AMBIENTE

Saneamento precário: risco de contaminação da água consumida pela população

Estudo inédito aponta propensão ao desenvolvimento de agentes causadores de doenças de veiculação hídrica como vírus, bactérias e protozoários
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 9 de abril de 2020
Captação de água da Sabesp no Sistema Cantareira, que abastece uma população de 9 milhões no estado de São Paulo

Foto: Sabesp/Divulgação

Captação de água da Sabesp no Sistema Cantareira, que abastece uma população de 9 milhões no estado de São Paulo

Foto: Sabesp/Divulgação

A pandemia de Covid-19 começa a mostrar com mais clareza algo que só especialistas e as populações impactadas conheciam. A falta de saneamento básico e a má distribuição de água no país assustam. São 31 milhões de brasileiros que não têm acesso a uma rede geral de distribuição de água e a falta de acesso à água potável é uma realidade nas grandes favelas como a Rocinha, no Rio, ou Paraisópolis, em São Paulo. Praticamente impedidos de se precaver do novo coronavírus usando água e sabão com frequência, milhares de pessoas no país sofrem de doenças infecciosas como malária e dengue. Estudo apresentado no 30º Congresso da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) revela que a água consumida pelos brasileiros é passível de contaminação por protozoários, organismos resistentes ao cloro

Entre as maiores conquistas de saúde pública da história da humanidade, o saneamento básico e o abastecimento de água potável estão em xeque no Brasil. Uma pesquisa apresentada no 30º Congresso da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) por cinco pesquisadores do Rio Grande do Sul revela um grande risco de contaminação da água que é consumida pela população com giardia e cryptosporidium, micro-organismos imunes à ação do cloro e de outras substâncias utilizadas no tratamento da água no estado.

Coordenado e apresentado pelo engenheiro químico Luciano Zini, o estudo aponta que a água dita potável pode apresentar uma maior contaminação em outros estados. De acordo com o pesquisador, a possibilidade de contaminação da água por protozoários é um problema de saúde pública extremamente grave, pois pode levar à morte de pessoas com baixa imunidade.

Apesar disso, até agora não havia um levantamento minucioso apontando a presença desses micro-organismos na água que abastece os municípios gaúchos. Essa é a primeira publicação a respeito com os dados nacionais do setor de Saúde, fora uma ou outra iniciativa restrita ao ambiente acadêmico.

Zini coordenou pesquisa que aponta potencial de contaminação da água

Foto: Tonico Alvares/CMPA

Zini coordenou pesquisa que aponta
potencial de contaminação da água

Foto: Tonico Alvares/CMPA

Ao contrário das bactérias, que também são micro-organismos, os protozoários são resistentes à destruição por cloro

O estudo aponta que, dependendo das condições de abastecimento de água potável, saneamento e higiene, agentes causadores de doenças de veiculação hídrica como vírus, bactérias e protozoários podem ser transmitidos. E escancara uma realidade nacional: o processo de coleta e saneamento no Brasil é eficaz na questão bacteriológica, mas o mesmo não acontece com tanta eficácia na eliminação de protozoários.

Ao contrário das bactérias, que também são micro-organismos, os protozoários são resistentes à destruição por cloro. Eles não morrem e só podem ser removidos da água com a ajuda de uma barreira física para impedir que passem para a água tratada. “Eles são removidos posteriormente no processo de filtração”, explica.

Mestre e doutorando em Engenharia Química pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Zini integrou o último processo de revisão do padrão nacional de potabilidade no grupo de químicos como representante de todas as secretarias estaduais de saúde via Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Segundo ele, o nível elevado de contaminação da água é um obstáculo à utilização da barreira física: “o que dificulta a retirada é a qualidade da água bruta, o não tratamento do esgoto, as estiagens que aumentam, as concentrações de poluentes nos mananciais e os resíduos da pecuária lançados nos mananciais”, pontua.

Da diarreia à letalidade

Os principais causadores de diarreias em crianças com menos de cinco anos de idade são os protozoários giardia duodenalis e cryptosporidium parvum. Giardíase e criptosporidiose são as zoonoses causadas por esses micro-organismos.

No estudo, os pesquisadores gaúchos apontam a observação do aumento expressivo no número de casos. E a disseminação está principalmente vinculada “à falta de tratamento de esgoto e de dejetos das atividades pecuárias intensivas”, diz o documento. No conjunto do estado, atualmente, apenas 41,43% do esgoto é tratado.

