POLÍTICA

Vamos precisar de um século para nos recuperar desse golpe

Por Flávio Ilha / Publicado em 26 de dezembro de 2016

Protagonista da CPI do Orçamento em 1993, que pela primeira vez traçou os passos da empreiteira Odebrecht na cooptação de políticos

Foto: Flávio Ilha

Foto: Flávio Ilha

Protagonista da CPI do Orçamento em 1993, que pela primeira vez traçou – ainda que de forma rudimentar – os passos da empreiteira Odebrecht na cooptação de políticos brasileiros, o ex-senador José Paulo Bisol ainda tem na memória as ameaças de morte e as pressões que sofreu de colegas do Congresso para enterrar as investigações – o que de fato ocorreu.

Mais de 20 anos depois, as investigações da Lava Jato não só desvendaram as denúncias como confirmaram o poder paralelo da construtora especialmente junto à Petrobras, que remonta ao primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) – mesmo que, como reconhece Bisol, se trate de uma investigação comandada por um judiciário comprometido.

“Vou te contar uma coisa, não precisa acreditar, mas vou te contar: eu sabia muita coisa do que se fazia, do que a Odebrecht fazia, outras empreiteiras faziam, eles dominavam completamente as licitações”, revela em entrevista exclusiva ao jornal Extra Classe, concedida em sua casa na cidade de Osório.

Na conversa de quase duas horas, em que fumou vários cigarros, apesar da contrariedade da esposa e do diabetes, Bisol também falou da crise institucional do país, de Lula, de Dilma, de Temer e do futuro político do país. Mesmo sem se considerar pessimista, vaticinou: “precisaremos de um século para nos recuperar”.

Extra Classe – Como o senhor tem observado nosso momento político atual? Já tinha visto crise institucional desse tamanho?
José Paulo Bisol – Nunca vi nada parecido. Tenho visto com muita tristeza, é claro. Eu não sou profeta, mas vou te dizer uma coisa que é fácil de perceber: depois do recesso parlamentar (até fevereiro de 2017) vão votar a proposta que limita os poderes de juízes e promotores, mas logo após vão anistiar o Caixa Dois. Aí acabará com a delação da Odebrecht, mesmo que já esteja homologada (a previsão de homologação é em março de 2017), e todos se safam. O Supremo Tribunal Federal (STF) vai ficar com competência reduzida, humilhado historicamente, e isso só será contado da maneira correta num futuro distante. É uma brincadeira o que estão fazendo. Imagino que precisemos de um século para nos recuperar.

Extra Classe – O senhor é pessimista.
Bisol – Não. É que esse golpe foi o mais espetacular dos últimos tempos, no mundo inteiro. É genial, os caras fizeram tudo direitinho. Tiraram a (ex-presidenta) Dilma Rousseff, eram maioria, votaram o que quiseram, contra as reclamações, contra o povo na rua. Pode fazer qualquer movimento, qualquer um, não vai mudar nada.

EC – Nem uma convulsão social? As medidas econômicas, a reforma da Previdência, a PEC 55 não podem jogar o país num estado de desordem absoluta?
Bisol –
 Só na base da guerrilha (risos). Mas será que ainda é tempo de guerrilha? Difícil. Pode ser que aconteça, mas o povo brasileiro é muito de direita. No bom sentido da palavra.

EC – Tem bom sentido essa expressão?
Bisol – Por ignorância, por má formação política, quero dizer. A formação política dos brasileiros é muito precária. Quem votou nos golpistas? Os pobres. Eu tenho 88 anos (completados no dia 22 de outubro) e estive 12 anos no Parlamento, como deputado e senador. Nunca vi um Congresso tão precário. Mas tomara que ocorra uma convulsão social mesmo. É lamentável por um lado, mas é o futuro do Brasil. Se houver, mesmo de bengala eu vou pra rua (risos). Mas é desigual: a Polícia em Brasília liquidou com o pessoal durante a votação da PEC 55.

EC – Regredimos quanto nos últimos anos?
Bisol – Muito. O STF está humilhado, não tem mais valor ético nenhum, pela covardia, pela pusilaminidade da maioria dos seus membros. Tem dois direitistas escandalosos lá: o Gilmar (Mendes) e o (Dias) Toffoli. Esse Toffoli era de esquerda, mas o Gilmar o carregou para a direita. O Toffoli segurou o quanto pôde o processo contra o Renan (Calheiros, presidente do Congresso), só faltava seu voto, então, se não segurasse não teria acontecido nada disso que aconteceu nas últimas semanas. Ele segurou politicamente, descaradamente. Não tem respeito nem a si mesmo, pois um jogo desses não pode ser jogado por um juiz que se respeita. Não se fazem truques desse tipo. E na hora de votar para valer, os ministros mudaram seus votos para não confirmar o Marco Aurélio Mello (ministro do Supremo que afastou Renan da presidência do Senado). Eu não gostava dele, mas sua atitude foi muito corajosa.

