OPINIÃO

O desafio gaúcho

Mário Maestri / Publicado em 30 de setembro de 1998

É tradicional a choradeira sobre a subalternização nacional dos intelectuais e artistas gaúchos. Cariocas, mineiros e baianos nos discriminariam, invariavelmente. Os paulistas nos odiariam, simplesmente. Estabelecida a premissa, partimos criativos à procura das causas da injustiça.
A nova tese de que somos nós que discriminamos o Brasil, se não é certa, ao menos é consoladora. Para ela, os mais profundos sentimentos atávicos sulinos formaram-se em 1835-45, legando às gerações atuais sentimento autonômico que as impedem de dialogar com a nação.
O RS seria produto de geração de colonizadores livres – portugueses, italianos, alemães, etc. – que jamais mantiveram a cabeça gacha diante do Centro. O Movimento Tradicionalista Gaúcho seria lídima expressão cultural dessa matriz libertária que expressaria o que há de mais puro da diversidade sulina. Terra de livres, de desenvolvimento precoce e distribuição de renda quase equânime; senhores de uma moralidade pública desconhecida no Brasil; conscientes de sua diferença e – por que não – superioridade, os gaúchos voltam-se sobre si, num processo de introversão existencial. Entre nós germinaria a justa consciência que a redenção do Sul encontra-se na autonomia do centro asfixiante com a conquista de um federalismo extremado ou com a conclusão da herança secessionista legada por nossos avós.
O mito de 1835 como cadinho da civilização gaúcha é uma escroqueria da historiografia tradicional. A Guerra Farrapa garantiu sua longevidade sufocando as reivindicações das massas subalternas – a liberdade para os cativos e a distribuição de terra para os gaúchos.
A Guerra Farrapa não foi sequer um movimento de todas as elites. Sua derrota deveu-se mais à defecção de grupos regionais do que à repressão central. Grandes escravistas e ricos comerciantes sulinos não aderiram aos farrapos, impedindo a conquista de centros urbanos como Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. Em 1835, o RS era uma província de economia e sociedade rústicas, dependente da exportação de charque. A Guerra Farrapa foi sobretudo um movimento dos criadores da Campanha – então centro hegemônico – em defesa de interesses setoriais. Em 1835, o norte do RS apenas gatinhava. A imigração alemã iniciara havia uma década e a italiana era coisa do futuro. Nesses anos, as regiões e as classes hoje dominantes ocupavam um status marginal ou inexistiam. O RS atual pouco ou nada tem a ver com o de então.
A subalternidade cultural relativa gaúcha deve-se muito a subalternidade econômica e social, no passado e no presente, do RS, em relação a outras regiões do Brasil. O dinamismo da cultura nordestina ou baiana não se explicam apenas devido à habilidade dos seus intelectuais em vender o peixe regional. As civilizações baiana, fluminense e nordestina são mais profundas do que a nossa. Os mundos açucareiro e cafeicultor escravistas inseriram-se poderosamente na divisão internacional do trabalho dos séculos 16, 17, 18 e 19, aproximando a América da África e da Europa. Naquelas centúrias, o sul luso-brasileiro inexistia ou restringia-se a uma economia de criadores pobres.
Não é por acaso que um Gregório de Matos, um Aleijadinho, um Joaquim Nabuco ou um Gilberto Freire não nasceram em Bagé ou em Livramento, ou que a saga nordestina de Palmares, relatada magistralmente por um gaúcho, não ocorreu na serra dos Tapes, centro dos quilombos gaúchos.
A pobreza material relativa da sociedade pastoril gerou uma realidade cultural relativamente pobre. Tal foi a singularidade dos charqueadores escravistas nesse mundo rústico, que o maior refinamento pelotense foi anatemizado como frescura.
As raízes contemporâneas sulinas encontram-se na imensa reforma agrária realizada, em 1824/1875, pelo poder central. Sem ela, seríamos uma espécie de Uruguai luso-brasileiro, de escassa população e rara industrialização. São recentes as classes e fenômenos históricos capazes de alimentar uma rica produção cultural.
A sociedade colonial Ítalo-germânica foi formada por agricultores pobres, desprovidos de uma cultura nacional unitária. Nossas classes proletárias não possuem a pujança das do centro do país. Na pátria do populismo, encontram dificuldades para autonomizarem-se política, social e ideologicamente.
O grande paradoxo sulino é que apesar do deslocamento das elites agrárias, da Campanha desde fins do século 19, em favor das classes mais dinâmicas, da Depressão Central, da Serra e do Planalto, o latifúndio mantém sua hegemonia cultural e ideológica. Sobretudo a debilidade das classes populares e o conteúdo elitista do tradicionalismo explicam o quase consenso estabelecido em torno do elogio de um monopólio da terra que afundou o sul do Estado na pobreza. Desse consenso não escapam vastos setores da esquerda gaúcha.
Nos limites objetivos da sociedade sulina atual, há um imenso campo para a internacionalização da nossa cultura, se fizermos as pazes com o nosso passado e presente reais, desvencilhando-nos da retórica regionalista, com suas construções virtuais, arbitrárias e melosas do passado e propostas conservadoras para o futuro. Como parte desse saudável exercício, podemos começar reconhecendo que não vivemos num Estado onde todos são brancos, ricos, felizes, alfabetizados e cultos mas que, entre nós, as tensões e as diferenças, sobretudo sociais, que sempre organizaram nossa sociedade, agravam-se, como no resto do país. A mais corrosiva crítica lançada contra a retórica tradicionalista nasceu das classes populares. O MST tem sido um dos poucos movimentos que vem inovando política, ideológica e esteticamente a sociedade brasileira. O fato de que assente poderosas raízes no RS e que um dos seus grandes líderes, Pedro Stédile, seja um gaúcho da gema, lembra-nos que estamos fadados a ser, para o bem e para o mal, na riqueza e na pobreza, parte desse imenso, sofrido e belo país brasileiro. O resto, compadre, é milonga!
* Mário Maestri, doutor em História pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica, é professor da Universidade de Passo Fundo e autor, entre outros livros, de: O escravo gaúcho: resistência e trabalho.

