OPINIÃO

Uberização da educação básica: a última fronteira?

Por Cristiano Fretta / Publicado em 11 de novembro de 2021

Foto: Divulgação

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Não há dúvida de que a procura pela inovação e um saudável sentimento de constante insegurança quanto às mais diversas escolhas pedagógicas são eficazes motores para que a escola e a educação como um todo possam estar sempre em busca de mudanças que qualifiquem os processos de ensino e aprendizagem.

Nesse dinamismo, aliada às infinitas particularidades de cada ambiente escolar, que nunca deixam de estar em maior ou menor medida subordinadas a uma miríade de coercitividades burocráticas do Estado, a autonomia do estudante é festejada como sendo mais do que um ideário individual do “pensar autonomamente”.

Acima de tudo, a autonomia compreendida como sinônimo do ideário iluminista do ser totalmente desprendido das amarras do obscurantismo totalitário perspectivado por meio de tradicionais aulas palestradas, silenciosas e conteudísticas.

Para além da utopia, tão comum e confortante em textos e palestras pedagógicas, cabe aqui nos perguntar de que forma hoje se dá essa relação entre autonomia e inovação na educação básica.

Uma das maiores miopias que acometem qualquer observador que tente compreender as arquiteturas que moldam todas as complexidades envolvidas na construção da educação, em qualquer nível, é dissociá-la de seu caráter iminentemente histórico-social, e, portanto, também cultural.

Educação e sociedade

As metamorfoses pelas quais as mais diversas diretrizes e bases, leis, currículos, processos avaliativos e até mesmo salários e expectativas quanto à figura do professor passaram ao longo da história de nosso país evidenciam que educação e sociedade exercem entre si uma relação extremamente dialética, em que esses dois entes abstratos se atraem e se moldam, mas dificilmente se repelem.

O ingrediente essencial, no caso de sociedades abertamente neoliberais como a nossa, é que essa atração não ocorre por meio de uma força irreconhecível, mas se dá por aquele que é a autoridade de praticamente todas as construções histórico-sociais do Brasil: o capital privado.

Portanto, é impossível compreender de que forma ocorrem as mudanças estruturantes na educação brasileira sem que se compreenda como o capital opera e modifica as relações de trabalho, uma vez que uma das funções inegáveis da construção curricular e dos consequentes outros arranjos que em torno desse capital se estruturam é pensar no mundo “depois da escola” ou “depois da faculdade”, que sempre é associado ao mundo do trabalho, independentemente da realidade social do indivíduo.

É inegável que a Indústria 4.0, atrelada à chamada Quarta Revolução Industrial, é um processo ainda contínuo e que em várias medidas nos causa espanto, curiosidade e nos impele a pensar formas diferenciadas de inovar os mais diversos aspectos do dia a dia.

Como sempre acontece no ramo da inovação tecnológica, quando compreendemos o fenômeno é porque ele já está em várias medidas incrustrado em nosso dia a dia em aspectos que muitas vezes nós nem nos damos conta: a integração de diferentes tecnologias, a inteligência artificial e a chamada “internet das coisas” já operam por aí, em nosso mais banal cotidiano, seja por meio da facilidade dos aplicativos de entrega de alimentos, seja pela visão de um trabalhador sofregamente pedalando uma bicicleta carregando em suas costas uma imensa embalagem do iFood, ou seja em uma infinidade de outras realidades.

Estamos hoje vivenciando uma nova reestruturação produtiva ultra-neoliberal, calcada na economia digital, do compartilhamento e do Capitalismo de Vigilância. É necessário compreender a morfologia dessas relações sociais de trabalho para que se compreenda de que forma ela pode influenciar as mudanças na educação básica.

Autoexploração

O discurso neoliberal, arrojado, repleto de vocabulários novos e trespassado pela ideologia empreendedora contrasta com a massa de trabalhadores cuja precarização remonta a condições pré-industriais. No Brasil, isso fica ainda mais evidente: em uma sociedade colonizada até os ossos, desigual até o último centavo e ainda assim crente no mérito individual como ferramenta de ascensão social e, portanto, também de libertação das amarras de um suposto Estado opressor e burocrático, a crença no empreendedorismo salvador acaba por funcionar como uma forma de ocultar e glorificar a autoexploração sem limites.

