ECONOMIA

Desemprego e desalento: Brasil paga preço do negacionismo

A economista e mestre em Economia da Ufrgs, Virgínia Donoso, analisa a conjuntura econômica do país e o agravamento do desemprego na pandemia
Por Jacira Cabral da Silveira / Publicado em 19 de abril de 2021
"A pandemia detonou o mercado de trabalho, que já vinha fragilizado. Entre dezembro de 2019 e dezembro de 2020, 8 milhões e 373 mil pessoas perderam seus empregos"

Foto: Igor Sperotto

“A pandemia detonou o mercado de trabalho, que já vinha fragilizado. Entre dezembro de 2019 e dezembro de 2020, 8 milhões e 373 mil pessoas perderam seus empregos”

Foto: Igor Sperotto

Economista com especialização em relações de trabalho, Virgínia Rolla Donoso, juntamente com uma equipe multidisciplinar do site Democracia e Mundo do Trabalho, analisa e monitora o mercado de trabalho e direitos trabalhistas a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) – a única que restou no país para acompanhar as flutuações trimestrais e a evolução da força de trabalho no Brasil. Graduada em Ciências Econômicas e mestre em Economia pela Ufrgs, Virgínia trabalhou 18 anos no Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), onde assessorava temas relacionados à conjuntura econômica e análise de dados voltados ao mundo do trabalho e, nos últimos oito anos, coordenou a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) em Porto Alegre. Ao avaliar o impacto da pandemia no mercado de trabalho, ela destaca as consequências desastrosas do negacionismo por parte do governo federal no enfrentamento do coronavírus que agudizou a crise de saúde no país, amedrontando tanto a procura de emprego por parte do trabalhador, quanto a criação de novos postos de trabalho por parte do investidor. “Se compararmos o mercado de trabalho de dezembro de 2019 com o último dado do IBGE, de dezembro de 2020, temos a retirada de 8,4 milhões de pessoas do grupo de ocupados. Perdemos esse contingente gigantesco de pessoas que estavam trabalhando”, resume.

Extra Classe – Considerando o desmonte das instituições de pesquisa dos últimos anos, como é lidar exclusivamente com os dados fornecidos pela PNAD Contínua para compreender o mercado de trabalho?
Virgínia Rolla Donoso – Os 25 anos da PED foram parar na minha mão por conta do desgoverno Sartori (José Ivo Sartori, do MDB, governou o estado de 2015 a 2019) no sentido de fechar a Fundação de Economia e Estatística (FEE), e também por um desmanche muito grande do governo federal que deixou de aportar os recursos que vinham via Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para as pesquisas nos estados. Com isso, o Rio Grande do Sul perdeu uma grande série histórica de análise de dados do mercado de trabalho da região metropolitana de Porto Alegre. A PNAD Contínua nos permite uma análise de 2012 para cá. Ela é uma pesquisa mais curta, não nos permite trabalhar com dados recentes com relação a crises anteriores, nem estou considerando aqui a ‘crise pandemia’, mas eu digo ‘a nossa crise, recessão econômica 2015/2016’. O Brasil hoje navega num mar bem curtinho, não temos informações muito profundas, mas não deixam de ser superimportantes. São nosso alicerce para pensarmos políticas públicas.

EC – Em que o contexto econômico brasileiro, que “recepciona” a pandemia, potencializa as consequências da crise da saúde no mercado de trabalho?
Virgínia – Estamos fechando um ano de pandemia e ela impacta no mercado de trabalho brasileiro, que vem muito fragilizado. Até 2014, tivemos a menor taxa de desemprego da série histórica da PNAD Contínua, que ficou em 7%. Estávamos vivendo um período muito positivo para o mercado de trabalho, embora tivéssemos ainda 6 milhões de pessoas desempregadas. De 2014 em diante, ocorreram todos os percalços políticos que acabaram refletindo na economia de forma muito severa: o impeachment; a retomada de governos que não usaram política pública para frear o desemprego nem recuperar empregos. Então, de 2014 até 2018, entramos numa crise muito grande, sendo que, em 2015 e 2016, houve um período de recessão econômica, com queda muito significativa do Produto Interno Bruto (PIB), e o desemprego esteve colado nesse mau desempenho e se aprofundou. A taxa de desemprego passou de 7% para 12%, 13%.

