OPINIÃO

BNCC do ensino médio prejudicará jovens pobres

Publicado em 3 de maio de 2018

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Brasília – O presidente do CNE, Eduardo Deschamps, a secretária executiva do MEC, Maria Helena Castro e o ministro da Educação, Mendonça Filho participam da entrega da BNCC

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Negar aos jovens o direito a uma formação integral, especialmente na educação básica, em todas as áreas de conhecimento, é condená-los à uma educação inferior, sem qualidade e meramente instrumental. E serão os jovens pobres, matriculados nas redes públicas, os maiores prejudicados, aumentando ainda mais o fosso que separa os estudantes das escolas públicas em relação aos estudantes das escolas privadas.

O MEC divulgou, no último dia 3 de abril, a proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o ensino médio, que será um instrumento de orientação dos currículos a serem desenvolvidos pelos diversos sistemas de ensino estaduais e municipais do Brasil. Esta proposta, para ser entendida na sua plenitude, deve ser analisada no contexto da Lei da reforma do ‘novo’ ensino médio” (Lei 13.415/2017), imposta por uma Medida Provisória, sem debate com a sociedade e sem a participação dos jovens estudantes, os maiores interessados.

Atualmente, o ensino médio é composto por 13 disciplinas obrigatórias, consideradas um excesso. Esta predominância de disciplinas é questionada e apregoa-se a necessidade de uma formação por áreas de conhecimento e interdisciplinar. Porém, para Eduardo F. Mortimer, professor da Universidade Federal de Minas Geias (UFMG) e integrante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), “para a idade em que estão os alunos do ensino médio, essa interdisciplinaridade tem que ter por base uma sólida visão das disciplinas que compõem o currículo e, portanto, não se pode abrir mão da formação atual, que é disciplinar para esse campo de atuação dos professores. O ensino médio é justamente o momento em que as disciplinas se configuram em toda a sua plenitude”.

O que mais se destaca nesta lei do ensino médio é a não obrigatoriedade de as escolas oferecerem os cinco itinerários (linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional). Assim, as escolas, não sendo obrigadas, poderão simplesmente optar por oferecer alguns itinerários em detrimento de outros, especialmente onde faltam professores, como é o caso da física e química, não permitindo que estudantes pobres de escolas públicas cursem certas áreas, especialmente a de ciências naturais.

Agora, a BNCC para o ensino médio, completa este quadro legal, estabelecendo que apenas os componentes curriculares de português e matemática são obrigatórios. Ou seja, a reforma do ensino médio e a BNCC facultam oferecer menos para quem mais precisa: os jovens pobres das escolas públicas.

Outra aparente inovação é a substituição dos saberes e conhecimentos pelas competências, constituindo-se num dos elementos mais graves da atual proposta na BNCC, visto que atende a uma demanda dos interesses do grande capital. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) defende que os estudantes apenas saibam ler e escrever, que façam as quatro operações matemáticas básicas e que compreendam a lógica formal simples, ou seja, entendem que uma coisa tem uma causa e um efeito (Documento CNI/2010).

Segundo Allan Kenji, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a BNCC vem “completar e, de fato, instituir que a dimensão do conhecimento já não é mais um requisito escolar. Minha hipótese é que ela flexibiliza o suficiente para que se consiga ofertar, para diferentes escolas e para diferentes frações de classe, diferentes tipos educativos. Você pode ter essa escola premium para formar as frações que vão dirigir empresas e negócios, e ter para diferentes tipos de escola pública, um direcionamento das habilidades das competências. Para nós, isso significa a possibilidade de eles ofertarem diferentes tipos de sistemas de ensino, conteúdos e materiais didáticos para diferentes frações de classe”.

Nesta perspectiva, o professor Eduardo Mortimer  acrescenta que na “conjuntura atual, as competências e habilidades previstas na BNCC já nasceram mortas, justamente por não se adequarem ao sistema fortemente disciplinar do ensino médio. Talvez seja bom mesmo criar uma demanda por um ensino interdisciplinar. Mas com certeza, para a idade em que estão os alunos do ensino médio, essa interdisciplinaridade tem que ter por base uma sólida visão das disciplinas que compõe o currículo e, portanto, não se pode abrir mão da formação atual, que é disciplinar para esse campo de atuação dos professores”.