EC – Quem diria.
Bisol – Primo do (ex-presidente Fernando) Collor, que segurou a vaga um ano para poder indicá-lo ministro, já que ele era muito jovem. São coisas desse Brasil horroroso.

EC – O senhor foi protagonista da primeira investigação séria envolvendo a construtora Odebrecht, em 1993. Como foi esse período?
Bisol – E vou te contar uma coisa, não precisa acreditar, mas vou te contar: eu sabia muita coisa do que se fazia, do que a Odebrecht fazia, outras empreiteiras faziam, eles dominavam completamente as licitações. Tentei criar um fato político que fosse considerado no Congresso (Bisol denunciou na CPI do Orçamento, em 1993, que mais de cem parlamentares poderiam estar recebendo propina da Odebrecht). Um promotor na época denunciou a Odebrecht e a OAS, eu acompanhava todas as ações da Justiça e houve uma série de apreensões de documentos, vários caminhões que estavam levando documentos para queimar. Acompanhei as três apreensões, mas quando a gente chegava não tinha mais nada quase. E então já começou uma reclamação no Congresso, porque os deputados e senadores já tinham uma força danada naquela época. Mas eu continuei, eu insisti. Pegava os documentos, os poucos que a gente salvava, e comecei a agitar lá no Congresso.

EC – O senhor era senador pelo PSB?
Bisol – Fui eleito pelo PMDB em 1986, mas no ano seguinte me transferi para o PSB. Quando eu passava por deputados e senadores nos corredores do Congresso, a maioria deles batia com a mão no coldre do revólver. E diziam: aqui pra ti, ó! Então, fiquei numa situação delicada dentro do Congresso, tanto que até o presidente na época, o senador Jarbas Passarinho (então no PPR), me chamou e recomendou que eu andasse com seguranças. Passei um ano com dois caras do meu lado, a coisa mais chata do mundo.

EC – As coisas não mudaram muito.
Bisol – É verdade. Mas meus documentos eram fracos mesmo, eu reconheço, porque as construtoras conseguiram queimar a maioria das provas. Depois é que se organizaram e estamos vendo o nível de sofisticação a que chegamos. Salvamos, na época, os documentos menos importantes. E foram punidos apenas uns poucos parlamentares (dos 37 investigados, apenas seis foram cassados – entre eles o atual deputado estadual Ibsen Pinheiro – PMDB). Por isso acho que fui um inútil lá dentro do Congresso. Não consegui fazer nada.

EC – O que foi a chamada “Armadilha Bisol”?
Bisol – Foi uma farsa montada por setores da imprensa para me desmoralizar. Disseram que eu tinha prometido provas contundentes contra as empreiteiras, o que não era verdade. Nunca prometi provas. Tínhamos documentos, mas eu sempre reconheci que eram frágeis. Era preciso investigar mais. Fomos também em três ou quatro bancos de surpresa, conseguimos cópias de operações bancárias falsas, que levavam à prática de Caixa 2, tínhamos alguns nomes importantes, poucos, mas as quantias eram insignificantes. Fomos aos bancos de helicóptero, paramos em cima dos edifícios, entramos e tiramos os documentos. Uma coisa cinematográfica. Mas o caso não foi adiante. Fiz o estardalhaço que pude, mas não foi adiante. Depois a Odebrecht pagou dois jornalistas e inventaram que eu era corrupto, que apresentei uma emenda para o município de Buritis (MG) beneficiando uma propriedade que eu tinha lá (em 1994). Uma emenda superfaturada. Fui envolvido involuntariamente nessa denúncia. Foi o momento mais triste e angustiante da minha vida.

EC – O senhor ganhou um processo contra a RBS por conta disso, não foi?
Bisol – Olha, esta casa aqui foi construída com aquela indenização (risos).