EC – Ou seja, o desemprego duplicou no país após o golpe.
Virgínia – Saímos de um patamar de desempregados de 6 milhões e passamos a ter um grupo de 12 milhões de desempregados. Ao longo de 2018 e 2019, ocorreram pequenas recuperações no mercado de trabalho, mas é importante salientar que as pequenas variações positivas e a redução do desemprego, ou a manutenção da taxa, fazendo com que ela não aumentasse, não foram de uma maneira muito virtuosa. Foi uma retomada do mercado de trabalho através de empregos frágeis, de uma precarização do mercado de trabalho. Um número muito grande de pessoas entrando no mercado de trabalho sem carteira assinada, houve um aumento grande de autônomos. Mas esses empregos não têm acesso à proteção. A pandemia simplesmente detona com o mercado de trabalho, que já vinha frágil. Se compararmos a realidade de dezembro de 2019 com o último dado do IBGE, de dezembro de 2020, temos a retirada de 8,4 milhões de pessoas do total de ocupados. Perdemos esse contingente gigantesco de pessoas que estavam trabalhando.

“De 2014 até 2018 entramos numa crise muito grande. Em 2015 e 2016 houve um período de recessão econômica, com queda significativa do PIB. O desemprego esteve colado nesse mau desempenho e se aprofundou, de 6 milhões para 12 milhões de desempregados”

Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

“De 2014 até 2018 entramos numa crise muito grande. Em 2015 e 2016 houve um período de recessão econômica, com queda significativa do PIB. O desemprego esteve colado nesse mau desempenho e se aprofundou, de 6 milhões para 12 milhões de desempregados”

Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

EC – E para onde se dirigiram as pessoas que perderam sua ocupação?
Virgínia
Não foram totalmente para o desemprego. Para uma pessoa, através da pesquisa, estar desempregada, o IBGE tem que ir lá na casa dela e perguntar: ‘A senhora está procurando emprego?’. Se a pessoa disser ‘Não, não estou procurando emprego’, por mais que ela precise, ela não é considerada desempregada, e vai então para um grupo de pessoas que não força a taxa de desemprego. Isso foi o que aconteceu com a pandemia, uma coisa muito curiosa de se compreender. As pessoas deixaram de procurar. Houve uma saída massiva de pessoas do mercado de trabalho, impactando de forma muito significativa a taxa de desemprego. Assim, não tivemos um desemprego explodindo, porque as pessoas deixaram de buscar emprego. Essa saída acabou não levando milhões de pessoas para o desemprego e a gente tem, nesse período de um ano, 2,3 milhões de aumento no desemprego, que é um número enorme, é uma situação muito difícil e muito frágil pra gente viver.

EC – Houve alguma retomada do mercado de trabalho no último trimestre de 2020?
Virgínia – O segundo semestre da economia, em condições normais, sempre é um pouquinho mais pujante em relação ao primeiro, porque tem a injeção do 13° salário na economia. São períodos que favorecem mais uma retomada e um crescimento. Tem o Natal, o consumo, mais dinheiro circulando na economia no segundo semestre, o que favorece indicadores mais positivos.

