OPINIÃO

A vitória das ignorâncias

Por Moisés Mendes / Publicado em 13 de novembro de 2017

Foto: Reprodução Facebook

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Inventei de dizer na semana passada, em encontro da Feira do Livro sobre O jornalismo e o golpe, que a direita avançava sobre os escombros das ignorâncias que havia produzido. Assim, no plural. Na parte dos debates, fui pego pela palavra por alguns participantes, porque estaria enquadrando o povo como ignorante.

Não chamei e não chamaria ninguém de ignorante. Tentei mostrar, sem nenhuma originalidade, que o golpe, as eleições municipais que resultaram nas escolhas de Doria Júnior em São Paulo e de Marchezan Júnior em Porto Alegre e os avanços dos golpistas (morte da legislação trabalhista e ataques à Previdência, à saúde, à educação etc) não se sustentavam apenas na desinformação superficial e na apatia.

O avanço do golpe é produto da exploração das ignorâncias mais profundas que a própria direita produz. A direita percebeu que o desconhecimento da realidade política contaminou a classe média e que isso ajuda a produzir inércia. A direita descobriu agora o potencial das ignorâncias como nunca havia percebido antes.

Estamos em tempos de ignorâncias. Mas as esquerdas evitam admitir que o povo que elegeu Doria e Marchezan não contava com informação suficiente para saber que nenhum deles era ‘novo’. Marchezan é tão velho quanto alguns coronéis do golpe.

As esquerdas acham que, se apontarem para as ignorâncias, estarão depreciando o povo. E o povo, que cada um enxerga onde e como quer, não poderia ser desqualificado. O povo, como ente superior da democracia, não pode ser ofendido.

Marchezan venceu em todas as vilas de Porto Alegre. Todas. Não foi a classe média, sozinha, que assegurou a vitória do tucano. O povo da periferia, com boa parte de ex-lulistas, elegeu Marchezan. Também foi assim em São Paulo e na maioria das capitais.

As esquerdas subestimaram a capacidade da direita de disseminar ignorâncias nas periferias. E agora sofrem diante do que não conseguem reverter. Dizem que o povo teria optado pelos candidatos da antipolítica (que na verdade fazem a política contra o povo) por vários motivos. Pelo antipetismo, pelo cansaço da democracia e basicamente pelo sentimento generalizado de indignação com a corrupção.

Mas todos esses sentimentos misturados não deveriam se sobrepor à capacidade de discernir sobre as escolhas feitas. Um desejo de vingança contra a política dita tradicional não poderia ser maior do que a capacidade de ver que Marchezan e Doria são o que existe de pior da política tradicional.

Mas a política não tem essa racionalidade, e o povo não teve acesso a essas informações. Muita gente não sabia que Marchezan existia, porque Marchezan foi um dos mais medíocres deputados das últimas legislaturas. E as esquerdas não conseguiram alertar o eleitor para isso. Nem que Doria é o falso apolítico. Eles e os outros foram eleitos pelos ressentimentos, pelos desencantos e pelas ignorâncias.

Minha conversa sobre o jornalismo e o golpe aconteceu dias antes da publicação de dois textos que poderiam ter contribuído com minha defesa. Se tivesse acesso aos textos, eu poderia ter juntado mais argumentos para afirmar que estamos quase todos em estado de ignorância, em estágios variados.

Um dos textos, que vi sábado no perfil da professora Esther Grossi, é do sociólogo português Boaventura dos Santos. Boaventura lembrou, em conferência na UFRGS, que “as ideias dominantes têm que ser dominantes também dentro das classes dominadas”. Parece óbvio, mas também é assim que a dominação é exercida.

Ele diz mais:  “Em nossas sociedades, as classes dominadas aceitam as ideias dominantes. Aliás, hoje nós vemos isso por todo lado. A perda do social está a permitir exatamente que a hegemonia das classes dominantes seja cada vez maior. É por isso que as vítimas se viram contra as vítimas. Por essa razão é que as vítimas elegem seus próprios opressores”.

O outro texto é do professor Francisco Marshall e foi publicado domingo em Zero Hora. Marshall escreve: “No século III d.C., viveu no Império Romano o biógrafo erudito Diógenes Laércio, autor de Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, um ótimo guia para a filosofia antiga. É dessa obra a frase atribuída a Sócrates: só há um bem, o conhecimento, e um mal, a ignorância. Em grego, episteme (ciência, conhecimento elaborado) ou amathia (falta de aprendizado)”.

E Marshall conclui: “Há séculos a humanidade enfrenta esse jogo insólito, em que os que apostam na ignorância perdem pelo que são e os que apostam no conhecimento ganham pelo que ainda poderemos ser, melhores e mais felizes”.

É o que as esquerdas precisam comprovar, ao lado do povo. Que ainda têm a capacidade de contribuir para a busca da felicidade dos que somente serão felizes se tiverem conhecimento. As esquerdas poderão rearticular forças quando passarem pela avaliação das suas derrotas fora das eleições.

A maior das derrotas é a da informação, da comunicação, da incapacidade de contrapor algo com algum fundamento e algum sentimento ao esforço da direita de produzir ignorâncias.

As esquerdas perderam esse jogo. O povo que elege Marchezan não é apenas um povo ressentido, é um povo manipulado. As ignorâncias premiaram os que as produziram. Não há democracia sob ignorância.

O Brasil amorfo, encaramujado e constrangido é o Brasil que a direita conseguiu ludibriar com as passeatas contra Dilma, com a história das pedaladas, o golpe, a ascensão do Quadrilhão ao poder, com as ‘reformas’, com a destruição dos serviços públicos e com a caçada a Lula.

Vivemos no país das ignorâncias produzidas todos os dias pelos políticos, pelos empresários, pela imprensa. Com o Judiciário, com o Supremo, com Bolsonaro e com tudo. Vivemos no país dos que, também à esquerda, preferem ignorar as ignorâncias.

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