GERAL

A sustentabilidade deve ser planejada

Por Clarinha Glock / Publicado em 24 de junho de 2008

Em 1972, Michael Shaw era um promissor engenheiro de uma grande indústria de construção. Havia tomado um avião de Sidney para Londres, onde morava, quando resolveu dar uma espiada no livro Limits to Growth (Os limites do crescimento, de Donella e Dennis Meadows) que acabara de ganhar de presente. O impacto que lhe causou a leitura transformou sua vida. Do alto do avião, ele descobriu que com seu trabalho estava destruindo o planeta ao retirar da natureza todo tipo de recursos naturais, sem se preocupar com o futuro. “Coincidentemente, estava voando sobre a Ásia, a Índia e a Europa e pude ver o tamanho da destruição”, lembra. Descobriu que não podia mais investir sua vida nesta atividade. Em 1974, comprou cem cópias do livro e distribuiu para antigos clientes, despediu-se do trabalho na indústria, e partiu para uma jornada em busca de alternativas. Mudou-se para uma ecovila, a Findhorn, na Escócia, da qual tornou-se um membro atuante. Fundada há 46 anos, a Findhorn é um exemplo de sustentabilidade no mundo. Lá, fundou o Ecovillage Institute e tornou-se diretor da Findhorn Foundation. O engenheiro inquieto que desceu do avião com um pensamento diferenciado, aos 69 anos virou uma referência em design integrado e tem ajudado a construir sistemas ecológicos de tratamento e recuperação de esgotos de baixo custo e eficiência comprovada. “Com o aquecimento global, e todos seus efeitos conhecidos, a emissão de toneladas de gás carbônico por pessoa, precisamos de alternativas”, diz Shaw. “Há uma necessidade de planejar a sustentabilidade, desde a energia que usamos nos prédios, a comida que plantamos, os transportes, e a forma como lidamos com os dejetos. É importante que tudo seja concentrado num sistema único”. Seus projetos estão na Rússia, na Índia, na China, nos Estados Unidos e, inclusive, no Brasil. Atualmente, entre outros trabalhos, está ajudando a planejar uma cidade-modelo em Harlow North, no sul de Londres. Shaw falou ao Extra Classe após fazer a palestra de abertura da Semana de Meio Ambiente de Porto Alegre, no dia 2 de junho.

Extra Classe – Qual a diferença entre a experiência em Findhorn e a experiência que você tinha antes?
Michael Shaw
– Foi um tipo de “alívio” dar um passo para fora da corporação. Eu ganhava milhões de dólares por ano, mas me dei conta de que estava no caminho errado. É difícil descrever Findhorn. Na época, eram 250 a 270 pessoas que trilhavam um caminho particular, filosófico, espiritual e ao mesmo tempo havia uma cooperação grande entre elas. Costumávamos chamar de um “experimento em vivência cooperativa”. Antes de eu entrar para Findhorn, eu estava muito focado nas coisas fora de mim: estava na indústria de construção, vivia em Londres. Findhorn tem a ver com um olhar para dentro de mim mesmo e com a descoberta do que eu sou como um ser humano e como parte da consciência.

EC – E como estas pessoas influenciaram seu trabalho de agora?
Shaw
– Acho que tenho uma atitude mais impessoal com meu trabalho. Não existe tanto o “eu”. É como a ecologia acontece. Não significa que você perde a sua identidade, mas há mais consciência do que identificação com o indivíduo. É muito mais fácil se envolver com algo maior, não só com o meu pequeno mundo.

EC – Que soluções Findhorn encontrou que podem ser disponibilizadas para outros grupos?
Shaw
– Findhorn tem uma longa história de cooperação com natureza, em muitos modos. É diferente de dominar ou usar a natureza, ou ser dominado por ela. É ter a natureza como uma parceira, uma professora. Pode-se aprender com seus processos, sintonizar com a terra, sentar em silêncio e ouvir. Você recebe isso espontaneamente, intuitivamente. Por exemplo: estávamos construindo uma nova área para concertos. E eu estava trabalhando na parte elétrica do edifício. E o arquiteto, que era mais velho que eu, decidiu que não haveria telefones no edifício. E a razão era que, se houvesse telefones, não se estaria usando as habilidades intuitivas para se comunicar. Se houver um telefone, você apenas vai levantar o telefone e discar. Se não houver, e você estiver no lugar certo e na hora certa, poderá falar com alguém. Esta é uma arte, ele disse, que você precisar refinar. Lembro que uma vez quebrou uma peça e eu precisava achar outra para substituir. E havia um grande almoxarifado bem organizado, e no departamento em que estava trabalhando naquela é poca eu perguntei: como acho esta peça? E ele disse: “Não tenho idéia. Você só tem que entrar na sala, fechar seus olhos, e usar sua intuição”. Eu pensei: isto é loucura, mas vou tentar. Entrei na sala, fechei meus olhos, peguei a peça, e era a certa.

