OPINIÃO

A arte de ver os contemporâneos

Por Christian Lavich Goldschmidt* / Publicado em 25 de dezembro de 2012

Foto: Igor Sperotto (acervo) sobre obra de Vera Chaves Barcellos

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

A 9ª edição da Bienal do Mercosul ocorrerá em Porto Alegre entre setembro e novembro de 2013 e teve sua equipe de curadores anunciada recentemente. Como a maior parte do público que frequenta o evento (assim como o autor deste artigo) não é formada por críticos ou estudiosos, fica a pergunta: em muitas oportunidades, o que e como fazer para apreciar as obras ali expostas? É uma arte para todos ou para poucos? Os artistas estão inseridos no seu tempo, materializando as angústias e incertezas com que convivem? Estariam, então, influenciados pelo caos da sociedade contemporânea, retratando tão somente as dores da humanidade, deixando de lado as coisas belas da vida?

Máximo Daniel Lamela Adó, professor de Sociologia da Cultura do curso de Pós-Graduação em Pedagogia da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vai além: A arte contemporânea atua como representação? Não é justamente uma questão representacional que está em jogo? Com a arte contemporânea só podemos “participar” da dor da humanidade? Só há dor na arte? Talvez Denys Cuche responda a essa pergunta quando afirma que “o indivíduo, em função de sua história pessoal, que produz uma psicologia singular, ‘reinterpreta’ sua cultura de uma maneira particular”.

As ações educativas, ou projetos pedagógicos, fazem perceber que a falta de compreensão não é meramente o ranço de um público descontente com o que vê, nem falta de capacidade de interpretação. É, sim, uma dificuldade advinda das diferentes linguagens utilizadas pelos artistas. O que evidencia que as barreiras são vencidas quando falamos a mesma língua, ou quando decodificamos suas mensagens.

Decodificar essas mensagens, porém, requer uma reflexão, mas o não entendimento delas não significa, de forma alguma, má vontade ou falta de capacidade crítica (ou analítica) de seus apreciadores. O diálogo estabelecido entre o público e a obra nem sempre poderá resultar num consenso que aponte para o seu significado. Lamela Adó questiona se a arte teria um papel e, neste caso, se este seria o de carregar uma mensagem. “A arte é teleológica”?

Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio, dizia: “Escrevo para mim, para meu vício, para minha doce condenação”. Praticava a arte literária sem mensagens, mas constituindo mundos, ou seja, modos de viver (no caso dele, pela literatura). Por este caminho, o leitor de Onetti, e da literatura em geral, não ‘deveria’ procurar uma mensagem, mas viver a escrita onettiana via leitura. Não haveria nada a ser decodificado. Além de que, seu verdadeiro entendimento, muitas vezes, só é possível quando a obra, ou seu processo de criação, é revelado pelo próprio autor.

Na Bienal do Mercosul, temos exemplos que nos provam que até mesmo os mais íntimos da arte contemporânea precisaram de interlocutores para descobrir o significado de algumas obras. Justo Werlang, um de seus idealizadores, presidente e vice-presidente de algumas edições da Bienal, afirma que as pessoas são tocadas de forma diferente pelos trabalhos, que a relação do expectador com a peça é totalmente individual, privada e dependente dos conteúdos e das experiências que o espectador traz.

Por meio de experiências pessoais é possível dizer que apesar de se frequentar centros culturais e museus, isso não significa necessariamente que haja admiração, identificação ou, até mesmo, que se goste de tudo o que é visto. As linguagens presentes nas propostas artísticas contemporâneas são, na maioria das vezes, muito novas, portanto estranhas, o que dificulta para a maioria das pessoas “penetrar” em seus conteúdos. Mas o que ou quais seriam essas “estranhas linguagens” que dominam o cenário da arte contemporânea? Tomaz Tadeu da Silva, em seu ensaio sobre a produção social da identidade e da diferença, diz que a linguagem entendida de forma mais geral como sistema de significação é, ela própria, uma estrutura instável. E vai mais longe: “Essa indeterminação fatal da linguagem decorre de uma característica fundamental do signo. O signo é um sinal, uma marca, um traço que está no lugar de outra coisa, a qual pode ser um objeto concreto, um conceito ligado a um objeto concreto, ou um conceito abstrato. O signo não coincide com a coisa ou o conceito”.

Em 2011, ocorreu o curso de formação de mediadores e de professores da 8ª Bienal do Mercosul. Do ponto de vista pessoal, foi uma experiência e uma aventura: de descobrimento, redescobertas e reconhecimentos. Não só pelo encontro com a produção contemporânea, mas também do observador com ele próprio, com seus desconhecimentos, e, principalmente, pelo aprendizado que tudo isso proporciona.

