GERAL

Cultura, poder e Educação

Por Grazieli Gotardo e César Fraga / Publicado em 25 de maio de 2008

Doutor em estudos curriculares pela Universidade de Columbia (EUA), Michael Apple leciona atualmente na Universidade de Wisconsin a disciplina Currículo e Estudos de Políticas Educacionais. Profundo pesquisador da área curricular, seus livros constam na bibliografia de grande parte dos cursos de graduação e pós-graduação em Educação. Sua área de maior interesse são as relações entre cultura, poder e Educação. Em seu livro Ideologia e Currículo, aborda os perigos da imposição ideológica nas escolas e as relações de poder envolvidas no que é ensinado. O lançamento da segunda edição de Educating the “Right” – Way: Markets, Standards, God and Inequality, em 2007 (que será traduzido no Brasil com o título Educando à Direita), atualizou as informações de Ideologia e Currículo, com profunda análise de questões como os grupos sociais dominantes e oprimidos e os modelos educacionais pautados na lógica de mercado. É sobre esses temas que ele fala nesta entrevista concedida por telefone, de Wisconsin – primeiro estado norte-americano a abolir a pena de morte e pioneiro na adoção de direitos trabalhistas e reformas sociais, econômicas e educacionais.

Extra Classe – Quem são os subalternos no mundo da escola e na voz de quem eles falam?
Michael Apple
– Esta é uma questão muito difícil, pois é muito claro que as pessoas mais pobres, trabalhadores, mulheres e negros são marginalizados no mundo da escola. E isso acontece tanto aqui nos EUA como no Brasil, com as pessoas que vivem em favelas, por exemplo. É fato que essas pessoas não progridem nos estudos. Esta é uma questão muito séria que precisa ser resolvida. Uma mudança será muito difícil e só poderá ser feita com a combinação de movimentos sociais organizados, cidadãos conscientes, ações de governo e ações econômicas. Só assim será possível fazer transformações no mundo da escola para que os subordinados tenham seus direitos reconhecidos e uma escola que represente sua cultura, sua história e desenvolvimento.

EC – Nos EUA também existem essas grandes diferenças entre escolas públicas e privadas?
Apple
– Não há dúvida hoje de que temos grandes diferenças. Como no Brasil, nós temos um setor privado muito pequeno. No Brasil, como sabemos, pessoas de classe média e acima nunca colocariam seus filhos na escola pública. Nos EUA o sistema público atende aproximadamente 90% dos estudantes, ou seja, existe um grande esforço aqui para manter o sistema público. Mesmo com a diferença econômica entre a classe média e os pobres, que é grande, mas não tão grande quanto no Brasil, ainda temos subsídios para defender a escola pública. Isso pode ser temporário, mas estamos lutando, como também acontece no Brasil, para manter o sistema público de ensino para a maior parte da população.

EC – Quem são os novos oprimidos e como a Educação ajuda a reproduzir essa opressão?
Apple
– Muitos grupos se apoderaram do título de oprimidos como, por exemplo, os cristãos fundamentalistas nos EUA. Dizem que sua religião e história não são representadas nas escolas. Demograficamente, essas pessoas têm um rendimento familiar muito acima da média e eles alegam que estão fazendo por eles o que Martin Luther King fez pelos negros norte-americanos durante os anos de segregação. Isso é totalmente absurdo. Eles nunca foram linchados, assassinados, nunca sofreram segregação. E se dizem oprimidos. É algo que está crescendo em todo o mundo. Pessoas com elevada posição social, economicamente dominantes, estão reivindicando questões de raça, gênero e classe e se intitulando oprimidos. Isso está crescendo relativamente entre as pessoas de classe média ligadas à religião. No Brasil, é nítido o crescimento de algumas políticas em torno dos negros, oprimidos pela classe social. Acho que posso usar este argumento para qualquer nação que tenha uma população muito grande com diferentes cores e raças e onde exista um movimento reivindicatório. No Brasil e em outros países da América Latina, os afrodescendentes e os índios estão tentando recuperar a História com a exigência de ações específicas para eles, como se fosse possível recompensá-los pelo sofrimento. Esta é a luta de raças. Eu, particularmente, simpatizo com esses grupos. Sou pai de uma garota negra e apesar de hoje ela fazer parte da classe média, pois minha origem também é muito pobre, mesmo em vantagem econômica, ela sofreu preconceito de dois professores universitários, teve de sair da instituição e levou muitos anos para retornar. Hoje ela é engenheira. Mas ficou claro para mim que questões de raça e classe são muito difíceis de serem tratadas da mesma forma.

