AMBIENTE

Uma parede no caminho

Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós alagará 729 quilômetros quadrados e afetará populações ribeirinhas que habitam há séculos uma das maiores áreas preservadas da Amazônia
Por Flávio Ilha, de Itaituba (PA) / Publicado em 12 de novembro de 2015

Uma parede no caminho

Foto: Fernanda Ligabue/Agência Pública

Foto: Fernanda Ligabue/Agência Pública

Um paredão de concreto com 53 metros de altura e quase 8 quilômetros de extensão irá transformar as águas verdes do rio Tapajós, que corre de Sul a Norte por 800 quilômetros até desembocar no Amazonas, num lago gigantesco cuja única missão será produzir eletricidade para as regiões urbanas do Brasil, especialmente do Sul e do Sudeste. O paredão vai represar o curso natural do rio, que nasce no Mato Grosso e percorre todo o oeste do Pará, interromper a migração de espécies endêmicas da região, alagar uma área de 729 quilômetros quadrados e afetar, direta ou indiretamente, uma população que há séculos vive da biodiversidade do Tapajós. De quebra, também transformará uma das regiões mais preservadas da Amazônia em um complexo industrial de grande porte capaz de gerar até 10 mil MW de energia – a usina de Itaipu, por exemplo, tem capacidade instalada de 14 mil MW.

Prevista para funcionar num prazo de seis anos, a usina hidrelétrica São Luiz do Tapajós – a primeira do conjunto de cinco unidades projetadas pelo governo federal para a bacia do rio – igualmente deverá contribuir para o extermínio de espécies vulneráveis da região, como o peixe-boi, a arara azul, a ariranha, o cascudo asa-branca e o gato-mourisco. Além disso, avançará sobre áreas protegidas por parques nacionais – entre eles o mais antigo do país, criado em 1974. O Parque Nacional da Amazônia, na margem esquerda do Tapajós, deve perder 10 mil hectares de área, mas nem será o mais atingido pelas barragens; Jamanxim, cujo diploma legal é de 2006, terá extirpados 33,2 mil hectares na margem direita com a construção das hidrelétricas de Cachoeira do Caí, Jamanxim e Cachoeira dos Patos.

As cinco unidades juntas, quando construídas, vão ter capacidade de gerar 10,6 MW de eletricidade – dois terços dos 18 projetos hidrelétricos que deverão estar operando até 2023. Apenas São Luiz do Tapajós representa 55% desse montante, o que torna a execução estratégica para o governo. Segundo o Plano Decenal de Energia (PDE), a usina deverá ser construída até 2021 para atender o objetivo de aumentar a capacidade de geração de energia em 73 mil MW nos próximos dez anos – metade delas por fontes renováveis, incluindo energia eólica e solar. Os investimentos federais para cumprir esse objetivo chegam a R$ 1,4 trilhão.

“Não dá para confiar no que diz o governo”
O complexo de hidrelétrica do Tapajós afetará comunidades ancestrais do Pará, como os indígenas da etnia munduruku, e também os moradores da pequena localidade de Pimental, além das vilas de São Luiz e Raiol. Os efeitos são severos, com a previsão de deslocamento permanente de milhares de moradores e o alagamento de áreas arqueológicas – e sagradas – das comunidades indígenas. Na represa que será formada com a hidrelétrica de São Luiz se concentram sete aldeias que reúnem um grupo aproximado de 700 indígenas munduruku em terras que nunca foram demarcadas pela Funai.

Indígenas da etnia munduruku aguardam demarcação há mais de dez anos

Foto: Fernanda Ligabue/Agência Pública

Indígenas da etnia munduruku aguardam demarcação há mais de dez anos

Foto: Fernanda Ligabue/Agência Pública

Depois da construção da usina de Belo Monte, também no Pará, o complexo do Tapajós abre uma nova fonte e disputa entre ambientalistas, comunidades ribeirinhas e técnicos do governo – com evidente desvantagem para os primeiros. “A pressão tem sido muito grande, especialmente sobre a Funai e sobre o Ibama. Nossos ancestrais sempre viveram aqui, sempre viveram do rio, mas o governo insiste em dizer que as áreas da usina eram desabitadas. Estamos com medo de que o governo avance sobre nós, mesmo sem autorização legal para a obra. Não dá para confiar no que diz o governo”,
resume um dos chefes da Aldeia do Mangue, em Itaituba, Jairo Saw Munduruku.

A comerciante Socorro Amorim, que tem um pequeno mercado junto com o marido há 27 anos na localidade de São Luiz, diz que se sente ameaçada. O canteiro de obras da hidrelétrica ficará a apenas sete quilômetros da vila e os técnicos do governo já circulam pelo local fazendo perguntas e colhendo dados. Informação, porém, a comunidade não tem recebido. “Essa conversa toda me tira o sono. Vivemos num lugar com muita fartura, tranquilo e onde todo mundo se conhece. Aqui é o paraíso. Aí, de uma hora para a outra, começam a falar em realocação, indenização, alagamento. Oficialmente não sabemos de nada, o governo nunca nos comunicou nada. Mas sabemos que alguma coisa vai acontecer. E não deve ser coisa boa”, lamenta a comerciante.