A Bienal de então teve seu discurso curatorial intitulado Ensaios de Geopoética, que tratava da territorialidade e sua redefinição crítica a partir de uma perspectiva artística. A primeira impressão, de um lado, foi de reserva, pois se apresentava (naquela edição) como sintoma da fase atual do establishment artístico de incorporar temas ligados à “arte política”, outsider ou crítica aos seus próprios modos de circulação. Por outro lado, observa-se a validade de enfocar o pensamento que se revela através das “obras de arte” (expressão problemática, sobretudo porque se refere como paradigma da Arte Moderna, e não do Contemporâneo, que se desdobra como subjetividades, proposições, fluxos e processos − não como “obras”).

As atividades conduzidas por alguns palestrantes, dentre os quais, Rika Burnham, educadora do Metropolitan Museum of Art e do J. Paul Getty Museum foram profundamente tocantes. Com uma filosofia de educação para as artes extremamente lúcida, Burnham discorreu sobre a importância do papel do “educador/mediador”, que deve estar comprometido a fazer da mediação uma experiência única, diferenciada, proporcionando um diálogo instigante a ponto de possibilitar que o visitante traga para o espaço expositivo suas experiências anteriores de percepções e interação com a arte.

No decorrer das aulas, ficou claro que o “educador/mediador”, como interlocutor, está sempre em uma posição limite, arriscando-se em uma corda bamba, em busca do equilíbrio daquilo que deve ou não ser dito. E experimentando. O que é um exercício essencial na convivência com as pessoas, tendo em vista que “num mesmo momento é possível encontrar numa mesma sociedade pessoas que têm juízos diametralmente opostos sobre um novo fato”, como mostra Roque de Barros Laraia em Cultura: um conceito antropológico.

Os cursos de formação tinham a preocupação pedagógica em “formar” um mediador que transcendesse a posição de mero reprodutor de discursos – mais ou menos – cristalizados sobre a arte contemporânea. Em função dessa busca de autonomia do mediador e do público, e ao ver as obras nos espaços expositivos, fica a conclusão de que tudo muda em arte com um simples deslocamento, e o mediador propicia ao público o conforto necessário para a expressão dos diversos pontos de vista, ou seja, as múltiplas leituras possíveis. E principalmente, que o encontro com a arte contemporânea suscite a reflexão sobre o mundo contemporâneo.

Focada na discussão do papel do mediador enquanto disparador de sentidos, a preparação foi interessante na medida em que possibilitou uma polissemia de discursos sobre o que vem a ser a tão buscada função do mediador (ou educador) e para que (ou para quem) está a serviço. O que, particularmente, abriu percepções e teorizações acerca da arte contemporânea que, naquele momento, foram indispensáveis para uma maior aproximação com o campo das artes visuais.

Trabalhar com a arte contemporânea aguça os sentidos, dá fôlego à vida, cria pontes para se aproximar deste outro que nos parece tão estranho e distante, por isso, é um trabalho que requer sensibilidade. A mediação nas artes visuais permite um envolvimento no campo artístico local, ao mesmo tempo em que possibilita lançar um olhar crítico sobre (e para) a leitura curatorial e expográfica. Neste sentido, a escolha pelos cursos foi mais artística do que pedagógica, pois findada a Bienal, processos e trocas estéticas importantes desdobraram-se para fora do evento.

A preparação dos mediadores é válida como iniciação às artes, porque o trabalho de mediação requer certo olhar crítico à própria Arte (com A maiúsculo) e seus objetos em circulação, no sentido foucaultiano de perceber também a existência de um campo simbólico baseado em saberes e poderes que configuram/determinam certa expressão de artes: o mundo da “Arte Contemporânea”.

Os seminários variados cumprem o papel de iniciação, porém servem como subtexto teórico ao cotejo ou endosso do discurso curatorial da superfície. O que se vê é a formação de uma pedagogia a serviço de um aparelho ideológico que opera o simbólico, e neste sentido, problemático.

Em suma, a mediação é válida como iniciação às artes, mas aceitar a positividade de sua “formação” como pedagogia de establishment é complexo, pois implica aceitar (ou não) certos a priori, como a tendência de “politização” dos discursos simbólicos em circulação de massas. Volta-se, neste sentido, a uma reflexão do conteúdo e uso ideológicos formados para a formação de mediadores de um discurso simbólico-institucional do porte “Bienal” (com B maiúsculo).

* Jornalista e pedagogo, Pós-graduando em Pedagogia da Arte, Faculdade de Educação/Ufrgs.

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