EC – Aqui no Brasil se implantou um sistema de cotas para negros e índios nas universidades para tentar reduzir as distorções históricas. Como o senhor vê esse tipo de experiência a partir do que foi feito nesse sentido em seu país?
Apple
– Eu sou contra e a favor de cotas. Deixe-me explicar o que quero dizer: eu sou a favor do que nos EUA nós chamamos de “reparação”. Por exemplo, não haveria indústria nos EUA se não fosse a escravidão, qualquer um que dirige um carro hoje, ou vai ao supermercado para comprar comida, ou tem todos os benefícios do capitalismo, não teria tudo isso sem a escravidão. Então minha posição é de que precisamos restituir o mal que fizemos aos afrodescendentes e aos índios. E tenho a mesma opinião sobre o Brasil. Embora, seja muito perigoso fazer isso sem considerar as classes sociais. Em países de economia neoliberal, onde os sindicatos estão sendo destruídos, as pessoas estão perdendo seus empregos, têm dificuldades para comer e para morar, e essa é uma situação muito trágica no Brasil, no México e nos EUA. Por causa da escravidão histórica, uma das coisas que a classe dominante está fazendo é dizer para os pobres que não são negros nem índios, que eles, negros e índios, estão ganhando benefícios sem dar nada em troca, ou seja, a classe dominante está colocando duas classes oprimidas uma contra a outra. Nos EUA, esses dois grupos estão reivindicando seus direitos. Por isso, digo que nunca devemos subestimar o poder das classes dominantes. Colocar dois grupos oprimidos um contra o outro os faz ficar focados na pergunta: quem realmente tem o poder e o dinheiro? Portanto, eu insistiria em políticas que combinem raça e classe social.

EC – Como as minorias podem resistir à dominação cultural das camadas hegemônicas da sociedade?
Apple
– Eles resistem todos os dias. Resistem quando têm que produzir mais com menos dinheiro, resistem através da cultura como o hip hop, da dança, da música, da forma como reagem. Muitos professores em muitos países enfrentam isso todos os dias. Eles vêem alunos que não prestam atenção, dormem nas aulas, não fazem as tarefas. Como um formador de professores e como ex-presidente de um sindicato de professores, não gosto de falar isso. Mas entendo que há diversas formas de resistência. No Brasil é muito duro para as crianças completarem a escola primária. Então, temos que perguntar: por que essas crianças resistem? Eles entendem pelo menos parte dos problemas econômicos e sociais? E então nos perguntamos o que deve ser feito com o currículo, com os professores, se eles já trabalham tanto e com tantas dificuldades. O que devemos fazer nas escolas, na economia, na saúde. Sem isso, teremos apenas resistência, até mesmo da parte dos professores. Em toda a América Latina os professores têm se tornado os novos pobres, pois não têm o suporte que precisam. Criase uma resistência de toda a sociedade à s mudanças. É nesse momento que julgo importante o papel dos sindicatos de trabalhadores e de professores, que no Brasil têm uma longa história de conquistas.

EC – Qual o papel da escola nesse conflito?
Apple
– É uma instituição contraditória. As escolas são vitoriosas e derrotadas ao mesmo tempo. Os grupos dominantes preferem que as classes trabalhadoras simplesmente repitam o que eles dizem. E durante anos, no meu país, no seu, e em muitas nações, os grupos dominantes não queriam sequer que as classes trabalhadoras soubessem ler. Eles foram forçados a criar escolas para esses trabalhadores, porém, com a condição de que as escolas deveriam ensinar o que eles pregam, sem respeitar a história e a cultura das classes trabalhadoras. Quando olho para as escolas e suas crises em muitas nações, lembro que a escola tem uma vitória parcial. Por que muitos neoliberais falam sobre a escola? Eles atacam a escola constantemente. Eles defendem o setor público, querem privatizar, eles querem jogar. Comparo a um jogo de futebol entre oprimidos e dominantes. Mas dentre o que está acontecendo no Brasil destaco Porto Alegre, com o Escola Cidadã. Com este exemplo, Porto Alegre se tornou professora do mundo, e eu falo muito sério. (Nota: o conceito Escola Cidadã
implantado pelas administrações do PT foi desativado em Porto Alegre pela atual administração).

EC – Como o senhor define o conceito de escola cidadã?
Apple
– Uma escola cidadã na minha opinião age contra as definições neoliberais que vêem o cidadão como um consumidor que faz escolhas num supermercado. Uma escola cidadã é um lugar onde as pessoas constroem e defendem uma Educação mais forte, crítica e democrática. Este é o primeiro passo. A segunda coisa é a compreensão da dialética da Educação. As pessoas nas favelas, os professores e as crianças nas escolas também devem ter voz e, por isso, exercer liderança. Vi isso especialmente na administração do PT em Porto Alegre com a eleição de pessoas representativas para as comunidades para sugerir políticas, tendo uma voz.