Mas essa realidade não é uma mazela apenas gaúcha e brasileira. Em todo o mundo, nos últimos 28 anos, ocorreram 524 surtos em que a àgua destinada ao consumo humano foi a fonte de contaminação. Nesses episódios, giardia spp. e cryptosporidium spp. também foram os principais agentes identificados.

No caso de situações de diarreia, um fato preocupa. Muitas pessoas nessa condição esperam a cura natural da doença e só procuram auxilio em uma clínica ou posto de saúde caso o sintoma dure mais de um dia. Como na maioria dos casos os médicos não solicitam exames, o sistema de saúde fica sem dados importantes. Mais exatamente, “sem saber qual o agente etiológico, patogênico” originou a moléstia, afirma Zini.

Muito possivelmente a água contaminada é um dos principais fatores dessas diarreias e  a falta de informações que esses exames deveriam apontar pode ser até letal, destaca. “Uma pessoa com HIV sem tratamento, no estágio da Aids, pode vir a óbito sem nem saber o real motivo” compara. Outras parcelas da população também podem ser afetadas. São os casos de crianças, idosos e transplantados que correm o mesmo sério risco de morte.

Zini, que desde 2015, atua como especialista em Saúde e engenheiro químico na Secretaria Estadual da Saúde (SES/RS), é vinculado ao Programa Vigiaagua, nas frentes de agrotóxicos na água para consumo humano e inspeções sanitárias no processo de tratamento.

Os projetos das estações de tratamento no Brasil, das décadas de 1970 e 1980, apresentaram avanços para o abastecimento de água nas cidades, mas negligenciaram os serviços de esgoto

Um sistema sendo estrangulado

Entrada de água bruta na Estação de Tratamento da Comusa, em Novo Hamburgo

Foto: Comusa/ PMNH/ Divulgação

Entrada de água bruta na Estação de
Tratamento da Comusa, em Novo Hamburgo

Foto: Comusa/ PMNH/ Divulgação

Os projetos das estações de tratamento no Brasil são das décadas de 1970 e 1980, fomentados basicamente pelo Plano Nacional de Saneamento (Planasa), que foi um modelo centralizado de financiamento de investimentos em saneamento básico. Desde então, não houve grande alterações no setor.

Para o engenheiro civil Rafael Kopschitz Xavier Bastos, professor titular da Universidade Federal de Viçosa (MG), até o Planasa o saneamento do Brasil “era exercido de uma forma um tanto quanto fragmentado e pulverizado”. O modelo construído, na ocasião, pautou a criação das companhias estaduais de saneamento em todos os estados do país.

Um dos maiores especialistas no setor do tratamento e qualidade da água para consumo humano, Bastos ressalva, no entanto, que no período militar “naturalmente os processos não eram transparentes e democráticos”. O modelo foi imposto, rememora. “As companhias estaduais e a lógica do subsídio cruzado precisavam dos grandes sistemas”. Subsídio cruzado é aquele em que as grandes cidades, que são superavitárias, financiam solidariamente obras nos pequenos, deficitários.

O regime da época trabalhou para estrangular as cidades que não aderiram ao plano, que não entregaram as suas concessões para as novas companhias estaduais. “Durante anos, não tinham acesso a financiamento, por exemplo”, diz ao lembrar que poucos municípios permaneceram com as suas empresas de saneamento.

Para o professor, que contribuiu na estruturação e consolidação da Vigilância em Saúde Ambiental no Brasil, se o Planasa apresentou avanços para o abastecimento de água nas cidades, negligenciou, porém, os serviços de esgoto. “Isso criou um descompasso enorme entre a infraestrutura hoje existente de abastecimento de água e a estrutura tão precária de tratamento de esgoto”, explica. Ele lembra que o “ocaso do Planasa” começou exatamente no final do período ditatorial, especialmente com a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH), que era uma das fontes de financiamento.

O presidente nacional da Abes, Roberval Tavares de Souza, concorda que houve um vácuo entre o final do Planasa e o surgimento da atual legislação do saneamento promulgada em 2007. “O grande problema é que as linhas de financiamento ficaram pouco acessíveis”, aponta. No começo dos anos 2000, “tivemos a colocação de muito dinheiro na praça”, mas muitas empresas de saneamento não tinham condições de acessar esses recursos, recorda.