Obviamente a culpa pela precarização não é do trabalhador, mas sim da conjuntura econômico-social do país. Como ponto marcante na mudança da legislação nacional cabe destacar a reforma trabalhista de 2017, aprovada durante o impopular governo de Michel Temer. Junta-se a tudo isso a verdadeira catástrofe produzida pela condução do (des)governo de Jair Bolsonaro em relação à pandemia de covid-19 e temos uma massa de desempregados dispostos a qualquer tipo de trabalho precarizado que os poupe de passar fome. É claro que o mercado e o capital privado teriam as tais oportunidades para essas pessoas.

O tipo de vínculo que se estabelece entre um “uberizado” (sei que a palavra não é a melhor nem a mais abrangente, mas resolvi utilizá-la por ser a mais reconhecida hoje) é de praticamente não haver vínculo. Aplicativos de entrega de alimentos, por exemplo, normalmente fazem apenas uma rápida entrevista inicial com o trabalhador; o resto todo se dá por meio de um aplicativo, ou melhor, por meio dos famosos algoritmos. São relações de trabalho em que não há direitos, apenas individualização e invisibilidade. Os algoritmos não são seres humanos, e fazem decisões puramente matemáticas e impassíveis, já que máquinas não criam valor, mas sim o potencializam.

Trabalho pré-industrial

Para se ter uma ideia, um ciclista ganha pelo aplicativo iFood entre R$ 8,00 e R$ 13,00 por entrega, sem direito a FGTS, férias, 13º salário. Em caso de acidente ou licença médica, o “colaborador” é simplesmente suspenso das atividades. A antiga tese sobre o fim do trabalho acabou não se confirmando. Ao invés disso, fica o paradoxo: mandamos bilionários a passeios no espaço enquanto condenamos milhões de pessoas a condições de trabalho pré-industriais. Os discursos dos tecnocratas nunca abordam esta questão.

Estas novas configurações do trabalho, no entanto, não são uma nuvem, uma ideia, uma abstração, mas só existem porque são uma coisa em si, assumem uma configuração em uma estrutura social. E se em contextos de trabalhadores desempregados que precisam de um rendimento emergencial o mercado do on demand encontrou uma boa forma de expandir os seus rendimentos sem ter a necessidade de se preocupar sequer com direitos trabalhistas, em outros contextos o camaleão financeiro metamorfoseou a uberização não em um aplicativo propriamente dito, mas sim em outras configurações.

É o caso do Novo Ensino Médio e da nova BNCC. O pouquíssimo tempo dado para que os estados pudessem realizar os cronogramas de implementação da nova base comum já demonstra, por exemplo, um desconhecimento brutal por parte dos elaboradores dos documentos em relação à realidade das rotinas burocráticas que a educação exige.

O esvaziamento de carga horária de disciplinas científicas em prol de uma possibilidade de escolha dos estudantes pode ser muito atraente na teoria, mas na prática pode representar uma maior superficialidade em relação a saberes essenciais mínimos em áreas do conhecimento fundamentais além, é claro, de estabelecer o on demand no currículo escolar por meio da suposta autonomia e assim perspectivar a uberização da sociedade nas entranhas do ensino básico.

Sem debate

Vale sempre destacar que não houve um amplo debate com a sociedade a respeito do Novo Ensino Médio. A consequência a curto e médio prazo deve ser uma maior intensificação das parcerias entre as escolas e empresas provedoras de conteúdos pedagógicos digitais, além, é claro, do exponencial aumento das desigualdades entre o ensino público e privado.

A precarização do trabalho docente também será uma realidade cada vez mais presente, uma vez que os professores estarão mais expostos à terceirização de suas atividades e consequentemente a uma maior instabilidade financeira, que, associadas a um “combo multi” de novas exigências organizacionais, poderão significar aumento das cobranças em termos de entregas e de produtividade pedagógicas. O desdobramento disso pode ser a implementação de um cruel e desgastante cenário de insegurança psicológica e distanciamento daquilo que é o mais fundamental na prática docente: o gosto e a leveza em ensinar.