Cacique Suberalino Munduruku

Foto: Flávio Ilha

Cacique Suberalino Munduruku

Foto: Flávio Ilha

O cacique Suberalino Saw Munduruku, chefe da aldeia Sawré Jaybu, que fica a 20 minutos de caminhada da vila de São Luiz, também não esconde a preocupação com a pequena comunidade de 12 famílias e 48 pessoas que vivem no caminho da hidrelétrica. Assim como os ribeirinhos da vila, Suberalino nunca conversou com nenhum técnico do governo, nunca recebeu qualquer informação oficial e nunca foi consultado sobre a conveniência de deixar a região onde vive há 71 anos. “Essa usina não serve para nada, vai só acabar com a floresta, com os peixes, com a caça. Vamos continuar lutando pela bolinha de terra onde vivemos e só aceitamos sair daqui para um lugar maior e onde haja muita fartura. Mas não acreditamos mais em promessas. Há dez anos esperamos pela demarcação, que nunca veio”, explica o cacique.

Para o Ministério das Minas e Energia os projetos são estratégicos

E o que diz o governo? Não muita coisa. Segundo o Ministério das Minas e Energia, a construção das usinas é estratégia para enfrentar o crescimento da demanda por eletricidade no país, já que o modelo hidrelétrico tem uma matriz tecnológica madura e o preço mais baixo entre todas as fontes disponíveis no país. Os impactos, de acordo com essa avaliação, deverão ser menores que outros empreendimentos similares, especialmente nos rios Xingu e Madeira, pela adoção do modelo de usina-plataforma: a exemplo de uma plataforma de petróleo, isolada no oceano, a usina de São Luiz do Tapajós será operada remotamente, sem a presença de grandes contingentes humanos.

Durante a construção, além disso, os operários passarão longas temporadas, de 15 a 20 dias, em alojamentos, sendo substituídos por outra turma ao término desse intervalo. Esse método, segundo o ministério, evita o surgimento de aglomerados migratórios e reduz a destruição da floresta, que pode ser recomposta após a construção.

Em nota, a Eletrobras, que coordena o grupo de empresas que estuda a viabilidade do empreendimento, afirmou que o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) utilizou parâmetros definidos e aprovados pelo Ibama e que vem realizando reuniões com o órgão ambiental para “aprofundar cerca de 180 itens contestados dos relatórios”. Segundo a estatal, o objetivo é tornar o estudo “um marco de referência na região, um tanto desconhecida do ponto de vista das pesquisa de fauna e flora”.

Socorro Amorim e o marido: ameaçados pelo projeto

Foto: Flávio Ilha

Socorro Amorim e o marido: ameaçados pelo projeto

Foto: Flávio Ilha

A esperança das comunidades afetadas pelos empreendimentos é a informação. Uma audiência pública marcada para o início de novembro na cidade de Santarém irá debater o impacto das usinas projetadas pelo governo, além da demarcação das terras indígenas que foi interrompida depois que cresceu o interesse pela área. A demarcação não sai porque a Constituição proíbe qualquer remoção definitiva de indígenas de suas terras, o que seria necessário para a construção da usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. Os índios reivindicam um território de 178 mil hectares da terra indígena (TI) de Sawré Muybu, dos quais 7% – algo em torno de 12,5 mil hectares – serão alagados.

A licença de instalação do empreendimento ainda depende do Ibama, que já apresentou pareceres prévios contestando afirmações oficiais, produzidas pelo consórcio de empresas interessadas na obra, de que a construção causará impacto socioambiental mínimo na região. O conceito de usina-plataforma adotado pelo governo como metodologia para reduzir impactos sociais, por exemplo, foi devidamente desconstruído pelo órgão ambiental, que argumentou não ser possível evitar o surgimento de “aglomerações externas” ao canteiro de obras apenas pela ingerência do empreendedor. A obra deverá reunir um contingente calculado entre 10 mil e 13 mil operários na região, cuja maior cidade – Itaituba – tem 130 mil habitantes.

“Estamos muito preocupados porque não queremos sofrer os mesmos efeitos provocados pela construção de Belo Monte (no município de Altamira, norte do Pará). E os estudos apresentados até agora pelo governo são assustadores, contêm erros grosseiros de informação. Não somos contra o projeto, mas é preciso manter as identidades culturais e econômicas da população. Ribeirinho tem que viver como ribeirinho, índio tem que viver como índio. Não dá simplesmente pra deslocar”, argumenta o secretário de Meio Ambiente de Itaituba, Hilário Vasconcelos.