As fontes de abastecimento de água devem ser protegidas da contaminação, mas isso não ocorre nas principais cidades do país onde menos de 50% dos esgotos domésticos são tratados

Mananciais devem ser protegidos

Benetti: o país tem 13,3 milhões de crianças e adolescentes vivendo em habitações com disposição de esgotos em valas a céu aberto e 7,7 milhões sem acesso à água potável

Foto: Acervo Pessoal

Benetti: o país tem 13,3 milhões de crianças e adolescentes vivendo em habitações com disposição de esgotos em valas a céu aberto e 7,7 milhões sem acesso à água potável

Foto: Acervo Pessoal

Coordenador do Programa de Pós-graduação em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da Ufrgs, o professor Antônio Domingues Benetti diz que as fontes de abastecimento de água devem ser protegidas da contaminação. Entretanto, “nas principais cidades do Brasil, esta proteção não ocorre, porque menos de 50% dos esgotos domésticos são tratados”. Por isso, os mananciais de água acabam poluídos por microrganismos patogênicos, matéria orgânica que consome oxigênio dissolvido da água, detergentes e nutrientes (nitrogênio e fósforo) que fertilizam a água favorecendo as florações de algas e cianobactérias.

São essas florações que produzem compostos que causam gosto e odor na água tratada além de, algumas vezes, toxinas. “Pode-se dizer que quanto mais contaminado está o manancial de água, maior é o risco para a qualidade da água tratada para consumo humano”, constata.

Doutor em Engenharia Ambiental pela Cornell University (EUA) e pós-doutor em Engenharia de Processos no Swiss Federal Institute of Aquatic Science and Technology (Suiça), Benetti diz que “a maior parte dos resíduos industriais no Brasil já tem tratamento de acordo com as exigências dos órgãos ambientais nos processos de licenciamento das empresas”. Por outro lado, o professor contabiliza que o país deixa 13,3 milhões de crianças e adolescentes vivendo em habitações com disposição de esgotos em valas a céu aberto e 7,7 milhões sem acesso à água potável. “Muitas doenças e leitos do SUS são ocupados por pacientes com doenças relacionadas à água contaminada”.

Marco regulatório beneficia o setor privado

Roberval Tavares de Souza, presidente nacional da Abes

Foto: Abes/ Divulgação

Roberval Tavares de Souza, presidente nacional da Abes

Foto: Abes/ Divulgação

Em meio às sérias discussões sobre a qualidade e o grau de potabilidade da água que é oferecida à população brasileira, em dezembro de 2019 a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei que altera o marco regulatório do saneamento básico no Brasil. Para a Abes, o texto que agora está no Senado não garante a meta de universalização do saneamento no país, mas somente a privatização de um setor vital para o bem-estar da população. Roberval Tavares de Souza, presidente da entidade, afirma que o novo marco que o governo Bolsonaro apresenta vai privilegiar a entrada de empresas privadas na operação dentro de uma lógica que ele considera equivocada: “tudo o que é feito por empresas públicas não presta e, portanto, é preciso ser trocado”, destaca.

É nesse ponto que há a grande divergência de entidades do setor do saneamento com o governo. “Não importa se é público ou privado, tem que ser eficiente”, ressalta. Tavares afirma que o cidadão não quer saber se o fornecimento de água e a coleta e tratamento de esgoto são feitos por uma empresa pública ou privada. “Ele quer ter água diariamente, quer que se respeite o meio ambiente e que pague por uma tarifa justa”, explica, lembrando que o Brasil tem “belos exemplos” de empresas públicas que fazem esse papel corretamente.

Concretamente, o receio da Abes é que o resultado da discussão que o governo federal “levou a ferro e fogo”, diz Tavares, não vá dar certo. “A lei está sendo mudada, mas não garante a eficiência”, denuncia.

Para a Abes, a lógica que hoje é executada pelas empresas estaduais está sendo deteriorada. Não é por menos que a grande polêmica na votação que aprovou o projeto de lei do governo foi o fim dos contratos de programa que deixa aos municípios a responsabilidade da retomada dos serviços ou a licitação deles para a concorrência. Contrato de programa é um mecanismo de cooperação previsto na Constituição. Através dele, os municípios podem conveniar com os estados para que as empresas públicas de saneamento operem seus serviços de água e esgoto sanitário.

Assim, a espinha dorsal que existe hoje está sendo exterminada pelo governo. “Nós podemos ter uma situação onde o privado vai executar obras em cidades grandes e vai deixar cidades pequenas ao relento”, alerta Tavares, citando os estados do Tocantins e Amazonas. Nesses estados, na parte dos serviços que foram para empresas privadas só ocorreram obras em cidades grandes. Isso acabou prejudicando todos os demais municípios pequenos.

