OPINIÃO

As múltiplas faces do avanço do mercado privado sobre a água

Por Marco Aurélio Weissheimer / Publicado em 9 de julho de 2020

As múltiplas faces do avanço do mercado privado sobre a água

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Passa a ser obrigatória a abertura de licitação, o que pode abrir as portas para uma entrada massiva de empresas privadas em um setor onde, hoje, empresas públicas atendem 70% da população

No dia 24 de junho, o plenário do Senado aprovou, por 65 votos favoráveis e 13 contrários, o PL 4162/2019, que trata de regulação da prestação de serviços de tratamento de água e esgoto. A aprovação do projeto foi comemorada, pelos seus defensores, como um “avanço para a universalização dos serviços de saneamento básico no Brasil”, que poderiam receber investimentos de até R$ 700 bilhões, por meio da entrada do setor privado no setor.

Os críticos do projeto, porém, afirmam que se trata de um retrocesso que abre as portas para a privatização da água, tanto no acesso quanto no abastecimento, um bem que deveria permanecer de uso público e comum. A aprovação do PL 4162 é mais um capítulo do processo de avanço do  setor privado sobre a água, um processo que não se limita ao saneamento.

A legislação atual já permite a participação privada no setor. Hoje, municípios e o Distrito Federal podem realizar a prestação de serviços de tratamento de água e esgoto de três formas: 1) diretamente, quando empresas públicas executam essas atividades; 2) indiretamente, por meio de contratos de concessão realizados por meio de licitações; 3) por uma gestão associada a consórcios públicos, por meio de um contrato.

O PL 4162 retira a autonomia dos municípios e do Distrito Federal para escolher o modelo de prestação desses serviços e acaba com a possibilidade de gestão associada do Estado com os municípios, via a assinatura de um contrato de programa. Além disso, estabelece prioridade no recebimento de recursos federais para os municípios que efetuarem concessão ou privatização dos serviços de tratamento de água e esgoto.

Umas das mudanças mais importantes introduzidas pelo novo PL é a retirada da autonomia dos estados e municípios do processo de contratação das empresas que distribuirão água para as populações e cuidarão do saneamento. Passa a ser obrigatória a abertura de licitação, o que pode abrir as portas para uma entrada massiva de empresas privadas em um setor onde, hoje, empresas públicas atendem 70% da população.

Os defensores do projeto argumentam que o Estado não tem recursos para garantir a universalização dos serviços de abastecimento e tratamento de água e que isso não pode ser feito sem recursos privados.

Para o deputado federal Glauber Braga (PSOL/RJ), o argumento da falta de recursos para a universalização do acesso é falacioso. Segundo o deputado, as empresas privadas que vierem a assumir o setor vão solicitar empréstimos aos bancos públicos, com juros baixos, com prazo de pagamento longo, quando essas linhas de financiamento poderiam ser disponibilizadas para as empresas públicas.

A experiência internacional com o modelo de privatização no setor da água não tem sido positiva. Segundo o Instituto Transnacional da Holanda (TNI), entre 2000 e 2017, 1,6 mil municípios de 58 países tiveram que reestatizar serviços públicos. Foram ao menos 835 remunicipalizações e 49 nacionalizações, sendo que mais de 80% ocorreram de 2009 em diante.

Entre as cidades que privatizaram esses serviços a partir da década de 1990, Berlim, Paris, Buenos Aires, Bogotá, Atlanta, La Paz e Jacarta, entre outras, retomaram o modelo público em função das promessas não cumpridas da privatização.

Hoje, corporações como Coca-Cola, Nestlé, Pepsi-Cola, Suez e Evian vêm aumentando sua participação no “mercado da água”, intervindo direta ou indiretamente na soberania de países para ampliar o acesso privado à água. Coincidentemente, o relator do PL foi o senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), que tem, entre as várias empresas que controla, uma das maiores produtoras de Coca-Cola no Brasil.

O grupo Jereissati comanda a Calila Participações, única acionista brasileira da Solar, uma das 20 maiores fabricantes de Coca-Cola do mundo e a segunda maior engarrafadora do produto no Brasil. O mesmo Jereissati apresentou, em 2017, o PL 495, que estabelece a criação dos “mercados da água”, prioritariamente em áreas “com alta incidência de conflito pelo uso de recursos hídricos”.

Em nota, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) denunciou que a privatização do saneamento está ligada diretamente à tentativa de privatização da Eletrobras, maior empresa de energia da América Latina. Com a privatização da Eletrobras  e a aprovação do PL 495, a outorga dos principais rios do país passará para o controle de empresas privadas estrangeiras, alertou o MAB.

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