OPINIÃO

Três meninas

Elisa Lucinda / Publicado em 21 de abril de 2000

Agora dei pra isso: volta e meia me ocorre um pensamento profundo, uma noção nova por dentro das coisas e eu lembro logo: tenho quarenta anos.

Ando pensando nisso todo o tempo, como quem se acostuma, como quem se relaciona com a contagem e com as mudanças. Quarenta anos! Minhas pernas bonitas vigorosas. Um leve amarrotado na pele dos joelhos, mas a rótula nunca fora mesmo um lugar de beleza explícita e não me lembro dela aos vinte anos.

Quando se tem vinte anos, os joelhos nem sequer existem. O vigor dos passos não nos deixa vê-los. Existem sim coxas. E coxas mais que pés e canelas. Agora não, quarenta anos, embora não me tenham surpreendido, trazem uma mostra do tempo fixado nas rugas dos joelhos e dos caminhos.

Tenho gostado do tempo que gastei. Tenho andado com orgulho dele. Como se dissesse pra mim a cada frase, a cada pé de ato: “agora sei”. Como se não tivesse dito isso aos vinte anos, aos trezes, aos dezesseis.

Das sabedorias confirmo algumas: a minha menina não largo. Nunca larguei. Jamais a largarei. é ela quem me faz correr, saltar, pular, brincar nas circunstâncias, cheia de esperança sempre. Ela ri das coisas mais simples e chora quando dói. Moleca, leva-me nova e sem objetivos cosméticos, mas dá resultado isso.

Carrega também a mulher em quem sonhava ser desde pequena. Era grávida dela, daquela que engravidaria, teria filhos, maridos e por isso ensaiei tanto com bonecas e irmãos.

Essa mulher quando se concretizou, eu estava pronta de braços abertos. Já sabia cozinhar, amar meu homem e trabalhar meu ofício. Adoro-a e vou levá-la para o túmulo com o prazer molhado e de temperatura altíssima que trago no entre pernas do coração.

Depois tem a velha, Dona Elisa. Ah, essa eu sempre ensaiei. Ensaio até hoje exaustivamente. Olhava minha vó e já sabia desde novinha que eu não só um dia seria, mas desejava ardentemente: ser avó. Tive para isso no mínimo dois modelos opostos: uma ani mada, paterna, macumbeira e comemorativa, e outra rancorosa, materna, católica e dolorida. A que escolhi seguir é uma festa geradora de dinastias.

Sempre soube imitar-lhes a voz. Adoro velhas arrumadas e vaidosas e gostosas. Sábias em tudo, essas velhas já eram eu desde sempre. De mãos dadas a essas três meninas de idades diferentes, embora atemporais, atravessei até aqui. Estamos indo bem. Rezei muito por isso. Ajoelhei pouco. Por isso esses joelhos amarrotados não se explicam com facilidade. Tenho quarenta anos e brinco de roda com essas senhoras mulheres. Colheres do que fui procurando e provocando.

Olho-me no espelho com uma incrível satisfação. A etnia me reserva um cardume de não rugas à volta dos olhos, umas marcas de expressão provocadas pelos risos e choros contumazes. Nenhum arrependimento: o quadro é bom e olhar-me no espelho não é um estranhamento. é claro que sou eu. Vigiei-me dias a fio até aqui. Gosto do que vejo. Ocorre que o tempo é transparente, silencioso constante, sutil e competente. Espalhafatosamente age em resultados sem que o flagremos processo. A operação é minimalista e quem quiser assistir ao espetáculo de transformação sem se chocar tem que ser especialista em crepúsculo. é difícil flagrar exatamente o que seja crepúsculo. Sabe-se dele palavra, mas de fato quando se vê, já é noite. Eu tento. Brinco com eles: crepúsculo e tempo. Mas o que faz de mim feliz aos quarenta é que gosto das luzes que o percurso me dá. Gosto dos prêmios. Sei mais coisas, sou mais confortável com as regras do jogo e sua permuta inegociável: a juventude pela sabedoria. Quer? Quero.

Agora dei pra isso. quarenta nos. Penso nisso. E parto como se fosse nascer amanhã mais equipada, mais aberta. De noite, no meio da poesia chamo a menina, a mulher e a velha para uma reunião. A festa é animada. Chama-se vida. As meninas adoram.

*Elisa Lucinda é atriz e poeta

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