OPINIÃO

O efeito cobra

Por Marcos Rolim / Publicado em 13 de junho de 2019

Foto: Reprodução/Web

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A Índia possui 275 espécies de cobras, sendo que 65 delas são venenosas e 15, especialmente mortais. Anualmente, um milhão de pessoas são picadas por cobras na Índia e 50 mil morrem. O problema apavorava os britânicos já nos tempos da colonização (1858-1947).

Naquela época, as autoridades inglesas em Delhi introduziram uma “estratégia” para reduzir a quantidade de ofídios na região, oferecendo uma pequena recompensa em dinheiro por cobra morta. Milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza assegurariam, por certo, um exército de caçadores de cobras.

De fato, ao início, a resposta da população pareceu corresponder às expectativas. Com o passar do tempo, entretanto, muitos indianos perceberam que aquela política era também uma boa oportunidade para…criar cobras!

Quando os ingleses se deram conta, suspenderam imediatamente as recompensas. Ato contínuo, os indianos libertaram as cobras que estavam em cativeiro e que não tinham mais valor. O resultado da iniciativa, assim, ao invés de resolver o problema, ou reduzir seu impacto, só o agravou.  Desde então, se usa a expressão “efeito cobra” (cobra effect) para designar intervenções do tipo.

Nos anos 70, um disco do Scorpions, uma banda alemã de pop rock, trouxe em sua capa a foto de uma adolescente nua, com um efeito de “vidro quebrado” que ocultava a genitália da modelo. Foi uma capa de péssimo gosto, de um grupo que se notabilizaria pelo mau gosto. A imagem foi censurada em vários países, o que produziu polêmica que, além de assegurar publicidade gratuita à banda, fez com que a imagem fosse amplamente acessada e compartilhada.

Casos de censura que provocam maior interesse pela obra proibida deram origem ao termo “efeito Streisand”, referência a um processo movido por Barbra Streisand contra um fotógrafo que havia fotografado a mansão da cantora, o que fez com que a foto “viralizasse” na internet.

Na área da Saúde, o fenômeno costuma ser descrito como iatrogenia. Assim, por exemplo, sabemos que a prescrição generalizada de antibióticos está associada ao surgimento de bactérias resistentes a antibióticos. Nesse exemplo, a falta de critério médico produziu, aliás, um efeito iatrogênico bastante sério.

Os exemplos de graves consequências indesejadas derivadas de intervenções que procuravam, sinceramente, bons resultados são infinitos. Normalmente, não é simples identificar o “efeito cobra”, porque determinados resultados surgem de dinâmicas de médio ou longo prazos. Assim, por exemplo, há diretores e professores que gostariam que alunos indisciplinados desistissem de prosseguir seus estudos. Quando ocorre de um desses alunos se evadir, é comum que, em sua escola, haja um certo “alívio”.

Aqueles que se sentem assim imaginam que passaram a ter “um problema a menos”. Na verdade, com a evasão, teremos todos nós – e não apenas os professores – um problema a mais. Jovens pobres e semialfabetizados que se afastam da escola estarão, afinal, muito mais fragilizados e, por certo, bem mais próximos das oportunidades criminais e violentas, quando comparados com seus pares que permanecem mais tempo na escola.

Por esses e outros motivos, precisamos avaliar o impacto das políticas públicas e apenas financiar projetos e iniciativas que, comprovadamente, produzem efeitos positivos, que são, portanto, eficazes e cuja relação custo-benefício seja favorável, o que significa que são eficientes.

A ideia, que parece ser uma obsessão do governo Bolsonaro, de facilitar o acesso às armas de fogo costuma ser sustentada por um discurso cheio de boas intenções. O desafio seria o de garantir à cidadania o direito de defender-se, atemorizar os bandidos, etc.  Na vida real, as dinâmicas decorrentes desse tipo de política são bem conhecidas e não guardam relação com menos violência ou menos crime. O que costuma ocorrer é o inverso.

Mais armas de fogo em circulação e mais pessoas portando armas nas ruas significam, em primeiro lugar, mais risco de uso dessas armas em conflitos banais (discussões no trânsito, brigas de vizinho, etc). Traduzem, também, riscos maiores de suicídio, porque o êxito de quem atenta contra a própria vida depende muito do método empregado. Maior disponibilidade de armas de fogo trará maiores chances de seleção do método mais letal que existe.

O mesmo vale para as taxas de feminicídio. Se os agressores, em geral homens de masculinidade tóxica, tiverem acesso facilitado às armas, serão muito mais capazes de matar. A medida, por fim, também será muito funcional ao mundo do crime. Afinal, é sempre bom lembrar que não há uma só fábrica no mundo que venda suas armas para bandidos.

Todas as armas nas mãos de criminosos em todo o mundo foram, um dia, vendidas legalmente. Depois disso, parte delas migra para os delinquentes, seja por furtos e roubos, seja por desvios de corrupção.

 

Em tempo: se você tem interesse em política de armas e gostaria de conhecer estudos a respeito, pode fazer gratuitamente o download de Desarmamento, evidências científicas, um livro que escrevi em 2005 e que, infelizmente, segue muito atual. É só acessar meu site (www.rolim.com.br) e ir na aba “livros”.

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