EC – Como equilibrar esse respeito à natureza com os princípios do Capitalismo, sem se tornar um radical?
Shaw
– Existe um entendimento, mesmo no Ocidente, de que o Capitalismo tem mais de um foco de interesse. Tem o financeiro que algumas pessoas pensam que é o único. E você pode jogar este jogo, ou não. Mas é preciso haver um equilíbrio, e acho que existe uma consciência crescente, mesmo nos países mais capitalistas, de que se não se adotar mais projetos sustentáveis, haverá uma perda. O projeto com que eu e Jorge Geras nos envolvemos na Amazônia previa tratar e reciclar a água de volta para a terra, em áreas completamente destruídas pela criação de gado, que estavam desertas, na cidade de Parauapebas. A idéia era retomar a floresta. Politicamente, o contratante decidiu não fazer isso. Interessava mais a ele manter o controle sobre a á gua. O projeto não aconteceu. Teria um custo, seria muito menor para fazer o que sugeríamos, mas era uma questão de controle e poder.

EC – O senhor desenvolveu sistemas ecológicos eficientes e baratos para tratamento de água e esgotos. Qual seria o sistema mais recomendável para cidades como Porto Alegre ou São Paulo?
Shaw
– De modo geral, tem que levar em conta a cultura local de sustentabilidade. Se as administrações passadas não fizeram projetos sustentáveis, vai custar muito mais dinheiro agora do que custaria há dez anos. Mas não se pode mais dizer: vamos deixar para as próximas gerações fazerem, ou para o próximo prefeito. O design atual de sistemas de tratamento vai depender da realidade de cada cidade. Se for construir um sistema numa área nova, é relativamente mais fácil. Você pode criar a infra-estrutura, reciclagem, isso tudo é parte do design. Se for em uma parte da cidade que não tem nenhum tratamento, então tem que ser muito pragmático, avaliar se tem terra suficiente, financiamento e todo o resto. De uma forma geral, o que eu encorajaria é fazer em pequenas áreas, em vez de fazer algo massivo. Em vez de investir num sistema de 100 milhões de dólares, faça em 2 milhões de dólares, em partes, e ao menos mantenha o projeto em andamento, uma parte por vez. Fazendo desta forma, descentralizada, mas conectada uma com a outra, você pode fazer a reciclagem com um envolvimento local.

EC – O modelo utilizado, por exemplo, na China, poderia ser reproduzido em capitais e cidades brasileiras?
Shaw
– Claro. Primeiro você tem que fazer uma pesquisa para saber qual é o problema. E é muito difícil saber isso, a não ser que você coloque instrumentos na água e meça o nível de poluição. Nós temos de medir a velocidade da água em cada seção, a cada 15 metros, para traçar um perfil. E tirar amostras químicas nestas áreas. Na China, vários canais recebem dejetos de milhões de pessoas. Mesmo no Brasil há muitas favelas que recebem os dejetos das cidades De que forma podemos atacar estes problemas? Usando engenharia ecológica: utilizando os seres vivos na água para fazer o tratamento da própria água. Para tratar a água poluída num rio ou num canal, você tem adicionar oxigênio. As bactérias que fazem a limpeza precisam de oxigênio. Esse sistema é constituído de forma a filtrar o cheiro que seria exalado pela água poluída. As bactérias se fixam nas raízes da plantas. Usamos um sistema de ilhas flutuantes, que acompanham a elevação do nível das águas. Existe uma camada submersa de areadores, que ejetam ar na superfície. Como é embaixo da água, não fazem barulho. Ali há bactérias que crescem, plantadas como se fosse um jardim. As plantas têm duas funções: as que têm suas raízes na água servem para que as bactérias que se alimentam da poluição se fixem nelas. E as que estão na superfície são também muito eficientes para fixar energia fotossintética e transformá-la em enzimas que as bactérias gostam, produzindo colônias maiores. As bactérias fazem o tratamento. Este sistema pode ser usado em qualquer lugar e em grandes extensões também. Vou agora a Budapeste, porque existe lá um grande lago a ser tratado. O proprietário só poderá desenvolver algo em torno deste lago e deste canal se fizer o tratamento. Vamos limpá-lo e permitir que desenvolva. É um modelo muito econômico. Pela minha experiência, posso dizer que é mais barato que construir um sistema tradicional. Custa cerca de R$ 75 por pessoa, enquanto um sistema normal custaria o dobro, porque teria de construir os tanques. A energia usada é de um kilowat por hora, o que não é muito.