No entanto, é importante salientar, não devemos, pelo menos a curto prazo, esperarmos que a educação básica opere tal qual um aplicativo de entrega de alimentos. Parece impossível, pelo menos por enquanto, que a escola básica renuncie ao contato humano. Além disso, os ambientes escolares costumam ser altamente burocratizados e hierarquizados, o que demandaria algoritmos e estruturas digitais sofisticadíssimas capazes de substituir esses processos em suas rotinas. Ainda cabe ressaltar que, apesar da constante digitalização do conteúdo, a escola ainda é muito atrelada ao seu ambiente físico, pois ainda cai sobre ela o peso da tradição.

Prof-e

Somado a tudo isso, não sobra muito espaço para o imediatismo puro e simples da uberização. Isso não quer dizer, no entanto, que não existe o on demand do trabalho docente. Recentemente, inúmeros aplicativos de cadastramento de professores surgiram, entre os quais se destaca o Prof-e, uma plataforma que permite que, na falta de um professor em escola pública ou privada, seja possível contratar uma substituição por meio de um dos professores cadastrados na plataforma. Em outras palavras, a uberização da atividade docente já é uma realidade.

Terreno fértil

Há, ainda, um universo a ser desbravado pela Indústria 4.0 na educação. O Novo Ensino Médio é apenas o passo inicial de mudanças que sem dúvida serão operadas de formas cada vez mais rápidas e quase sempre sorrateiras, diluídas no universo das inovações pedagógicas, onde fica complexo diferenciar o que é inovação humanística bem-intencionada da intencionalidade puramente financeira travestida em discursos amenos de protagonismo e autonomia.

A verdade é que a educação básica é uma floresta quase virgem pronta a ser desbravada pelos algoritmos, e os professores talvez sejam um dos atores mais frágeis nesta estrutura toda, pois encontram-se prensados na atração dialética entre a Educação e a Sociedade – e obviamente subordinados a todos os atores que perspectivam essa relação.

Uma vez cruzada a fronteira da uberização da Escola Básica, será difícil sabermos exatamente onde iremos parar, uma vez que os parâmetros curriculares passarão a ser muito líquidos e, portanto, estarão à mercê de contextos cada vez mais específicos e menos sujeitos a normativas governamentais.

O domínio do capital privado sobre a educação tende a dar a ela um ar de neutralidade mercadológica, passível de ser elogiada na televisão por um Luciano Huck, por exemplo – um campo fértil para os exemplos de superação individual e da capacidade da iniciativa privada em prover ambientes arejados e inovadores para que a criatividade e autonomia sejam exercitadas. Por baixo do tapete, podem emergir a precarização, a superficialidade acadêmica, os lucros exorbitantes e, principalmente, o aumento da desigualdade em suas mais diversas esferas.

Autonomia

É necessário que cada escola saiba utilizar a autonomia que o Novo Ensino Médio está oferecendo de forma que não deixe que o rigor acadêmico e a precarização do trabalho docente surjam como consequência de um mundo cada vez mais balizado no mérito individual e no acúmulo de capital.

Mais do que nunca os valores precisam ser humanos, e não apenas financeiros. Dessa forma, é necessário que todos os atores envolvidos na educação básica estejam atentos a essas mudanças, pois elas não ocorrem subitamente. E, quanto mais lentas elas se impõem, mais imperceptíveis elas se parecem. A educação básica precisará ser um ambiente de resistência não no sentido político ideológico puro e simples, mas sim em um sentido mais amplo: que a educação não seja um ambiente maleável na mão dos interesses do lucro puro e simples, mas sim que ela exerça uma autonomia capaz de trabalhar em prol da diminuição dos contrastes de nossa sociedade.

Isso, como já está muito claro na história do país, não passa pela primazia do capital privado, mas por políticas públicas inteligentes e abrangentes que saibam perspectivar na prática mudanças estruturais capazes de diminuir as brutais desigualdades sociais.

 

Cristiano Fretta é professor de Português e Literatura.

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