EC – Como foi sua experiência como sindicalista e qual a importância das organizações sindicais na democratização da sociedade?
Apple
– Eu não posso imaginar nenhum movimento para uma sociedade democrática sem os sindicatos. Eles são absolutamente cruciais para a voz dos professores, dos oprimidos, dos trabalhadores. Uma das coisas que temos que lembrar é que as pessoas estão perdendo seus empregos. E é crucial que os sindicados mobilizem as pessoas que têm e que não têm emprego. Eu quero sindicatos que trabalhem com movimentos sociais e acho que eles são o eixo da democratização. Em muitas nações os sindicatos estão sofrendo ataques freqüentes.

EC – Existe uma relação da qualidade das condições de trabalho dos professores das escolas privadas com a qualidade do ensino ofertado por essas instituições?
Apple
– Na minha opinião nenhuma instituição pode ser considerada boa e democrática se as pessoas que trabalham nela não são tratadas com respeito, autonomia e um salário decente. Eu conheço instituições em que os alunos vão muito bem em exames nacionais, o que pode parecer uma boa escola, mas os professores são desrespeitados, ganham mal e não têm autonomia sobre seu trabalho, como se estivessem trabalhando em uma fábrica. Para mim, essas escolas não são boas. Portanto, combinando respeito, autonomia e salário decente ao professor com a participação em movimentos sociais é muito mais fácil ter uma escola que progrida.

EC – No Brasil existe uma crescente tendência de mercantilismo da Educação privada. Esse modelo existe também nos EUA e em outras partes do mundo? Como o senhor avalia essa tendência da Educação ser encarada como um business a partir de uma visão empresarial?
Apple
– Não há sentença grande o suficiente que comporte a palavra Educação e a palavra Negócios na mesma frase. O que eu quero dizer é que nós destruímos o significado da Educação olhando para ela através dos óculos do mundo dos negócios. Escolas não são lugares para geração de lucro. É isso que eu penso, pois o objetivo da Educação é transformado na sua essência. O objetivo da Educação deveria ser formar cidadãos críticos, intelectuais livres, desejosos de aprender mais, de dar retorno para a sociedade. Os valores que guiam essa Educação devem proporcionar a participação de todos, além de formar líderes que questionem a economia e a política. Estes são os objetivos da escola ética. Transformar escolas em negócio as reduz a uma ú nica coisa: lucro.

EC – Quem é a nova direita e como ela pode ser definida nos EUA e no mundo?
Apple
– No meu livro mais recente chamado Educando à Direita identifiquei quatro grupos que eu chamo de modernização conservadora. O primeiro são os neoliberais, que acreditam que tudo que é público é ruim e tudo que é privado é bom. O segundo é o que chamo de neoconservadores. Estes têm um projeto cultural e econômico próprio e não querem o multiculturalismo. Neoliberais e neoconsevadores estão trabalhando juntos, pois os neoliberais privatizam a Educação e os neoconservadores podem escolher como consumidores. Estes são os grupos dominantes. O terceiro grupo que está crescendo no Brasil, Guatemala, São Salvador e outros lugares no mundo, chamado de populismo autoritário, são os religiosos evangélicos. Muito conservadores, eles acreditam que o problema das escolas é que a sociedade está longe de Deus. E que todos os problemas seriam solucionados se todos levassem a religião da mesma forma que eles. Temos ainda os chamados de homeschooling (instrução em casa), que é quando os pais tiram seus filhos das escolas e os educam em casa. Então, eles não precisam ter contato com pessoas de outras religiões, cultura ou raça. Temos hoje cerca de 2 milhões de crianças nos EUA sendo educadas desta forma. A maioria por motivos religiosos. Esta é uma tendência que está crescendo em muitos países. O quarto grupo é chamado os novos gestores. Estas pessoas são da classe média e querem mostrar que estão agindo da maneira certa, usam modelos importados e têm poder econômico.

EC – As direitas religiosas devem ser temidas por suas posições e influência na Educação?
Apple
– Não, devemos apenas respeitá-las. Eu trabalhei para movimentos religiosos na América Latina e com pessoas que diziam: “Jesus trabalha para os pobres, então é o que eu devo fazer”. Não sou contra religião, mas sou contra conceitos muito conservadores que dizem que apenas eles estão seguindo as palavras de Deus e as outras pessoas não.

EC – De que forma o currículo escolar está ligado à questão de ideologia política?
Apple
– O currículo faz parte do que eu chamo de seleção tradicional que deveria abordar o vasto mundo do conhecimento acadêmico, popular, de diferentes culturas, raças e classes sociais. Quando você olha e diz: isso é um conhecimento importante, oficial, ele pode ser conservador ou popular, mas é sempre ideologia. Mas se formos olhar para os livros didáticos em todo o mundo, quase sempre eles vão trazer a ideologia dos grupos dominantes.

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