GERAL

Menos armas, mais inteligência

Por Guilherme Kolling / Publicado em 23 de setembro de 2006

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Foto: Tânia Meinerz

Foto: Tânia Meinerz

Na contramão de programas de governo e da plataforma da maioria dos candidatos a cargos públicos, o jornalista Marcos Rolim, 45 anos, afirma que o país não precisa aumentar os investimentos em segurança pública. Ele entende que tudo é uma questão de racionalizar o gasto público. Consultor em segurança pública e direitos humanos de instituições, ONGs e organismos internacionais como Unesco, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Rolim é responsável pelo raio X dos casos de violação dos direitos humanos no Estado, o Relatório Azul, editado durante seus dois mandatos de deputado estadual (e um como federal), e é autor de Síndrome da rainha vermelha – Policiamento e segurança pública no século XXI (Zahar/Oxford, 314 p., 2006), resultado de suas pesquisas na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Nesta entrevista, defende estratégias de prevenção e penas alternativas. “Ao invés de comprar armas, munição e viaturas, os governos deveriam investir na inteligência das polícias, no diagnóstico dos crimes e na prevenção dos delitos.”

Extra Classe – O que levou os presídios brasileiros ao atual estágio?
Marcos Rolim
– Temos um modelo de justiça penal que aposta na repressão, o que vem produzindo um encarceramento massivo. O Brasil mais que dobrou sua taxa de encarceramento, não só em números absolutos, mas também em números de presos por habitante. Fora os EUA, o Brasil é o país que mais aumentou sua população carcerária na última década. São mais de 350 mil presos. Isso precipitou nas penitenciárias uma crise sem precedentes, porque não foram criadas as vagas necessárias para receber essa demanda altíssima.

EC – Construir novos presídios é a solução?
Rolim
– Isso não tem o menor fundamento. A cada mês entram 9 mil novos presos e saem 5 mil, o que significa 48 mil novos presos a mais por ano. Se fosse para dar conta apenas dessa entrada, seria preciso construir, por ano, 20 presídios com capacidade para 500 presos cada um. O custo de construção de um presídio é de R$ 20 mil por vaga. Fora manutenção, agentes penitenciários, alimentação. A maioria dos presos brasileiros é de condenados à prisão por delitos de menor potencial ofensivo. Grande massa cumpre pena por furto e temos muitos presos que praticaram delitos como tráfico de drogas em pequenas quantidades. São jovens de periferia muito pobres que estão presos. Essa entrada maciça no sistema penitenciário degradou-o numa condição insuportável de vida nas cadeias.

EC – O senhor defende penas diferenciadas?
Rolim
– Pena privativa de liberdade apenas para aquelas pessoas que, uma vez em liberdade, sejam uma ameaça à vida e à integridade física dos demais. Todos os outros delitos deveriam ser punidos com penas alternativas como a prestação de serviços à comunidade e a pena de limitação de fim de semana. No mundo, há mais de 50 possibilidades. No caso de furto, por exemplo, não há sentido que um crime que envolve a subtração de bem alheio sem violência deva ser tratado no âmbito da legislação penal.

EC – Como o senhor vê a questão da repressão nos presídios?
Rolim
– Governos, como o de São Paulo, apostaram num regime de endurecimento da execução penal, imaginando que, se tivessem um regime disciplinar mais rigoroso, poderiam conter a formação de facções criminosas. E aí se criou em São Paulo, em 2001, o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que infelizmente acabou sendo incorporado à Lei de Execuções Penais de 2003. Antes, a Lei de Execuções Penais permitia uma punição administrativa máxima de 30 dias de isolamento. O RDD permite o isolamento disciplinar de um preso por até dois anos, o que significa não ter relações sexuais com a companheira, não ter acesso à tevê, rádio, nem conversar com funcionário ou com outros presos. Até o acesso ao sol é isolado. É um regime de produção de enlouquecimento. São Paulo apostou nisso. E viola todos os padrões internacionais e a Constituição brasileira, que fala em dignidade da pena, ressocialização.