Outro grande desafio não resolvido na proposta de BNCC é tocante a formação de professores. Atualmente, a maioria das universidades formam professores por componentes do currículo do ensino médio: física, química, história, geografia, biologia, matemática, filosofia, etc. Mas quando analisamos o que a BNCC sugere como conteúdos nas cinco áreas de conhecimento, não é possível reconhecer nenhum componente curricular praticado na formação disciplinar. É evidente que o discurso da interdisciplinaridade soa bem aos nossos ouvidos, porém, são raríssimos os cursos que formam professores em currículos interdisciplinares. Agrava-se ainda mais esta dificuldade pois ela requer que os professores tenham carga horária e condições de trabalho para reuniões entre as áreas, planejamento sistemático e continuo, formação continuada e dedicação quase exclusiva numa escola.

A realidade da docência brasileira na educação básica é o oposto da sonho da BNCC apresentada. Dos 494 mil professores que trabalham no ensino médio, 228 mil (46,3%) atuam em pelo menos uma disciplina para a qual não tem formação, enquanto, apenas 53,7% atuam com formação adequada em todas as aulas dadas. Sociologia, filosofia e artes registram os piores resultados. Física e química vêm na sequência. Somente 27% dos professores que lecionam física no Brasil têm formação na área. Até no ensino fundamental 41% dos professores dão aulas em disciplinas para as quais não tem formação. Os professores do Brasil são os que mais horas trabalham por semana, atendem o maior número de alunos na média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e recebem cerca de 40% a menos que a média de outras profissões com o mesmo nível de escolaridade.

A concentração da oferta educacional por grandes grupos econômicos é assustadora e irresponsável. Um país não pode permitir que na educação superior, 75% das matrículas sejam privadas. A Kroton é o maior grupo educacional do mundo, com 877 mil matrículas (dado é de 2016). Praticamente o dobro da Estácio de Sá, segunda colocada, que tem 436,3 mil. A terceira é a Unip, com 403 mil matrículas, num universo de 6 milhões de matrículas no setor privado. Na educação básica, dos 44 milhões de estudantes, 82% estão nas públicas.

A hipótese de Allan Kenji (UFSC) é a de que esses grupos controladores vão adquirir os sistemas de editoras e os sistemas de ensino, porque o foco deles é o fundo público, seu mercado são as escolas de educação básica públicas. E aí é que está o perigo e a real conexão entre a reforma do “novo” ensino médio, a proposta de BNCC para o ensino médio, a noção das competências e habilidades defendidas pela CNI e o ataque as humanidades em processo no governo atual.

A tendência nossa lógica, pensamos e concluímos, é que estão destruindo a educação e a escola pública brasileira, diz o pesquisador da UFSC. Mas não. Não estão. Estão sim adequando a educação ao tipo de lugar que foi determinado para o Brasil no mundo. O que a CNI e estes grupos estão demandando em termos educacionais hoje para formação da força de trabalho? Saber ler e escrever e saber que se eu solto um objeto ele cai no chão. O tipo de educação básica que eles estão dispostos a ofertar, seja na educação básica ou superior, e na infantil e fundamental também, é perfeitamente alinhada a um projeto de país subordinado. Quando a gente olha a questão da dependência, a gente vê que não são erros, não são pontos fora da curva; é um eixo articulador que ao longo desses governos foi se aprofundando e, agora, possui maior intensidade.

Portanto, reduzir a formação da juventude brasileira à matemática e ao português, como consta na BNCC para o ensino médio, é evidenciar o desconhecimento sobre quem são nossos jovens e o que eles necessitam, aliado ao desprezo que sentem por eles, sem máscaras, condenando-as à uma educação medíocre, que agride o direito a aprender tudo, as liberdades individuais e coletivas, bem como condená-los a terem a pior formação e percepção da realidade que estão inseridos.

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