CULTURA

Ops, engravidei!

Gilson Camargo / Publicado em 28 de novembro de 2002

gravida

Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Neste ano, 800 mil a 1 milhão de meninas de 10 a 19 anos vão se tornar mães. A projeção do Ministério da Saúde é de que um terço dos 3 milhões de partos que serão realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) até dezembro serão de adolescentes. No Rio Grande do Sul, a média de nascimentos de filhos de adolescentes oscila em 20% desde 1999. As estatísticas levam em conta somente os nascidos vivos, sem contabilizar as milhares de jovens que recorrem ao aborto. Esse boom de gestações prematuras reflete outra precocidade: a idade de iniciação sexual está recuando. Os adolescentes descobrem o sexo cada vez mais cedo. E sem prevenção. A pressa de transar, para alguns especialistas, é induzida pelos meios de comunicação e pela erotização que permeia a sociedade. Numa idade em que os jovens estão descobrindo sua sexualidade, exercitando a sedução e já têm o corpo formado, os apelos podem incentivá-los a partir para o jogo da conquista sem medir as conseqüências. O resultado é a gravidez inesperada. E não é por falta de informação. Bem ao estilo adolescente de ser, eles ‘esquecem‘ ou não se preocupam em usar os métodos de prevenção que conhecem. “Os jovens têm acesso a informações qualificadas sobre a prevenção da gravidez, doenças sexualmente transmissíveis e AIDS, mas não se sensibilizam com essas informações. Sabem como se proteger, mas preferem correr o risco“, constata o psicólogo Diego Villas-Bôas da Rocha, do Centro de Sexualidade Humana – equipe médica ligada ao Hospital Mãe de Deus que presta atendimento clínico a gestantes adolescentes e promove campanhas de prevenção à gravidez nas escolas. “Quem usa preservativo na primeira relação vai relaxando à medida que conhece mais o parceiro. O relacionamento acaba em dois meses e o jovem torna a se enamorar profundamente por outro sem fazer qualquer exame, pois seu maior medo é a gravidez e não as doenças. Com isso, a pílula do dia seguinte passou a ser usada como se fosse um contraceptivo”.

Maternidade precoce avança

Gonçalves: acolhida e orientada, a jovem gestante passa a aceitar a gravidez

Foto: René Cabrales

Gonçalves: acolhida e orientada, a jovem gestante passa a aceitar a gravidez

Foto: René Cabrales

Uma explicação para esse com portamento pode estar na forma como pais e professores vêm encarando o assunto: com muita técnica e pouca sensibilidade. A família e a escola priorizam a formação profissional do jovem. O sexo não é discutido no ambiente escolar e muito menos em casa. Resta ao jovem se comparar e aprender com os iguais e no grupo as informações são muito frágeis. “Erotizado e sem preparação para entrar na vida sexual, ele tenta sozinho e erra. A gravidez é o efeito colateral desse aprendizado”, conclui Rocha. A maioria dos pais falha ao tentar abordar o assunto com os jovens, concorda a obstetra Sandra Scalco, também membro da equipe do Mãe de Deus. “A sexualidade deve ser ensinada com toda a naturalidade, sem medo ou subterfúgios. Só os pais, com a ajuda da escola, é que podem promover a grande virada nessa realidade, pois nossos jovens estão tendo filhos que não desejaram.

“São crianças tendo bebês“, define a psicóloga do Programa Jovem Mãe, do Hospital Fêmina, Diana Ducat, que atende cerca de 500 gestantes adolescentes por mês – 10% a 15% do total dos partos do hospital. “Os partos das adolescentes são muito difíceis, traumáticos na maioria dos casos. Nem sempre a relação sexual foi completa, o que aumenta o sentimento de frustração. Já atendi meninas virgens e grávidas. Quer dizer, a adolescente nem passou pela etapa da relação sexual e já veio a ser mãe – isso para a cabeça do jovem é muito confuso. É como se fosse uma situação irreal, uma ilusão.“ Na opinião da psicóloga, as crianças estão sendo estimuladas a queimar fases. “Há uma antecipação da infância, da menarca (primeira menstruação), da pré-adolescência, da adolescência e também da idade adulta através da gestação precoce“. A obstetra Rosemeri Xarão, coordenadora do Planejamento Familiar da prefeitura de São Leopoldo, afirma que são raras as mães na faixa dos 30 anos entre as 350 mulheres atendidas por mês na maternidade do Hospital Centenário. “São jovens de 17 anos que já estão no terceiro filho”, compara Rosemeri.

