperdício alimentar, por exemplo. Para garantir “o direito fundamental a um padrão de vida adequado” para alcançar a Fome Zero até 2030, “não basta produzir alimentos”.

Para o religioso é preciso “uma nova mentalidade e uma nova abordagem integral e projetar sistemas alimentares que protejam a Terra e mantenham a dignidade da pessoa humana no centro; que garantam alimentos suficientes globalmente e promovam o trabalho digno em nível local; e que alimentem o mundo de hoje, sem comprometer o futuro”.

Resgate da agricultura

Em mensagem, Papa destacou importância dos conhecimentos tradicionais dos agricultores que não devem ser negligenciados ou ignorados

Foto: Junior D. Kannah/ FAO

Em mensagem, Papa destacou importância dos conhecimentos tradicionais dos agricultores que não devem ser negligenciados ou ignorados

Foto: Junior D. Kannah/ FAO

Francisco afirma que a recuperação do setor rural é uma ação fundamental na pós-pandemia para corrigir “as raízes do nosso sistema alimentar injusto”. Ele destaca a importância dos conhecimentos tradicionais dos agricultores que não devem ser negligenciados ou ignorados. Um reconhecimento que deve ser acompanhado de políticas e iniciativas que atendam plenamente às necessidades das mulheres rurais, promovam o emprego de jovens e melhorem o trabalho dos agricultores nas áreas mais pobres e mais remotas.

“Ao longo deste encontro, temos a responsabilidade de realizar o sonho de um mundo onde o pão, a água, os remédios e o trabalho fluam em abundância e cheguem primeiro aos mais necessitados. A Santa Sé e a Igreja Católica estarão a serviço desse nobre objetivo, oferecendo a sua contribuição, unindo forças e vontades, ações e sábias decisões”, promete o pontífice.

E um vídeo intitulado “Comida para todos: um apelo moral”, com uma prévia lançada nesta segunda-feira, mas que será exibido na sessão da Pré-Cúpula que o Vaticano sediará na terça-feira, 27, Francisco reforça a preocupação com as vítimas da fome e da desnutrição no mundo. O Pontífice chama a todos, novamente, para “mudar os estilos de vida, o uso dos recursos, os critérios de produção até o consumo” para garantir sistemas alimentares sustentáveis.

“Quantas mães e quantos pais, ainda hoje, vão dormir com o tormento de não ter no dia seguinte pão suficiente para os próprios filhos”, indaga Francisco.

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