EC – Esse endurecimento contribuiu para o surgimento de facções criminosas?
Rolim
– Sem dúvida. São duas coisas: a superlotação e a situação de endurecimento da execução penal. Não é uma realidade de todos os Estados, mas da maioria, com São Paulo em primeiro lugar. O RS não adotou o RDD; as autoridades penitenciárias daqui tiveram um mínimo de bom senso. Por conta disso, não temos rebeliões nos presídios, que também estão superlotados.

EC – O PCC surgiu devido ao Regime Disciplinar Diferenciado?
Rolim
– O PCC já existia e se fortaleceu com esse regime. Suas lideranças adquiriram a única chance de protesto, já que não havia outra forma de negociação com o governo. Criaram pressões externas e aí se organizou todo o sistema de apoio, de ações terroristas. Todas as soluções aventadas insistem no mesmo argumento: é preciso endurecer mais a execução penal. Nesse caminho, eles vão produzir mais violência e vão colher mais violência.

EC – A demora na liberação de presos que já cumpriram a pena não contribui para a superlotação?
Rolim
– Contribui. Não só o caso dos presos que acabaram a pena. Há outro fenômeno significativo que é o excesso de pessoas presas provisoriamente, sem condenação. A jurisprudência estabelece que o prazo limite para a prisão provisória é de 81 dias. É comum a gente encontrar acusados de delitos de menor gravidade em prisão provisória de seis meses, um ano. E a Defensoria Pública não dá conta, só atua na hora do julgamento. Há uma desproporção evidente entre o MP e a Defensoria Pública. No RS, tem 2% ou 3% do orçamento do MP. Estados como São Paulo nem isso.

EC – A sociedade não aceita muito bem a defesa dos direitos humanos quando se trata de presidiários…
Rolim
– Sim, é o discurso tradicional no Brasil, que convive com essa realidade inédita, de ser um país onde os direitos humanos são desprezados. O que dá uma dimensão do grau de incivilidade que nós construímos. Em qualquer país civilizado do mundo, a idéia dos direitos humanos é respeitadíssima. No Brasil não…

EC – As péssimas condições dos presídios seriam um reflexo desse desprezo pela condição humana do preso?
Rolim
– Celas imundas, sem condições de saúde… Isso acaba conspirando contra a segurança pública. As cadeias não funcionam para ressocializar; pelo contrário, transformam-se numa universidade do crime. Estamos financiando com nossos impostos uma máquina de produção do crime. Quanto mais o preso for tratado com respeito, quanto mais se investir nele, menos crimes teremos. Esses caras que entram na prisão, mais cedo ou mais tarde, vão sair de lá. A questão é como vão sair. As pessoas não pensam nisso.

EC – Por outro lado, há uma defesa da segurança pública.
Rolim
– Se tivéssemos uma política econômica sem resultados, digamos que a inflação tivesse disparado, o que as pessoas estariam pedindo? Mudança na política econômica! Com relação à segurança pública, quando a receita que vem sendo aplicada no Brasil há muitas décadas dá mostras de que não funciona, o que as pessoas pedem? Mais da mesma política! Querem doses mais fortes do remédio que não vem dando resultado. O desafio no Brasil é pensar em uma intervenção do Estado que previna a ocorrência do crime e da violência.

EC – Entrar na questão social?
Rolim
– Não só política so-cial, falo em política de prevenção em segurança pública mesmo. Nós temos um modelo de policiamento completamente ineficaz, corrupto, violento, que não é efetivo no combate ao crime, e pedimos mais verbas para esse sistema. É um problema de paradigma. É preciso pensar outra política de segurança pública e não pedir mais para o que não deu resultado. Os investimentos em segurança pública são sempre para comprar arma, viatura, material de repressão. Não se investe na inteligência policial, em investigação, não se tem informação compartilhada nas polícias. É uma bagunça. Os governos deveriam começar a investir em informatização, em inteligência, em preparação do policial.

EC – Há quem defenda uma polícia mais repressiva…
Rolim
– Às vezes, imagina-se que, se a polícia atirar para matar, o crime vai diminuir. Uma experiência muito concreta é a de São Paulo, que tem a Rota, um grupo da polícia militar que não faz prisões. Todas as pessoas que eles abordam como suspeito eles matam. No Rio de Janeiro tem o Bope (Batalhão de Operações Especiais) que é a mesma coisa. Incursões nas favelas à noite, tem um suspeito, o cara morre. Ao longo dos anos, os delinqüentes aprenderam isso. Não adianta se entregar para o Bope nem para a Rota. Então eles não se entregam, lutam até o final. É ele ou o policial. Com isso, aumentou muito o número de policiais mortos em São Paulo e no Rio. Com uma política de segurança de outra natureza, se faz cair os indicadores de violência.

