OPINIÃO

A narrativa

Luis Fernando Veríssimo / Publicado em 7 de setembro de 2012

Ilustração: Ricardo Machado

Ilustração: Ricardo Machado

Ilustração: Ricardo Machado

Fizeram um filme do romance apocalíptico do Don DeLillo chamado Cosmópolis. O diretor é David Cronenberg. O filme é sobre um dia na vida de um jovem financista, um dos mestres do universo, que comanda seus negócios internacionais de dentro de uma limusine impermeável enquanto lá fora o mundo – ou pelo menos Nova York – desmorona. No filme, há uma fala, não sei se do DeLillo ou do roteirista, que define tanto o poder do jovem protagonista, que pode arruinar nações inteiras com um toque no seu celular, quanto o caos que o cerca. “Toda riqueza se transformou em riqueza apenas pela riqueza, e o dinheiro, tendo perdido sua qualidade de narrativa, passou a só falar com ele mesmo”.

Perfeito. O dinheiro perdeu seu papel na grande narrativa do capitalismo que vem da acumulação primitiva de capital e da industrialização e chegou à globalização, e hoje é apenas um interlocutor de si próprio.

Você, eu e a maioria da população brasileira teríamos motivos para nos indignar com a afirmação de que nosso salário é normalmente reforçado por propina, vinda sabe-se lá de onde, e que Havelange e Teixeira só estariam sendo um pouco mais brasileiros do que o normal. Mas, nos mesmos jornais que trazem a notícia da denúncia de Havelange e Teixeira e a revelação de que a Fifa nos considera todos corruptos, lemos que o suplente do Demóstenes Torres, cassado pelas suas ligações com o Carlinhos Cachoeira, também tem ligações com o Carlinhos Cachoeira, além de precisar explicar por que deixou de declarar boa parte do seu patrimônio ao fisco. Fica-se com a impressão de que a Fifa tem razão.

A narrativa acabou, a riqueza se acumula entre poucos e beneficia ainda menos, e o dinheiro, desobrigado de fazer sentido e de seguir qualquer espécie de roteiro, só produz monstros como o jovem financista do filme. O capital financeiro dita a história econômica do mundo e inventou uma nova categoria literária: o diálogo de um só.

Gostei de saber que um grupo de economistas de várias partes do mundo lançou um manifesto criticando o que parecia ser uma quase unanimidade – as exceções eram Paul Krugman e três ou quatro outros – a favor das medidas de austeridade e sacrifício de gastos sociais para combater a atual crise econômica global provocada pelo capital financeiro. O grupo reage à ortodoxia monetarista que faz a vítima pagar pelos desmandos do vilão e tenta interromper o autodiálogo do dinheiro endossado por tantos economistas. Felizmente, não por todos.

A grande narrativa do capitalismo foi excitante, enquanto durou. Revolucionou a vida humana e, junto com suas barbaridades, fez coisas admiráveis. Tudo que era sólido se desmanchava no ar, para ser recriado no ciclo seguinte. Mas nem Marx previu que seu fim seria este: no meio de um mundo em decomposição, o dinheiro falando sozinho.

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