Educação anti-racista e anti-discriminatória no município

Renato Guimarães*

A nossa cidade, apesar de ter alcançado um bom grau de democracia e participação popular, ainda possui uma realidade permeada por posturas subjetivas e objetivas de discriminação e preconceito para com a população negra e com as mulheres.
Acredito que uma das formas de potencializar a superação desta realidade é encarar o poder público de maneira propositiva, a partir da ação do Estado, promovendo a igualdade racial e de gênero.
É papel da escola pública, democrática, comprometida com a promoção do ser humano na sua integralidade, estimular a formação de valores, hábitos e comportamentos que respeitem as diferenças e as características próprias de grupos e minorias. É na escola que deve acontecer a apreensão de conceitos analíticos que venham a inibir a formação de preconceitos e práticas racistas, sexistas e de teor discriminatório.
O combate à prática discriminatória, que tira direitos das pessoas em função de critérios injustos, de suposta inferioridade precisa começar a ser difundido e o melhor lugar para isso é a sala de aula. É necessário que a população se aproprie de forma positiva de suas origens culturais, tanto de raça como de gênero.
O Estado tem, historicamente, no aspecto legal, uma postura passiva diante da discriminação. A sociedade necessita de uma atitude ativa do Poder Público para a promoção da igualdade. O princípio de não discriminação no sentido positivo, ou seja, de pensar políticas públicas, tem sido insuficiente para garantir a igualdade de fato.
Em Porto Alegre, não se pode desconsiderar o esforço do Poder Público Municipal na tentativa de pensar políticas públicas que visem a superação dessa realidade, via proposta político-pedagógica da Secretaria Municipal de Educação. Porém, constata-se que a proposta implementada pelo município não contempla, ainda, o ensino a partir de uma ótica social que não reproduza o preconceito e a discriminação racial e de gênero.
Por isso, defendo a inclusão de conteúdos Anti-racistas e Antidiscriminatórios na rede de ensino público municipal através do Projeto de Lei que tramita atualmente na Câmara de Vereadores. O Projeto prevê tais conteúdos sendo abordados de forma transversal, contemplando diferentes áreas de conhecimento e envolvendo diferentes segmentos da sociedade. A proposta central é rechaçar a exclusão social e propiciar a aprendizagem da participação e exercício da cidadania, através de um ensino que desenvolva na cidade o fim do preconceito e da discriminação aos negros e às mulheres.

