GERAL

Nem toda novidade é boa

César Fraga / Publicado em 16 de março de 2004

Celso Antunes é paulista, nascido em 1937, bacharel e licenciado em Geografia pela Universidade de São Paulo, mestre em Ciências Humanas e especialista em Inteligência e Cognição. É membro consultor da Associação Internacional pelos Direitos da Criança Brincar, reconhecido pela Unesco, autor de quase duas centenas de livros didáticos, sendo 40 obras teóricas sobre educação. Também é consultor de diversas revistas especializadas em ensino e aprendizagem. Suas obras voltadas para temas de educação foram publicadas por diversas editoras brasileiras e traduzidas pelos EUA e Europa.

Ministrou aulas para todas as séries e graus dos difententes níveis . Foi diretor de grandes colégios particulares em São Paulo. Atualmente é diretor do Colégio Sant´Anna Global e professor da Universidade Sênior da Terceira Idade na PUC da mesma cidade. Ministrou palestras e cursos em todos os estados do Brasil, na América do Sul e na Europa, participou de Jornadas Pedagógicas e de Congressos Internacionais em diversos estados brasileiros, em Montevidéu (Uruguai), em Huelva (Espanha), em Madri (Espanha) e em Lisboa (Portugal). A entrevista que se segue foi concedida ao Extra Classe em duas ocasiões durante a primeira quinzena de fevereiro, com o objetivo de levar parte do conteúdo da conversa que terá com os professores na aula inaugural do dia 4 de março, na PUC, em Porto Alegre, promovida pelo Sinpro/RS.

Extra Classe – Como o senhor vê, comparativamente, as escolas tradicionais e as “modernas” em termos qualitativos?
Celso Antunes
– Impossível “qualificar” uma escola quanto à circunstância de se apresentar como “tradicional” ou como “moderna”. Uma escola tradicional, se fiel a seus objetivos, desenvolve uma linha de ensino e estabelece reflexões sobre aprendizagem de maneira diferente de como faria uma escola moderna, mas ainda assim pode ser excelente, pois alcança a missão que se propõe atingir. Não são seguramente os mesmos os objetivos cognitivos em uma escola “tradicional” ou “moderna”, mas a aceitação dessa diferença não pode abrigar uma hierarquia e afirmar que esta é melhor do que aquela.

EC – O conservadorismo pode ser também sinônimo de qualidade? Como podemos medir essa qualidade em resultados?
Antunes
– Sem dúvida alguma. Ensinar alunos hoje, assim como Hegel (1770-1831) o fazia, não envolve a identificação de que sua maneira de trabalhar era “errada”. Muitos de seus alunos, efetivamente, apreendiam e não poucos chegaram próximos à genialidade, circunstância que revela que sua forma de pensar a aprendizagem mostrava-se adequada para os propósitos que tinha em mente. O que se discute é se o aluno de hoje, envolvido pela globalização e cercado pela massificação da informação, reagiria satisfatoriamente aos métodos de ensino usados no passado. Impossível generalizar e garantir que os que hoje vivem somente aprendem quando se matriculam em escolas “modernas”.

EC – Gostaria de devolver uma pergunta que é sua: O que é uma escola tradicional? De que forma ela pode associar seu conservadorismo à qualidade e à eficiência? O que Hegel tem a ver com isso tudo?
Antunes
– Creio que uma escola tradicional é toda aquela que busca principalmente a formação de alunos com amplos conhecimentos e sólida bagagem humanista, pessoas críticas e conscientes de que não se conquista qualidade no saber senão através de muito esforço e de integral dedicação.
Para essas escolas é essencial o pleno domínio da leitura e da escrita, a capacidade de lidar com seus signos e símbolos com fluência sem prejuízo de uma percepção da existência de muitas linguagens usadas pela humanidade e do domínio pleno da matemática e suas relações com a vida, compreendendo a rede de relações sociais e atuando como efetivos cidadãos. Uma escola que almeja alunos capazes de selecionar e classificar as informações, colocando-as a serviço da cooperação e do crescimento cultural.

Se uma escola é extremamente leal a sua clientela, tornando concreto e explícito esses objetivos e os esforços que esse alcance exige e se os pais e os alunos que a procuram estão conscientes dessa missão, essa escola, perante a maior parte de suas concorrentes, poderia ser identificada como uma “escola conservadora”, mas nem por isso uma escola menos eficiente do que outras “modernas”. Hegel destacou-se por propor métodos de ensino que buscavam a densidade no conhecimento e a aplicação integral dos alunos, e esses métodos podem ser adequados à realidade contemporânea, mostrando-se muito pertinentes aos objetivos que preconiza. Ensinar como Hegel o fazia implica contar com alunos que acreditam integralmente na validade dessa forma de saber e de conhecimento. E se esses dois pontos – professores e alunos – se identificam por uma linguagem comum, o modelo hegeliano é inteiramente válido nesse contexto de modernidade.