EC – E este sistema pode ser usado mesmo em áreas muito contaminadas por poluição industrial?
Shaw
– A demanda de oxigênio bioquímico é uma medida da poluição. O sistema de areação vai colocar mais oxigênio para atender à demanda. Uma tragédia (como a falta de oxigênio que causa a mortandade de peixes) pode atrapalhar um pouco o sistema, e demorar mais, mas ele vai compensar a falta de oxigênio.

EC – O senhor está ajudando a construir uma nova cidade no sul de Londres, Harlow North. Qual é o objetivo desta cidade?
Shaw
– Muitas pessoas aposentadas tinham propriedades, porque era um investimento seguro. The British Petroleum Pension Fund tinha esta terra há 30 anos. O governo de Londres disse que era preciso aumentar o número de moradias. Fomos contratados como consultores para desenvolver uma cidade ecológica, carbo neutra (sem emissão de carbonos) porque esta é uma green zone (área verde). A cidade é dividida em distritos, e cada distrito tem cerca duas mil casas. Cada uma tem tratamento de água e esgoto, interconectados. A água potável vai vir de poços. E a água não potável será reaproveitada da chuva e de esgoto tratado para lavar carros, dar descarga de banheiro, limpar ruas. Num primeiro momento, vão morar lá 25 mil pessoas. Há uma integração entre o sistema de energia, de transporte e de dejetos. Não há nada novo, mas colocando tudo junto, o cálculo é de que haja uma economia de 10% do custo normal. É um plano audacioso, que está aguardando regulação.

Design integrado amplia resultados

O engenheiro Michael Shaw tem como parceiro no Brasil o Centro de Referência e Integração em Sustentabilidade (Cris), com sede em São Paulo. O centro dirigido por Jorge Geras desenvolve projetos na área de Design Integrado de Sustentabilidade. O “desenho integrado” consiste em reunir a experiência de engenheiros, arquitetos, educadores, comunicadores, especialistas em energia e permacultura, e outros, para desenvolverem juntos um projeto. Foi assim que surgiu o Hotel SPAventura, em Ibiúna, São Paulo.

“Antes de iniciar, a gente chamou o índio Kaka Werá, que descobriu os “chacras” do lugar onde nós iríamos construir o hotel. Kaká Werá, que é considerado um especialista em difusão de valores sagrados e da medicina da cultura indígena no Brasil, disse: ‘aqui não é melhor lugar para construir’, e nós mudamos o plano inicial, respeitando seu conhecimento”, relata Geras. O desenho arquitetônico dos chalés do hotel foi inspirado nas folhas das árvores que existem no local. Um mapeamento do entorno revelou que a população ao redor do empreendimento formava o maior pólo de produtores de alimentos orgânicos e esta característica também foi levada em conta no projeto.

Geras explica que, quando se planeja, por exemplo, um painel solar, ele pode ser inviável economicamente para uma casa isolada. “Mas a gente acabou de colocar no Instituto Baccarelli de Música energia solar com biodigestor integrado, aí foi economicamente viável. Fomos questionados pelo Grupo Votorantim sobre como havíamos conseguido viabilizar a energia solar. Na realidade, conseguimos integrar os conhecimentos e as tecnologias”, explica. “Nosso interesse maior é fomentar a sustentabilidade do ponto de vista prático, unindo construção, serviços, tudo, dando mais funções para o mesmo projeto”. (Clarinha Glock)

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