Acreditando que o eixo central da proposta de novo marco regulatório para o saneamento nacional será mantido no Congresso, o presidente da Abes lamenta: “não é com esse texto de lei que nós vamos chegar na universalização”. Na busca da chamada universalização, a meta do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) é oferecer saneamento básico a toda a população até o ano de 2033. Com os meios de financiamento e recursos diretos da União caindo a cada ano, em especial nos últimos quatro, segundo o Sistema Nacional de Informação de Saneamento, o presidente da Abes deixa claro: “Falta vontade política pra querer resolver essa questão”.

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Surtos de Doenças de Veiculação Hídrica

Epidemias de cólera e febre tifoide eram comuns nas cidades no século 19 e ocorriam milhares de mortes sua decorrência, lembra o professor Benetti. Cidades como Londres, Paris e Nova York não escapavam das estatísticas. “Graças à ciência, as causas dessas epidemias foram identificadas como sendo transmitidas por água contaminada com esgotos”. Com a descoberta e as cidades passando progressivamente a tratar a água para distribuir às populações, as epidemias foram virtualmente desaparecendo. Desaparecendo, mas não em sua totalidade. O Brasil tem registrado nos últimos anos, uma série do que no jargão técnico do setor da saúde se chama de surtos de Doenças de Veiculação Hídrica (DVH).

Em 2011, um ano após o balneário de Guarujá (SP) enfrentar um surto de diarreia, moradores e turistas lotaram as unidades de saúde com o mesmo problema. Em um período de seis dias, 850 pacientes procuraram atendimento médico de urgência. As filas nos hospitais chegaram a cinco horas e as principais distribuidoras de água mineral da região trabalharam dobrado para atender aos pedidos de famílias inteiras que trocaram a água do filtro pela industrializada.

No município de Bento Gonçalves (RS), 5.863 casos de Doença Diarreica Aguda (DDA) causada por Giardia foram diagnosticadas no período de janeiro a setembro de 2016. Quase a totalidade das Unidades Básicas de Saúde da cidade realizaram atendimentos, o que apontou que a água distribuída na cidade foi a principal fonte de contaminação. A faixa etária mais atingida foi a maior de 10 anos, com 2.133 casos (76,2%).

O Brasil ainda se posiciona nos dois primeiros lugares do ranking mundial de toxoplasmose. No ano de 2018, Santa Maria (RS) registrou 902 casos da doença e, em 2002, Santa Isabel do Ivaí (PR) desbancava a cidade canadense de British Columbia (EUA). O crescimento exponencial dos números chama a atenção. Enquanto na cidade paranaense 426 pessoas foram afetadas, na cidade da América do Norte eram registrados cem casos em 1995, até então considerado o maior surto da doença.

Potabilidade em audiência pública

A ETE Onça é responsável pelo tratamento do esgoto de aproximadamente 1 milhão de pessoas, com cerca de 3.500 Km de rede coletora e despoluindo as águas da Bacia do Onça em Minas Rerais

Foto: Divulgação

A ETE Onça é responsável pelo tratamento do esgoto de aproximadamente 1 milhão de pessoas, com cerca de 3.500 km de rede coletora e despoluindo as águas da Bacia do Onça em Minas Rerais

Foto: Divulgação

Os surtos de toxoplasmose no Brasil, também verificados em Gouveia (MG) entre os meses de fevereiro e maio de 2015, não são causados pelos protozoários analisados pelo trabalho apresentado por Luciano Zini no Congresso da Abes de 2019. O Toxoplasma gondii não faz parte na lista de monitoramento da vigilância sanitária brasileira.

A própria medição dos protozoários Giardia duodenalis e Cryptosporidium parvum é recente. Passou a ser prevista na portaria que regula o monitoramento do saneamento básico no final de 2011, mas, segundo, Zini, efetivado mesmo por volta de 2013.

Essa portaria, que define o Padrão Brasileiro de Potabilidade de Água, está no momento em revisão. Desde 2018, em todo o país uma grande discussão foi realizada por profissionais das mais variadas instituições dos setores de saúde e meio ambiente e culminou em uma minuta que entrou no último dia 3 de março em Audiência Pública no Ministério da Saúde.

Na questão que envolve protozoários na água, o documento inclui um novo monitoramento que vai avaliar a passagem de partículas do tamanho dos protozoários “É uma análise mais rápida e barata que vai dar mais segurança no processo”, conclui Zini.

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