EC – Como a escola pode transformar-se em uma agência cultural?
Antunes
– Quando descobre que a informação rapidamente se banaliza e que é essencial levar o aluno a transformá-la em conhecimento e em sabedoria. Nesse contexto, a escola deixa de ser o espaço onde apenas se busca uma titulação e passa a ser um núcleo cultural onde se aprende a aprender e aprende-se a dizer-se “não”.

EC – Os temas de suas obras sobre educação, especialmente em A Dimensão de uma Mudança tratam, em parte, sobre disciplina e indisciplina. No mundo inteiro, a indisciplina é um fator cada vez mais freqüente em sala de aula. Quais são as causas estruturais da indisciplina? De que forma os educadores deveriam “administrar” a indisciplina do aluno? Quais as estratégias e formas de aulas que minimizam sua intensidade?
Antunes
– A pergunta é extremamente pertinente e atual, mas muitas vezes maior do que o espaço que se dispõe em uma entrevista para respondê-la. Escrevi dois livros, além do citado, sobre a questão da indisciplina e da violência e creio ainda ter ficado distante de ver esse tema esgotado. São muitas as causas da indisciplina e claramente percebe-se que existem quatro focos nítidos: a “escola e seus princípios”, o “aluno e as regras que ajudou construir e acatar”, o “professor como estimulador da aprendizagem significativa” e a “família na coerência em desenvolver valores comuns aos desenvolvidos pela escola”. A administração dessa dificuldade começa a tornar-se possível quando a comunidade docente reflete sobre esses focos e desenvolve projetos e planos de ação para compreendê-los, chamar alunos e pais e com eles, por meio dessa reflexão, constrói regras eficientes e democráticas.

EC – No moderno mundo do trabalho, muito se tem falado em criatividade, em todas as áreas de atuação. Desde 1994, o senhor desenvolve pesquisa bibliográfica e experimental sobre a mente humana e seu desempenho na construção de significados a partir de estímulos para a aprendizagem, memória, criatividade e atenção. O que há de novo sobre aprendizagem e, particularmente, sobre criatividade?
Antunes
– O que de novo existe é a mudança de paradigma e a certeza de que criatividade efetivamente se ensina, e memória e atenção aprende-se a desenvolver. Quando a comunidade escolar busca conhecer os meios para essa promoção, começam a desaparecer “alunos talentosos” que se acreditava bafejados pela sorte por terem nascidos assim. O ser criativo, atento e com uma memória eficiente é, sobretudo, todo aquele preparado pacientemente e progressivamente para a conquista e domínio desses atributos. Não se concebe mais alunos “desatentos”, a não ser que desejem voluntariamente sê-los.

EC – Uma recente pesquisa do Inep/MEC (Instituto Nacional de Ensino e Pesquisas) divulgou que, em todo o Brasil em 2002, as universidades públicas e privadas registraram que 105 mil vagas oferecidas em cursos de preparação de professores não foram preenchidas (a maior parte dessas vagas não preenchidas era no ensino privado). O estudo também revela que há um déficit de aproximadamente 700 mil professores na educação brasileira. Como o senhor analisa/vê o fato de que, conforme os dados, a carreira de professor está em extinção?
Antunes
– Vejo com profundo pesar, mas com a consciência de que esses resultados não são acidentais, antes fruto de políticas públicas desestimuladoras de um bom ensino. O que é bom, infelizmente, custa investimento, e o desaparecimento de professores não se dá porque entende-se a inutilidade de sua missão, mas porque vive-se em um país que não reconhece a grandeza de seu papel e a essencialidade de sua ação na construção do amanhã.

EC – Como uma aula pode tornar-se magistral?
Antunes
– Uma aula magistral – não se esquecendo de que “magister” significa “mestre” – é aquela em que se descobre que o conhecimento não é “alguma coisa” que vem de fora e que se conquista de alguém que o detém. É aquela que trabalha as redes de conexão cerebrais do aluno, abrindo-lhe inteligência e desenvolvendo-lhe capacidades, transformando informações em conhecimento, permitindo-lhe contextualizar tudo quando descobre nos desafios de seu entorno e em nome de seu projeto de vida. É uma aula que alterna estratégias e que, portanto, nem sempre é expositiva, que explora habilidades operatórias, busca sempre a significação e transforma os pontos de exclamação dos alunos em pontos de interrogação.

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