EC – Como foi?
Bisol – Publicaram as mentiras da Odebrecht sobre mim. Eu sabia desde o início, pois tinha uma pessoa de confiança que trabalhava na construtora e que me passava informações. Olha, cuidado, vai acontecer isso e isso, me dizia. Pagaram dois jornalistas, lançaram a notícia da minha suposta corrupção, a emenda ridícula de um pontilhão que eu assinei por ingenuidade, a RBS fez um sem-número de reportagens sobre o assunto. Aí entrei com a ação. Na audiência inicial de conciliação eu disse que desistiria do processo se me dessem os espaços iguais que usaram para me atacar. Eu ia escrever um monte de artigos. Mas evidentemente eles não aceitaram, então ganhei. Era uma ação simples de ganhar. Ganhei também do Correio Braziliense, d’O Globo, da (revista) Isto É, d’O Estado de São Paulo e do Jornal do Brasil, que me deve uns R$ 4 milhões. Se todos tivessem me pagado, hoje eu seria milionário.

EC – E a lista com a distribuição de brindes pela Odebrecht?
Bisol – Pois é, a tal lista não tinha nada a ver comigo. Apareceu nas provas da CPI do Orçamento (1993), mas não tinha relação com a investigação do Ministério Público Federal. Foi usada para desviar a atenção da verdadeira denúncia, que era o envolvimento de políticos com a Odebrecht. Tudo que acabou se desnudando agora, mais de 20 anos depois.

EC – Depois de ingressar no PT, o senhor disse que o partido tinha sido a experiência mais fantástica da política brasileira. O PT tem saída?
Bisol – Como? Com quem? Temos bons quadros no aqui no Sul (cita o ex-governador Tarso Genro) e lá no Nordeste, quadros que defenderam a Dilma. Tem também o Lindbergh Farias (senador pelo Rio de Janeiro). Me diga quem mais? O próprio Lula nunca foi rigorosamente um esquerdista. Foi um sindicalista, que no final das contas é uma forma de luta capitalista. Ele provou isso. Na partilha dos royalties do Pré-Sal (2010), por exemplo, o Lula ficou do pior lado possível, do lado capitalista, ele e o (Sérgio) Cabral (ex-governador do Rio de Janeiro pelo PMDB). Quem foi de esquerda mesmo na proposta de partilha, que acabou aprovada, foi o Ibsen (Pinheiro, que apresentou emenda ao projeto repartindo a parte excetuada da União entre todos os estados, e não apenas para os produtores). O Lula estava na centro-direita, para usar um eufemismo (risos).

EC – O senhor rompeu politicamente com o ex-presidente?
Bisol – Não. Sou um fã do Lula. Nunca vi um orador tão excepcional quanto ele. E original. Aquela linguagem dele para um povo inteiro atinge a todos de maneira sensacional. Seus gestos, tudo. Mais do que isso: é de uma inteligência extraordinária. Acompanhei muito o Lula, me hospedei diversas vezes na casa dele, em São Bernardo do Campo. Mas fez um governo de coalizão.

EC – Isso quer dizer o quê?
Bisol – Quer dizer que pela Dilma eu ponho a mão no fogo.

EC – Pelo Lula não?
Bisol – Pelo Lula, não (risos). A Dilma é uma pessoa admirável, convivi muito com ela durante a gestão do Olívio Dutra (1999-2002), mesmo sem termos criado uma relação de amizade. Ela errou muito no final. Errou econômica e politicamente, porque não se preparou para o que viria. Quando foi eleita, estava na cara que isso (o golpe) iria acontecer.  Ela tem muito para contar porque sofreu um monte de violências. Não só as que apareceram.

EC – O que ela deveria ter feito para evitar o impeachment? Cooptar apoios? Fazer o jogo da direita?
Bisol – Pois é, ela foi digna até aí. Com um Congresso anulando tudo o que ela pensava fazer, não restava saída mesmo. Foi uma coisa brutal. Agora, assim fica fácil fazer um golpe desse tipo. Foi a coisa mais genial da história. Toda a aparência de legalidade, com toda a imprensa apoiando.

EC – Lula é viável para 2018?
Bisol – Não é. Vai ser preso. Só o que pode salvá-lo é esse movimento para acabar com a Lava Jato, que é uma operação de direita baseada nos princípios da maçonaria. Nós nunca cuidamos disso. O único cara que alertava para a impossibilidade de um maçom ser juiz fui eu. Como pode ser juiz um sujeito pertencente a uma seita? Por favor! Mas a maioria dos juízes brasileiros é maçom.

EC – Lula pode ser preso mesmo? Em março, durante o episódio da condução coercitiva, a reação foi muito forte.
Bisol – Se não acabarem com a Lava Jato, o que pode beneficiar o Lula, vai ser preso. A corrupção do Congresso pode beneficiar o Lula, veja só. Por que o PT está votando pela punição ao abuso de autoridade? Por causa do Lula, porque tem esperanças de salvar o Lula com essa lei. O Lula foi a maior vítima dessa violência judicial e esse absurdo da condução coercitiva foi uma prova explícita. Qualquer anti-Lula decente percebe isso.