Expectativa é que cerca de 75 mil pessoas migrem para a região durante a obra
Dados da prefeitura do município preveem um fluxo migratório de 75 mil pessoas durante a construção da usina de São Luiz do Tapajós, enquanto o governo acena com o deslocamento de no máximo 28 mil pessoas. Vasconcelos cita um dado alarmante que faz parte do EIA/Rima produzido pelo consórcio de empresas interessadas na obra: está prevista a construção de três salas de aula na rede pública de ensino para mitigar o impacto da migração de operários para o canteiro de obras. Segundo o secretário, os relatórios técnicos que justificam a construção “precisam ser refeitos”.

Corredeiras do rio Tapajós que serão alagadas na construção da barragem da usina hidrelétrica de São Luiz, no Parque Nacional da Amazônia

Foto: Fernanda Ligabue/Agência Pública

Corredeiras do rio Tapajós que serão alagadas na construção da barragem da usina hidrelétrica de São Luiz, no Parque Nacional da Amazônia

Foto: Fernanda Ligabue/Agência Pública

Estudo patrocinado pelo Greenpeace e realizado por um grupo de nove cientistas independentes, divulgado no final de setembro, apontou que o EIA/Rima “minimiza e omite” impactos negativos nos empreendimentos hidrelétricos, sendo classificado como mera “peça de marketing”. O estudo, com 15 mil páginas, foi entregue ao Ibama em novembro de 2014. O licenciamento segue em tramitação – sem ele, o governo não pode fazer o leilão da energia que será gerada pelo complexo.

“Em vez de cumprir com o seu papel de prever os impactos de empreendimentos desse porte e, assim, informar o processo de decisão, esses documentos tornaram-se mera formalidade para legitimar decisões políticas já tomadas. Se fosse feito corretamente, o EIA/Rima mostraria que as consequências da obra são inaceitáveis e a usina, portanto,
inviável”, avalia o coordenador da Campanha da Amazônia do Greenpeace, Danicley de Aguiar.

Moradores da Vila Raiol temem impacto com a chegada dos operários

Foto: Flávio Ilha

Moradores da Vila Raiol temem impacto com a chegada dos operários

Foto: Flávio Ilha

O biólogo Jansen Sampaio Zuanon, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), descreve que o represamento das águas do Tapajós terá um efeito grave sobre o manejo do rio, na medida em que a criação de um lago artificial altera ciclos de deslocamento, reprodução e crescimento de diversas espécies endêmicas – com efeito óbvio em quem depende delas para sobreviver. O EIA/Rima mapeou a biodiversidade do rio e colheu dados impressionantes: 352 espécies de peixes, 530 tipos de algas, 137 de zooplanctons e 79 plantas aquáticas, entre outros dados.

“Os índios que vivem às margens do Tapajós sabem em que tipo de ambiente e em que época do ano podem ter determinados peixes à sua disposição. Portanto, quando se represa a água dessa forma artificial está se desregulando a capacidade desse povo de conseguir alimento. Afogar pedrais e corredeiras implicará o desaparecimento de espécies endêmicas. Há impactos que simplesmente não podem ser mitigados”, critica Zuanon.

Aldeia Sawré Jaybu, da etnia munduruku, será parcialmente alagada pela usina

Foto: Flávio Ilha

Aldeia Sawré Jaybu, da etnia munduruku, será parcialmente alagada pela usina

Foto: Flávio Ilha

Segundo o pesquisador, que fez parte do grupo de cientistas responsáveis pela análise crítica do EIA/Rima sobre a usina São Luiz de Tapajós, é preciso mudar a cultura de geração de energia elétrica a partir da Amazônia, para não continuar gerando “peças de literatura” que vão embasar decisões a partir de “cartas marcadas”. Para Zuanon, a alternativa existe: encontrar uma relação harmônica entre produção de energia, conservação e qualidade de vida.

Mas, se depender do governo, essa equação será difícil de ser alcançada. O conjunto de cinco hidrelétricas do Tapajós terá capacidade instalada superior a 10,5 mil MW – equivalente à usina de Belo Monte, no rio Xingu. O complexo faz parte do Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE), que pretende triplicar a geração hidrelétrica na região Norte do país até 2024 e colocar a Amazônia como segunda fonte de produção – atrás apenas do complexo Sudeste/Centro-Oeste, onde está Itaipu.

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De acordo com o Plano, não há nenhuma intenção do governo federal de investir em fontes alternativas de energia para atender à crescente demanda do país. O estudo aponta que as usinas hidrelétricas ainda apresentam grande potencial a ser explorado, “suficiente para permaneceram como fonte predominante”, especialmente nas bacias Norte e Centro-Oeste. “Os inventários concluídos apontam que projetos importantes poderão ser viabilizados, a despeito da crescente complexidade socioambiental”, reconhece o PDE. São Luiz do Tapajós é a grande aposta para atingir essa meta.

Arte Bold Comunicação - Fábio Edy Alves

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