OPINIÃO

Versões

Veríssimo / Publicado em 8 de agosto de 1997

Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido. Ah, se apenas tivéssemos acertado aquele número (“Unzinho e eu ganhava a sena acumulada”), topado aquele emprego, completado aquele curso, chegado antes, chegado depois, dito “sim”, dito “não”, ido para Londrina, casado com a Doralice, feito aquele teste… Agora mesmo neste bar imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz – aliás, o nome do bar é “Imaginário” – sentou um cara do meu lado direito e se apresentou.

– Eu sou você se tivesse feito aquele teste no Botafogo.

E ele tem mesmo a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo. Por quê? Sua vida não foi melhor do que a minha?

– Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei à seleção. Fiz um grande contrato. Levava uma grande vida. Até um dia…

– Eu sei, eu sei… – disse alguém sentado do outro lado dele.

Olhamos para o intrometido. Tinha a nossa idade e a nossa cara e não parecia mais feliz do que nós. Ele continuou:

– Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o único gol do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol e foi ser um medíocre propagandista.

– Como é que você sabe?

– Eu sou você se tivesse saído do gol. Não só peguei a bola como mandei para o ataque com tanta perfeição que fizemos o gol da vitória. Fui considerado o herói do jogo. No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos pés de um atacante e não me atirar. Como era um “herói”, me atirei. Levei um chute na cabeça. Não pude mais ser goleiro. Não pude mais nada. Nem propagandista. Ganho uma miséria do INPS e só faço isso: bebo e me queixo da vida. Se não tivesse ido nos pés do atacante…

– Ele chutaria para fora.

Quem falou foi outro sósia nossa, ao lado dele, que em seguida se apresentou.

– Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e agora com fama de sortudo também. Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula. O primeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa. Embarquei com festa no Rio…

– E o que aconteceu? – perguntamos os três em uníssono.

– Lembra aquele avião da Varig que caiu na chegada em Paris?

– Você…

– Morri com 28 anos.

Bem que tínhamos notado a sua palidez.

– Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo…

– Nem sair do gol naquela bola…

– E ter levado o chute na cabeça…

– Foi melhor – continuei – ter ido fazer o concurso para o serviço público naquele dia. Ah, se eu tivesse passado…

– Você deve estar brincando – disse alguém sentado à minha esquerda.

Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.

– Quem é você?

– Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço público.

Vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas por versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra. As conseqüências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas, pequenas traições, promoções negadas e frustração. Olhei em volta. Eu lotava o bar. Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia estar contente. Comentei com o barman que, no fim, quem estava com melhor aspecto, ali, era eu mesmo. O barman fez que sim com a cabeça, tristemente. Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas.

– Quem é você? – perguntei.

– Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.

– E?

Ele não respondeu. Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo.

Rubens

Tinha pouca gente no bar quando o homem entrou. Ele sentou numa banqueta do bar, sorriu para o barman e pediu:

– Dois uísques.

Dois?

– Um puro, com gelo, para mim, outro com soda para o Rubens.

O barman sorriu.

– O Rubens vai chegar depois?

– O Rubens está aqui do meu lado.

O barman hesitou, continuou sorrindo, depois deu de ombros. Tudo bem. dois uísques, sendo um com soda para o Rubens. Colocou os dois uísques na frente do homem, que empurrou o que tinha soda para o lado. Depois de tomar o seu, o homem falou.

-Rubens, telefone para casa e xingue a sua mulher. Agora. Ela compreenderá.

Em seguida o homem tomou o uísque com soda também e confidenciou para o barman:

– Na verdade eu não bebo, Só venho para acompanhar o Rubens e evitar que ele beba demais. Notou como eu tomo o uísque dele sem ele perceber? É o jeito. Senão ele fica inconveniente. Canta “Conceição”. O diabo. Põe outro soda aqui pro Rubens não notar que eu bebi o dele.

Mas ele é parente seu?

– Que parente? Eu nem conheço.

– Mas então porque…

– Olha aqui, não fala assim do Rubens. É um grande cara. Teve uma vida cachorra, entende? Cachorra. Não foi nada que quis ser na vida. Tem problemas em casa. Olha, ele está voltando e vai lhe acertar uma.

– Mas o que foi que eu fiz?

– Fica aí insinuando que ele é doido. Só porque tem um amigo imaginário. Pois o amigo dele sou eu e eu existo. Ou não existo?

– Calma, calma.

– “Conceição, ninguém sabe…” Põe mais dois aqui. Um só com gelo e um com…

– O senhor não acha que já bebeu demais?

– Como é que eu vou saber? Estou bêbado.

– Acho que chega.

– Então traz só o do Rubens.

– É melhor o senhor ir pra casa.

– Não contraria o Rubens que é ele que tá pagando!

As crônicas desta edição foram extraídas, com a autorização do autor, de Novas comédias da vida privada, L&PM Editores, 1996

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