Crianças e adolescentes são portadores de uma sexualidade específica. Mas isso não significa que estejam preparados para a gravidez, complementa a deputada Maria do Rosário (PT), que se notabilizou pelas campanhas de defesa dos direitos das mulheres no Estado. “O fenômeno da precoce vida sexual das meninas e adolescentes é incentivado pelos meios de comunicação, que investem na banalização da sexualidade e têm sido deseducadores à medida que passam a idéia de que a prática sexual está sempre preservada de qualquer responsabilidade”.

Ainda que se trate de crianças gerando crianças, numa ciranda que pode acarretar sérias conseqüências físicas e emocionais para essas adolescentes, o fenômeno não é novo. “A gravidez na adolescência sempre existiu. A diferença é que antes não eram adolescentes, eram esposas. Agora o casamento não está muito em voga. Antes de casar, o jovem quer experimentar modelos de relacionamento”, opina Diego Villas-Bôas da Rocha. “Antigamente, as meninas que tinham condições físicas casavam e tinham filhos ainda adolescentes. O que é surpreendente é a existência desse fenômeno na atualidade, com tanta facilidade de acesso às informações. O jovem não sabe o que fazer com sua sexualidade porque não tem diálogo com os pais”, completa a psicóloga Sílvia Colers, professora de pós-graduação da Ufrgs em Psicologia do Desenvolvimento.

Especialmente nas classes mais pobres, Sílvia diz que a gravidez precoce é vista como passaporte para uma presumida independência. “O raciocínio é assim: ao engravidar passo a ser considerada como mulher, posso conquistar a vida adulta e a autonomia. Acontece com todos nós”. Quando o assunto é sexo, o jovem pensa hipoteticamente em várias possibilidades. Na sua onipotência não vê as conseqüências. “Ele é capaz de pensar, mas não estrutura o conhecimento. Do mundo adulto, a gente olha para o adolescente de forma muito crítica. Mas a gravidez pode ser uma experiência favorável, desde que cercada de apoio social e afetivo”.

A primeira iniciativa de atendimento clínico e psicológico com acompanhamento pré-natal específico para gestantes adolescentes no Estado surgiu em 1973, no hospital Presidente Vargas, instituição que virou referência no serviço público de saúde. Com capacidade para acompanhar 200 gestantes por mês, o Programa de Atendimento Integral à Gestante Adolescente (Paiga) estendeu o serviço para os bairros, com 51 consultas mensais para pacientes encaminhadas pelos postos de saúde da periferia de Porto Alegre. Além da assistência médica e psicológica que prioriza a preparação da gestante e dos pais para o momento do parto, o programa acompanha a adaptação do recém-nascido durante o primeiro ano de vida. “Essas gestantes jovens chegam ao hospital desorientadas, inseguras, pois a adolescência é uma fase de crise que se soma à outra crise na gravidez. Acolhida e orientada, a gestante passa a aceitar a gravidez, o que reduz os riscos de rejeição à criança”, explica o obstetra Luiz Alberto Gonçalves, coordenador da maternidade.