EC – A idéia é investir mais na formação das polícias?
Rolim
– A repressão é necessária, só que deve estar subordinada a uma estratégia de prevenção. No Brasil só temos repressão. Aí entra a questão da eficácia da aplicação dos recursos. Está se criando no Brasil a idéia de que precisamos de mais dinheiro para segurança pública. Discordo. O Brasil gasta muito em segurança pública. No ano passado, só com os salários das polícias estaduais, gastou R$ 18 bilhões. Se somar as despesas com a Polícia Federal, com os guardas municipais, Ministério Público, Judiciário esse gasto se mostra imenso. A questão é saber onde aplicar o dinheiro. O padrão atual de compra de viaturas, armamentos, contratação de novos policiais não funciona. É preciso reconhecer isso. Esse dinheiro tem que ser investido na formação do policial, em recursos de inteligência para aumentar a capacidade de investigação da polícia, enfim, numa rede de informação que as polícias não têm, por exemplo, para reprimir o crime organizado.

EC – De que forma é possível investir em prevenção?
Rolim
– Grande parte dos crimes são “de oportunidade”, ou seja, acontecem quando há uma condição favorável. Se há uma punição mais efetiva, diminuem os crimes de oportunidade. Como o autor do delito parte do princípio de que as chances de ser punido são muito pequenas, ele aposta na impunidade. Mas a impunidade não tem a ver com a lei penal. Agora, por exemplo, se fala em aumentar a pena para homicídio. A máxima é de 30 anos, então vamos colocar a pena máxima para 40 anos. Mas de que adianta aumentar a pena de homicídio se no Brasil temos menos de 10% dos homicidas identificados? O problema da impunidade envolve a capacidade de investigação da polícia. A gente trabalha numa Câmara Criminal. Quando pega um processo que tem um inquérito bem feito, pára e mostra aos colegas. Porque é uma coisa tão rara encontrar um inquérito com prova, bem elaborado… Os inquéritos policiais são uma piada. Levam à impunidade.

EC – Cite um exemplo de política preventiva bem-sucedida.
Rolim
– Temos o exemplo de Diadema (SP), que há seis anos era uma das cidades mais violentas do Brasil. Uma política específica diminuiu esse índice através de investigação. Os pesquisadores descobriram que cerca de 70% dos homicídios da cidade estavam vinculados ao abuso do consumo de álcool. Eles aconteciam em até um quarteirão no entorno de bares da periferia. Com base nessa evidência científica, a prefeitura realizou um processo intenso de discussão na cidade. Fizeram mais de 300 audiências públicas em tudo quanto foi comunidade. E construíram um projeto de lei que manda fechar todos bares às onze da noite, o que acontece há quatro anos. O resultado é que eles diminuíram em 54% os homicídios nesse período, por conta dessa medida.

EC – O senhor participa de um projeto educacional dentro de um presídio. Como é essa experiência?
Rolim
– Coordeno, pelo IPA, em Porto Alegre, um projeto do primeiro curso universitário de Serviço Social dentro do presídio feminino Madre Pelletier. Há uma turma de presas e agentes penitenciários que passaram no vestibular. O IPA não ganha um centavo do governo estadual. Investimos recursos próprios para reformar, criar duas salas, biblioteca, centro de informática, para que as presas e os agentes possam ter acesso à educação como qualquer aluno do IPA. Sou um dos professores, dou aula lá todas as quartas-feiras à noite. E a repercussão dentro do presídio é a melhor possível. As pessoas vibram com o projeto do curso. Melhorou a relação entre funcionários e presas. Isso demonstra que as universidades brasileiras têm um potencial. Mas esse potencial tem sido desprezado. Temos a experiência dos hospitais universitários, que absorvem a mão-de-obra acadêmica da área de saúde. Por que não criar presídios administrados por universidades?

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