* Renato Guimarães é vereador pelo PT na Câmara Municipal de Porto Alegre.

Porto Alegre no Le Monde!

Daniela Kern*

Meados de julho e lá estava eu, na banca de revista comprando o Le Monde Diplomatique do mês. Motivos para lê-lo, tenho vários: seus colaboradores são de alto nível (onde mais a gente encontraria, numa mesma edição, artigos de Noam Chomsky, Pierre Bourdieu, Antonio Negri e Paul Virilio?), os assuntos são de interesse mundial (onde mais a gente pode ler tantos bons artigos de opinião sobre questões políticas, econômicas, sociais e culturais de interesse internacional?) e, o que é mais importante nestes tempos bicudos, não é caro.
Jornal na mão, olhei na contracapa a relação dos artigos que sairiam na edição de agosto. Chamou-me a atenção um que trazia Porto Alegre no título. A primeira reação: descrédito. O Brasil no Le Monde eu até já havia visto, mas Porto Alegre? Vencida pela nossa típica baixa auto-estima, conclui: “Deve ser engano”. E foi. Engano meu, como descobri quando a sorridente professora de francês, no início de agosto, nos perguntou na sala de aula: “Vocês viram Porto Alegre no Le Monde? Vocês viram o artigo sobre o orçamento participativo?” Não, eu não vira, mas queria ver.
Devido à greve da Receita Federal o exemplar do Le Monde de agosto, com o tão esperado artigo, demorou para chegar na banca. Quando consegui comprá-lo, lá estava, no alto da página 3, a manchete: Une expérience exemplaire au Brésil: Démocratie participative à Porto Alegre, num francês fácil de entender. Já em casa, me atirei à leitura da reportagem, realizada pelo enviado especial Bernard Cassen. O repórter, muito entusiasmado, depois de explicar no cabeçalho que com o orçamento participativo os bairros menos favorecidos da cidade conseguem captar recursos que antes eram destinados aos mais ricos, passa a narrar sua participação em uma reunião do orçamento realizada na Lomba do Pinheiro, e a destacar tanto o interesse que o projeto desperta em organizações internacionais, o sucesso que obteve na conferência promovida pela ONU em Instambul (1996), quanto as restrições que sofre por parte dos nossos governos estadual e federal, motivadas por divergências político-partidárias.
A esta altura interrompi a leitura, curiosa para saber o que estava escrito naquele outro artigo da mesma página, Anatomia de um poder popular. Trata-se de um excelente resumo do que é e de como funciona o orçamento participativo de Porto Alegre, resumo que contém ainda indicações de bibliografia sobre o assunto e o endereço do site da Prefeitura Municipal na Internet. Satisfeita, e ao mesmo tempo contrariada por não haver tomado conhecimento de várias daquelas informações antes, voltei ao texto principal, e lá, quem diria, encontrei o que parece ser a explicação para essa minha desinformação parcial: “Os três diários de Porto Alegre e as cadeias locais de rádio e de televisão mantêm um silêncio completo, salvo por edições hostis, sobre a realidade de uma experiência que, no entanto, lhes forneceria matéria para entrevistas ou reportagens substanciais. Eles não se dão ao menos o trabalho de anunciar as datas e lugares das reuniões que ocorrem nos diferentes bairros da cidade”. Mas o repórter, logo adiante, conseguiu aplacar o que a essas alturas eu já poderia chamar de minha fúria quando ressalta que, surpreendentemente, e apesar da mídia, segundo pesquisa recente, “85% dos habitantes da metrópole gaúcha conhecem a existência do orçamento participativo”, e “80% dentre eles declaram que “é uma coisa boa””. Se eu fosse o Cândido de Voltaire, diria que não entendo essa ausência do orçamento participativo nos grandes jornais da Capital…
O texto prossegue com mais informações sobre o funcionamento do orçamento e depoimentos de políticos favoráveis ou desfavoráveis à idéia. Eu terminei a leitura dividida por dois sentimentos. Um, o orgulho de ver um projeto aplicado na cidade onde vivo ter enfim reconhecimento mundial – e que reconhecimento, pois o repórter Bernard Cassen chega mesmo a escrever que o orçamento participativo, por sua “amplitude” e por seu “método, rigoroso e evolutivo”, é uma “experiência de democracia sem equivalente no mundo”. Outro, aquela vergonhazinha fina de quem acaba de encontrar um artigo claro e didático sobre a experiência pioneira que é o orçamento participativo de Porto Alegre, não em um dos grandes jornais locais, como se deveria esperar, mas em um jornal francês.