Aborto

Morrem no Brasil entre 400 e 1.095 mulheres por dia, vítimas de complicações decorrentes de aborto clandestino malfeito. São entre 17 e 46 mortes a cada hora, que correspondem a 10% dos abortos praticados. Os números oscilam porque se referem a uma prática clandestina, difícil de verificar. As estimativas mais otimistas são do Fundo das Populações, da Organização das Nações Unidas (ONU) e do norte-americano Allan Guttmacher Institute (AGI), que projetam em 1,5 milhão o número de abortos praticados por ano no Brasil. Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) elevam esse total para 4 milhões. Segundo dados da AGI, de cada cem abortos, 42 apresentam complicações de saúde e 29 acabam em hospitalizações, com seqüelas permanentes como a infertilidade. De acordo com o mais recente levantamento do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, do Ministério da Justiça, metade dos abortos são praticados por jovens entre 10 e 19 anos. A falta de alternativas já levou 27% das mulheres em idade fértil entre 15 e 49 anos a optar pela esterilização definitiva, segundo estimativa do Ministério da Saúde. Enquanto isso, um de cada quatro nascimentos é de filho indesejado ou não planejado. Proibido por Lei, mas adotado em larga escala, o aborto responde por 10% das mortes maternas e 20% das mortes de adolescentes no país.

Escolaridade e renda

As estatísticas do Programa de Atenção Integral à Saúde da Criança e do Adolescente (Paisca) da Secretaria Estadual da Saúde mostram que 20% das gestantes que recorreram ao serviço público na hora do parto são adolescentes com idades entre 10 e 19 anos. Nesse período, houve um decréscimo no total de nascidos vivos, mas o percentual de mães adolescentes se manteve. No começo da década, era de 17%. Das cerca de 185 mil gestantes gaúchas que ganharam seus filhos pelo SUS em 1999, 35,7 mil tinham entre 15 e 19 anos de idade e 1,4 mil estavam na faixa etária dos 10 aos 14. Em 2000, foram 176 mil partos: 35,6 gestantes menores de 20 anos e 1,5 mil com idades entre 10 e 14 anos. No ano passado, dos 160,4 mil partos feitos pelo SUS, 32,3 mil foram de mães adolescentes: 1,2 mil na faixa dos 10 aos 14 anos de idade.
Jovens com menor escolaridade são mais vulneráveis à gravidez precoce, lembra a psicóloga Nalu Both, da Secretaria Estadual de Saúde. Ela cita a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, feita no Brasil em 1999 pela ONG Bemfam. O percentual de jovens com idades entre 10 e 19 anos sem nenhum ano de escolaridade que haviam engravidado naquele ano ficou em 50%. Entre as adolescentes que freqüentaram a escola por um período de nove a 11 anos, o percentual de gravidez despenca para 4%. Da mesma forma, a condição sócioeconômica incide sobre os índices de gravidez precoce. De acordo com o censo de 1998 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 9% das adolescentes de 15 a 17 anos com renda familiar de meio salário mínimo já viveram a experiência da maternidade. Nas famílias com renda de dois salários mínimos, o percentual não passa de 0,8%.

Mudança de comportamento

A maioria dos jovens que se envolve com a gravidez está redirecionando suas vidas e mudando o comportamento. A constatação é da pesquisa Gravidez na Adolescência: Gênero e Sexualidade, desenvolvida pelas universidades federais do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Bahia. “A gravidez em si não é o que impulsiona o jovem para o mercado de trabalho ou provoca seu afastamento da escola. A maioria desses adolescentes já havia abandonado os estudos quando engravidou e os homens já estavam no mercado de trabalho quando se tornaram pais”, afirma a antropóloga da Ufrgs Daniela Knaut, coordenadora da pesquisa em Porto Alegre. Para medir o impacto da gravidez na trajetória dos jovens, foram entrevistados 4,6 mil pessoas com idades entre 18 e 24 anos em três capitais: Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador. “Pela primeira vez uma pesquisa do gênero acompanha a trajetória de jovens que não tiveram o evento de gravidez para comparar com aqueles que viveram essa experiência. Também incluímos jovens de sexo masculino na pesquisa. Temos uma posição crítica em relação à crença generalizada de que a gravidez na adolescência é um problema. Ela provoca uma pequena interrupção nos seus projetos e até funciona como motivação para que os jovens busquem postos mais qualificados no mercado de trabalho”.