EC – Parece uma jogada arriscada.
Bisol – Acho que não condenaram o Lula até agora porque começaram a ocorrer esses outros fatos, começaram a puxar outros nomes – especialmente do PMDB.

EC – Qual o efetivo papel do presidente Michel Temer no golpe?
Bisol – O Temer não é um bobalhão como pensam. É muito fraco em termos de popularidade e de gestão, mas sabe ver as coisas. Tem conversas com o Exército…

EC – O senhor acredita nisso?
Bisol – Pela gravidade da crise, me parece que já passou da hora do Exército intervir. De derrubar esse Congresso. A mentalidade militar é perigosa. Eu, por outro lado, não ficaria chateado se fechassem o Congresso (risos). É o Congresso que está nos liquidando, não é o Temer. O presidente é só um porta-voz.

EC – Do PMDB sobrou alguma coisa?
Bisol – Não creio. O (Pedro) Simon sempre foi do discurso. Nas lutas que nós tivemos lá no Congresso, nunca o vi ajudar. Ia na CPI do Orçamento buscar elementos para discursar, pregou a criação da CPI das Empreiteiras, mas de concreto nunca fez nada. Nós fazíamos as provas, ele pegava e ia para a tribuna. Digamos que ele é um bom cristão. Mas não foi um bom político.

EC – Por que o senhor desistiu de escrever?
Bisol – Pela descrença. Como posso pensar em escrever um livro sem nenhuma esperança? Eu não escreveria para aparecer, mas se pudesse ter algum resultado social. Acho que se trata de uma falha da esquerda: nós não escrevemos nada, ou escrevemos muito pouco. Não documentamos, não contamos nada das coisas obscuras. Estou esperando a versão da esquerda sobre o golpe. Acho que não terminou ainda, mas já está na hora de escrever. Sempre achei uma fraqueza nossa, não termos historiadores. Os americanos são diferentes: acontece um negócio qualquer, sai livro pra tudo que é lado. Aqui nós somos muito calados. Tímidos.

EC – O que derruba a tese de uma convulsão social…
Bisol – É. Na minha opinião, deveríamos ter um modo de nos infiltrar na imprensa. Sem a imprensa não se faz nada. É o agente mais poderoso do golpe.

EC – Falta leitura para o brasileiro?
Bisol – Falta. Mas o francês médio lê muito e está no mesmo caminho que os brasileiros, à direita, senão pior (risos). E também não tem resistência, lá como aqui. É um momento muito difícil para o mundo todo. E agora com a eleição do (Donald) Trump, imagino que vão acontecer algumas estripulias. O cara é completamente ignorante.

EC – O que senhor pensa da velhice?
Bisol –
 Da velhice? Acho uma época maravilhosa, o problema é a saúde. É uma idade em que temos uma lucidez impossível de ter na juventude. E uma serenidade também.

EC – Quantos cigarros o senhor fuma por dia?
Bisol – Um atrás do outro. Gosto mesmo é de fumar cachimbo, mas os fumos nacionais estão muito ruins e não há mais importação. Então, vou para o cigarro. Por que vou ter medo de morrer? Não posso dizer que em certos momentos não tenha, mas não me impressiona. Se eu voltar a ler (Bisol relata problemas de visão agravados pelo diabetes), paro de fumar.

EC – De qual leitura o senhor mais sente falta?
Bisol – De filosofia. E psicanálise. Queria voltar a ler Lacan (Jacques Lacan, psicanalista francês que viveu entre 1901 e 1981). Mais do que psicanalista, é um filósofo de expressão porque até hoje influi nas ciências humanas. Os filósofos modernos, de esquerda, eram todos um pouco lacanianos. Acho até que foi mais filósofo que psicanalista.

EC – Como Lacan explicaria o Brasil atual?
Bisol – Ele não era muito político. Não sei como ele explicaria nossa situação. Aliás, não sei nem como eu explicaria. Somos um povo muito complicado, um país muito grande. Nossa história também não é boa, o escravismo durou muito tempo.

EC – O que compensa a falta de leitura?
Bisol – A música. Gosto muito de música erudita, mas sou horrível porque choro constantemente. Hoje passei a tarde ouvindo Pavarotti (tenor italiano). Também ouvi My Way, com Frank Sinatra e depois com o Elvis Presley. Gosto muito do Andrea Bocelli também (cantor italiano)].

EC – O senhor é religioso?
Bisol – Fui criado praticamente dentro da igreja, mas hoje sou um ateu convicto. Um ateu com fé.

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