* Daniela Kern é bacharelanda em História, Teoria e Crítica de Arte, pela Ufrgs. Porto Alegre.

Magistério: atividade penosa

Luciane Lourdes Webber Toss*

A atividade de magistério sempre foi considerada pela legislação como atividade penosa. Penosidade é o que causa no trabalhador desgaste no organismo, de ordem física ou psicológica, em razão da repetição de movimentos, pressões e tensões psicológicas que afetam emocionalmente o trabalhador. Normalmente, salvo a questão física que envolve a Lesão por Esforço Repetitivo – LER, os efeitos das atividades penosas desaparecem após descanso, sendo que as seqüelas, aparentemente, sedimentadas, surgirão com o passar dos anos. Stress, fadiga, alterações de humor, etc., provocadas por tensões emocionais acabam vindo à tona.
A doutrina não é vasta a esse respeito mas, se observarmos, atentamente, o desgaste diário dos professores que suportam, em algumas áreas da categoria, de 50 à 100 alunos por turma, que lecionam em várias Instituições de Ensino, tendo de deslocar-se, muitas vezes, de uma cidade para outra, poderemos perceber que as seqüelas acima referidas têm se manifestado de forma mais rápida e mais freqüente.
Embora, nos últimos anos, para a categoria dos professores particulares, as reposições salariais têm sido progressivas, os docentes, para manter o mesmo padrão de vida e condição social de quatro ou cinco anos atrás, têm trabalhado mais. Em mais de uma escola, em vários turnos, ou no caso dos que mantêm a carga horária sem alterações, com o mesmo número de turmas mas, com muito mais alunos por turma. Obviamente isto provoca desgastes maiores, sendo que os danos apresentam-se mais cedo e as seqüela tendem a não se diluir.
Estranhamente, mesmo que a categoria esteja sofrendo mais os efeitos da atividade nestes últimos anos, o INSS tem ignorado a função de magistério como atividade sob condições prejudiciais à saúde do trabalhador.
A exigência da apresentação do laudo técnico pericial para deferimento de contagens diferenciadas para os professores, requerimento de aposentadoria é, no mínimo, absurdo. Não há como apontar, através de laudo o agente agressor, ou o produto que causa danos à saúde do professor.
Sendo assim, o desgaste emocional e psicológico dos docentes, ao longo do exercício do magistério é, complemente, ignorado pelo Estado, seja através do INSS, seja através da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn ajuizada pelo atual Governo do Estado, distribuída em 1996, no STF, com intuito de não computar, para o magistério, os famosos percentuais de 1.20 para professoras e 1.40 para professores, nos períodos laborados em sala de aula até 1995. Graças à decisão do STF dando provimento (acatando o pedido do Governo do Estado) à ADIn, o INSS, desde março de 1998, não concede mais tal prerrogativa (percentuais de acréscimo citados).
É importante que os professores sejam alertados acerca dos efeitos que a atividade em sala de aula provoca ao longo dos anos. Igualmente importante é que os professores discutam estas questões já que não há programas específicos de saúde do trabalhador para atividades penosas. O fato das seqüelas surgirem de forma lenta e gradual ao longo dos anos faz com que as justificativas médicas sejam pulverizadas, já que se trata, em sua maioria, de conseqüências que envolvem a questão emocional aliada ao desgaste físico (stress, fadiga, alterações de humor, etc.).
* Luciane Lourdes Webber Toss é assessora jurídica do Sinpro/RS.

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