OPINIÃO

O triunfo de Carl Schmitt no Brasil

Publicado em 13 de outubro de 2016

Em recente artigo sobre a crise política brasileira (Os países não se demoram nas encruzilhadas – 1ª parte), o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos definiu o que se passou no Brasil nos últimos meses como “triunfo de Carl Schmitt (primazia do soberano) sobre Hans Kelsen (controle judicial da Constituição)”.

Essa vitória, acrescentou Boaventura, foi assegurada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao consentir, por ação ou omissão, com anomalias constitucionais, violações do Código Penal e interpretações as mais diversas que foram se acumulando ao longo do processo das investigações da Operação Lava Jato. Rigorosamente falando, o golpe foi parlamentar-judicial e não apenas parlamentar”, afirma o sociólogo.

O triunfo de Carl Schmitt no Brasil

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

O ministro do STF, Marco Aurélio Mello, criticou várias vezes os procedimentos adotados pelo juiz federal Sérgio Moro

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Uma voz solitária do STF a denunciar essas anomalias constitucionais foi a do ministro Marco Aurélio Mello. Desde o início deste ano, Marco Aurélio vem criticando o que considera ser um perigoso movimento de atropelo da ordem jurídica no país. Em diversas manifestações, o ministro criticou a flexibilização do princípio da não culpabilidade, a liberação para a Receita Federal do acesso direto aos dados bancários de qualquer cidadão brasileiro e procedimentos adotados pelo juiz Sérgio Moro, como no episódio do vazamento do conteúdo das interceptações telefônicas, envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a então presidenta Dilma Rousseff. “Divulgação por terceiro de sigilo telefônico é crime, está na lei. Ele simplesmente deixou de lado a lei. Isso está escancarado. Não se avança culturalmente, atropelando a ordem jurídica, principalmente a constitucional”, afirmou em entrevista ao site Sul21.

Um grupo de 19 advogados do Rio Grande do Sul ingressou com uma representação junto ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região pedindo a instauração de um processo administrativo disciplinar contra Sérgio Moro e seu afastamento cautelar da jurisdição enquanto durasse o processo por conta do episódio do vazamento das escutas telefônicas envolvendo Lula e Dilma. Na mesma linha de Marco Aurélio Mello, os advogados acusaram Moro de cometer ilegalidades ao violar o sigilo de gravações de conversas telefônicas envolvendo a então presidenta da República e divulgá-las para meios de comunicação. Além disso, questionaram a realização de interceptações telefônicas sem autorização judicial.

Abrindo mão da lei em nome de “situações excepcionais”
No dia 22 de setembro, a Corte Especial do TRF4 manteve por 13 votos a um o arquivamento da representação dos advogados. O relator do processo, desembargador Rômulo Pizzolatti, disse que não viu indícios da prática de infração por parte de Moro e reivindicou a noção de estado de exceção para justificar as práticas do juiz de Curitiba. Para Pizzolatti, a Operação Lava Jato “constitui um caso inédito no Direito brasileiro, com situações que escapam ao regramento genérico destinado aos casos comuns”. Na conclusão de seu voto, o relator diz que o “ineditismo” da Lava Jato “traz problemas inéditos e exige soluções inéditas”.

Único voto contrário na decisão do TRF, o desembargador Rogério Favreto considerou inadequada a invocação da teoria do estado de exceção, sustentada por Eros Roberto Grau em alguns votos no Supremo Tribunal Federal e reivindicada pelo relator para a adoção de “soluções inéditas”. “O Poder Judiciário deve deferência aos dispositivos legais e constitucionais, sobretudo naquilo em que consagram direitos e garantias fundamentais. Sua não observância em domínio tão delicado como o Direito Penal, evocando a teoria do estado de exceção, pode ser temerária se feita por magistrado sem os mesmos compromissos democráticos do eminente relator”, advertiu Favreto.

“A Constituição existe para nos proteger do canto das sereias”
Na mesma linha, o advogado Lenio Streck, membro da Comissão Permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), questiona: “Quem vai nos proteger disso que criamos no sistema de justiça? Nenhum país do mundo admitiria que um juiz fizesse uma escuta da presidente da República e divulgasse o conteúdo dessa escuta na mídia”. Streck lembra uma passagem da mitologia grega para falar o valor da Constituição contra a ideia de “abrir mão dela” em situações excepcionais:

“É a história de Ulisses e sua tentativa de retornar à Ítaca. Ele ordenou aos seus homens que o amarrassem no mastro do navio e não obedecessem a nenhuma outra ordem que ele desse depois dessa. A sobrevivência dele dependia de que o amarrassem ao mastro e não o soltassem, mesmo que ele ordenasse isso depois. ‘As correntes me salvarão do canto das sereias’, disse Ulisses. Pois essas correntes representam o valor da Constituição. A Constituição existe para nos proteger do canto das sereias. Ela é contra majoritária. Foi feita para nos proteger de maiorias eventuais que podem nos destruir”.

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