EC – Mas isso não aconteceu em 2020 devido à pandemia?
Virgínia – Nunca deixamos de viver um grande problema no Brasil como no resto do mundo, mas aqui os problemas têm sido potencializados por uma política negacionista em relação à gravidade da pandemia, que é evidente. O último trimestre não respondeu positivamente por isso, porque não houve um olhar atento com relação à política necessária que o governo brasileiro deveria ter assumido quando, no meio do ano, foi acenado com possibilidades: de compra de vacinas, de manter o distanciamento social, de uso de máscara. Todas essas políticas que o mundo inteiro sinalizava como importantes e que deveriam ser percorridas, e levantadas como uma bandeira, o Brasil negou. No último trimestre, não tivemos piora de grandes indicadores porque a taxa de desemprego realmente não aumentou, ela teve uma pequena redução. Mas não podemos dizer, de forma nenhuma, que tivemos uma retomada, ou que tivemos saldos positivos, digamos, que parou de piorar.

EC – O que ocorreu?
Virgínia – Foram gerados empregos mais frágeis, teve um pouquinho de aumento do emprego doméstico – e, geralmente, esse emprego não é com carteira assinada. Foi um pequeno aumento em alguns setores, como comércio, informações. O setor público sempre mostrou algum dado um pouquinho positivo. Mas isso não resultou em grandes números para que a gente pudesse se apoiar.

EC – E agora, é possível perceber alguma sinalização da economia pela contratação?
Virgínia – A gente não vê empresário com olhar positivo para fazer essa retomada, ao mesmo tempo em que as pessoas que saíram do mercado de trabalho deixaram de procurar emprego. Porque, realmente, há um grupo de pessoas que acredita que a pandemia é uma coisa muito séria, e essas pessoas não devem efetivamente sair de casa. Não tem empresário, não tem empreendedor algum que, frente à situação que estamos vivendo, vá ter coragem de abrir um negócio. Uma pessoa que tem recursos, que tem dinheiro para investir não fará isso frente à falta de um horizonte positivo, porque não há uma política que dê segurança a qualquer tipo de empresário que queira investir num mercado produtivo para geração de emprego e renda para o Brasil.

EC – Quem sofre o maior impacto da pandemia?
Virgínia – O que a gente vê cada vez mais são pessoas que investem no mercado financeiro, no mercado especulativo, porque ali a rentabilidade é muito mais garantida do que investir no mercado produtivo, contratando. O ambiente é ruim para todas as esferas, mas quem tem renda pelo menos tem poupança, empresários têm maneiras de sobreviver, mas a classe trabalhadora, e as pessoas que saíram do trabalho, as que estão procurando e as que não estão procurando porque não sabem nem onde procurar, essas pessoas estão à deriva, completamente desamparadas e não têm pra onde correr.

EC    Qual é a eficiência social e econômica do auxílio emergencial a partir dessa projeção? Qual seria o valor ideal desse auxílio?
Virgínia – O IBGE fez um cálculo, através de uma pesquisa que era PNAD Covid-19, mostrando que um em cada quatro domicílios tinha pessoas recebendo o auxílio emergencial do governo. Aquele auxílio, que lá atrás foi conseguido a duras penas, no valor de R$ 600,00, foi de uma importância ímpar para a economia e para as pessoas que o receberam. Todas as políticas governamentais de transferência de renda – auxílio emergencial, bolsa família, e todas as outras que conseguiram ser mantidas fizeram com que a economia não caísse ainda mais do que os 4,1%, que foi a queda do PIB divulgada no início de março pelo IBGE. Essa medida foi essencial para o nosso tropeço não ter sido ainda maior. Os números e os indicadores nos mostram uma perda total do controle por parte dos agentes públicos nos estados, nas prefeituras, frente ao desgoverno federal que não tem um norte, não tem uma política central e nacional de vacinação em massa e de controle de isolamento social e uso de máscaras. Outra política pública importante é o seguro-desemprego, que foi amplamente acionado e segurou muita família do desespero ao longo do período.