A pesquisa constatou que as adolescentes gaúchas têm a primeira relação sexual aos 16 anos e os meninos, aos 17. No Rio de Janeiro, a média de idade da primeira experiência é 18,3 para as meninas e 17,8 anos para os meninos. Em Salvador, acontece aos 16 anos. Em Porto Alegre, é maior o uso de prevenção: 71% dos entrevistados homens e 68% das mulheres afirmam ter usado preservativo na primeira relação: eles para se proteger de doenças sexualmente transmissíveis e elas para evitar a gravidez. “As mulheres são mais suscetíveis à mudança de comportamento a partir da escolaridade: quanto mais instruídas, mais aprimoram os cuidados com o corpo e os métodos de prevenção. Já os homens são pouco permeáveis à informação, seja na favela ou na classe alta”, acrescenta Daniela.

O estudo mostra que os professores ainda estão distantes da formação sexual dos jovens. É na escola que os adolescentes obtêm informações sobre DST e Aids .“Quando o assunto é sexo e gravidez, a escola some. Os meninos obtêm conhecimentos sobre esses dois assuntos com amigos e as meninas recorrem às mães”. O pai é ausente da formação sexual dos filhos, mesmo para os rapazes. A participação dos pais e da família na orientação sexual é maior em Porto Alegre, por conta dos maiores indicadores de escolaridade e da qualidade dos serviços de saúde, segundo a antropóloga. Uma parcela de 8% dos entrevistados do sexo masculino revelam que já recorreram ao aborto, prática admitida por 3,7% das mulheres na capital gaúcha. Segundo a pesquisa, esses percentuais são maiores em Salvador: 16,9% dos homens e 11,3% das mulheres já recorreram ao aborto caseiro ou recorre a clínicas clandestinas. No Rio, a incidência é de 11,2% e 9,3% respectivamente. “A maioria dos jovens que viveram a experiência da gravidez manteve os filhos, mas a presença da família é fundamental, inclusive financeiramente”.

“Achei que nunca ia acontecer comigo”

Aos 14 anos, Franciele mal largou as bonecas e já segura seu bebê no colo. No quarto da casa onde mora com os sete irmãos, a mãe e o padrasto, na Grande Porto Alegre, brinquedos, bichinhos de pelúcia, cadernos coloridos com letras de músicas de Sandy & Júnior e fragmentos de livros de Paulo Coelho cederam espaço na estante para as fraldas e as roupas do recém-nascido. “Não sou mais adolescente. Agora sou mãe. No começo, foi um tremendo choque, não estava preparada. Achei que isso nunca ia acontecer comigo. Tomei Cytotec (remédio para úlcera que provoca fortes contrações uterinas e pode levar ao aborto), entrei em depressão profunda e só decidi que não queria mais abortar quando já estava no sétimo mês de gravidez. Comecei o pré-natal tarde, senti medo e culpa, rezei para que o meu filho não nascesse deformado. Depois que se recuperou do choque, minha mãe teve paciência, apoiou. Foi bonito ver a barriga crescendo, a carinha do bebê quando ele nasceu. Agora, olho meu filho e sinto que a responsabilidade só está começando. “A exemplo de Franciele, Andréia, 18, também ficou grávida aos 15. “Quando decidi tomar anticoncepcional já era tarde. Achava que isso nunca ia acontecer comigo. Mas aconteceu e foi melhor assim. Eu cresci. No meu colégio tinha cinco adolescentes grávidas. Fui a única que voltou depois do parto”.

“Nunca pensei que pudesse engravidar na primeira transa”, diz Maiara, 16, irmã de Andréia, com a filha recém-nascida no colo.
Internada em um hospital público de Porto Alegre com hemorragia, resultado de uma tentativa de aborto malsucedida, Marina, 17, que já é mãe de um menino de três anos, não teve a mesma sorte. Ao descobrir que estava grávida pela segunda vez, recorreu ao Cytotec, o abortivo mais citado pelas adolescentes, ainda que proibido no país desde 1991.

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