"O tropeço da economia – queda de 4,1% do PIB – teria sido maior sem as políticas de transferência de renda que conseguiram ser mantidas, como o auxílio emergencial e o bolsa família"

Foto: Igor Sperotto

“O tropeço da economia – queda de 4,1% do PIB – teria sido maior sem as políticas de transferência de renda que conseguiram ser mantidas, como o auxílio emergencial e o bolsa família”

Foto: Igor Sperotto

EC – Quais são as formas de ocupação mais atingidas pela crise?
Virgínia – O comércio foi a mais prejudicada. Depois, o segmento de alojamento e alimentação, que são bares, restaurantes, hotéis. Houve perdas muito importantes de postos de trabalho de dezembro de 2020 contra dezembro de 2019. Mas o serviço doméstico teve uma redução de 22%, em termos percentuais, e foi o setor que mais reduziu, e reduziu no trabalho doméstico com carteira assinada. Já é um trabalho mais frágil. A renda do emprego doméstico oscila no valor do salário mínimo. Acho importante dizer ainda que nesse período, em que a redução na ocupação foi de 8 milhões 373 mil pessoas, o setor que mais diminuiu foi o emprego com carteira assinada do setor privado, onde tivemos uma redução de 3 milhões 783 mil, e sem carteira foram 1 milhão 870 mil. O emprego doméstico perdeu 1 milhão 454 mil trabalhadoras, sendo que a maioria delas, 964 mil, foram as menos protegidas, sem nenhum tipo de acesso a benefício social, e as com carteira assinada foram 489 mil trabalhadoras. Esses números são os maiores e dão o tamanho do quadro da tragédia da redução da ocupação no período da pandemia.

 

EC – Nesse sentido, as mulheres foram as mais afetadas com o desemprego?
Virgínia – O IBGE deve divulgar em breve um dado que permite uma análise do perfil do desemprego entre homens e mulheres. Mas não há dúvida, com todas as informações que temos, nós que conhecemos o perfil dos setores, o emprego doméstico é 95% feminino. O universo do emprego doméstico antes da pandemia era de 5,8 milhões de trabalhadoras, mas ele perdeu 1 milhão e 500 mil postos. Isso, tendo como parâmetro o último trimestre de 2020 contra o último trimestre de 2019.

EC – Nesse cenário aterrador, houve algum segmento que demonstrou um movimento positivo?
Virgínia – A agricultura manteve postos de trabalho. Foi o setor que teve perda ao longo do ano, mas, da metade do ano pra cá, recuperou o seu número de trabalhadores. Tivemos a contratação de 280 mil pessoas a mais no ano. A indústria perdeu 1 milhão 252 mil postos, a construção 800 mil postos, o comércio perdeu 1 milhão e 900 mil. Agora, fazendo uma análise setorial: transporte/armazenagem/correio perderam 600 mil pessoas; alojamento, 1 milhão 560 mil; informações/comunicação/atividades financeiras e imobiliárias (onde estão os bancos e a parte de direito) perderam somente 125 mil postos; administração pública foi positiva, são 112 mil pessoas. Então, a gente pode dizer que a agricultura e a administração pública se mantiveram gerando postos e não perderam. O resto todo da economia teve redução.

EC – Quais são as perspectivas em relação à geração de emprego? Como será o mundo do trabalho pós-pandemia?
Virgínia – Não tenho a análise do outro lado, mas acho que o importante para os donos dos meios de produção é política de um governo que centralize as ações e que tenha como norte a vacinação em massa, porque, antes de termos nossos 212 milhões de habitantes vacinados, a economia não vai ter como responder. Projetando um cenário um pouquinho positivo, vamos pensar que daqui a um mês as coisas vão estar um pouco melhores, porque a vacina está pingando a conta-gotas, está chegando nas pessoas mais velhas. Devemos ter uma volta de pessoas procurando emprego e isso vai fazer com que a taxa de desemprego, que está hoje em 14%, aumente porque não irão encontrar empregos esperando por elas. Não vai ter casamento entre oferta e demanda num momento ideal. Será uma busca incessante no mercado de trabalho.

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