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Tanques e togas: relações mutantes

Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 8 de maio de 2018
"O Supremo hoje é instituição mais forte que em 1892, quando Floriano Peixoto mandou um recado para o STF de que não haveria quem concedesse habeas corpus para os ministros se eles, os ministros, concedessem um habeas corpus com o qual o governo não concordava"

Foto: Alexia Fidalgo/ Divulgação

“O Supremo hoje é instituição mais forte que em 1892, quando Floriano Peixoto mandou um recado para o STF de que não haveria quem concedesse habeas corpus para os ministros se eles, os ministros, concedessem um habeas corpus com o qual o governo não concordava”

Foto: Alexia Fidalgo/ Divulgação

No livro Tanques e Togas – O STF e a Ditadura Militar (Coleção Arquivos da Repressão, Cia. das Letras, 336 p.), lançado em abril, o jornalista Felipe Recondo recorre à ampla pesquisa histórica com documentação inédita para produzir o primeiro livro dedicado exclusivamente ao papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal durante a ditadura militar iniciada em 1964. Ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo em 2012 pela reportagem A Farra salarial no Judiciário, que revelou o pagamento de contracheques milionários dos tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio de Janeiro, Recondo avalia com extrema cautela nesta entrevista o atual momento do STF, que segundo ele deixou de ser a corte frágil dos anos de chumbo e hoje “faz parte da vida Política (com P maiúsculo) brasileira”. Com passagens pelos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de São Paulo, portal IG, entre outros, o jornalista é sócio-fundador do site Jota, especializado em informações jurídicas.

Extra Classe – O recado do general Villas Boas ao Supremo, que virou editorial do Jornal Nacional, toca no tema central do seu livro Tanques e Togas – O STF e a Ditadura Militar?
Felipe Recondo – A mensagem enviada pelo general Villas Boas fez lembrar episódios ainda da Primeira República, envolvendo a relação do Executivo com o Supremo. Mas os tempos de hoje são diferentes. O Supremo hoje é instituição mais forte que em 1892, quando Floriano Peixoto mandou um recado para o STF de que não haveria quem concedesse habeas corpus para os ministros se eles, os ministros, concedessem um habeas corpus com o qual o governo não concordava. O Supremo de hoje faz parte da vida Política (com P maiúsculo) brasileira. Não se imagina que um comentário como este possa interferir no comportamento dos ministros.

EC – Como você interpretou o twitter do general publicado às vésperas de um importante julgamento (o da possibilidade de concessão de habeas corpus preventivo a Lula) que poderia influenciar fortemente nas próximas eleições
Recondo – Há várias interpretações possíveis. Pode-se interpretar como um recado para o Supremo de que os militares não aceitariam uma decisão em favor do ex-presidente Lula. Mas pode-se igualmente interpretar como um recado de uma figura ponderada do Exército, tomando a frente neste processo e contendo qualquer declaração mais radical em relação ao processo. Em Brasília ouve-se as duas versões.

“O Supremo foi também evoluindo em suas funções e aperfeiçoando-se no cumprimento de suas missões com o tempo. É muito fácil atacar o Supremo quando não se concorda com uma decisão”

Foto: Alexia Fidalgo/ Divulgação

“O Supremo foi também evoluindo em suas funções e aperfeiçoando-se no cumprimento de suas missões com o tempo. É muito fácil atacar o Supremo quando não se concorda com uma decisão”

Foto: Alexia Fidalgo/ Divulgação

EC – O golpe de 64, como você registra em seu livro, recebeu apoio imediato do presidente do STF à época, ministro Ribeiro da Costa. Antes disso, em 1936, flagrantemente contra o artigo 134 da Constituição de 1934, o STF autorizou a extradição de Olga Benário, esposa de Luis Carlos Prestes, grávida, para a Alemanha nazista. Mais recentemente, demorou a afastar Eduardo Cunha da presidência da Câmara, apressando o impeachment de Dilma Rousseff, entre outras decisões polêmicas. Você concorda que “o Judiciário é o poder que mais tem faltado à República”?
Recondo – A frase é de João Mangabeira (jurista, político socialista e escritor brasileiro, 1880-1964). Não me sinto à vontade para fazer essa avaliação. E, lembrando uma passagem de Mario Quintana, grande poeta gaúcho, instituições não estão numa corrida de cavalos para saber quem chega na frente. O Supremo foi também evoluindo em suas funções e aperfeiçoando-se no cumprimento de suas missões com o tempo. É muito fácil atacar o Supremo quando não se concorda com uma decisão. E está cada vez mais comum ouvir críticas ao Supremo porque parte-se de uma posição político-partidária (de todos os lados possíveis).  Quando o Supremo avança sobre determinada figura do partido A, os simpatizantes do partido B elogiam; quando a decisão atinge políticos do partido B, aí esses mesmos simpatizantes que elogiavam o STF passam a criticá-lo. O Supremo merece críticas? Sem dúvida alguma. E elas vêm sendo feitas. Mas é preciso fazê-la abandonando posições político-partidárias. Caso contrário, a crítica será pobre, superficial e não ajudará a melhorar a instituição.

EC – O interessante é que seu livro mostra que a tensão entre o STF e os governos militares começou a se intensificar pelas questões relativas ao habeas corpus na época, culminando com a suspensão deste no AI-5 para os chamados crimes políticos e contra a segurança nacional. Agora, curiosamente, vemos parcela do Supremo fazendo várias manobras para tentar evitar a discussão sobre a sua aplicabilidade. Na sua opinião, o fundo é de fato jurídico ou, devido a questão Lula, casuísta?
Recondo – Prefiro não discutir “a questão Lula”. Seria muito superficial. Existe um debate jurídico em torno das mudanças de jurisprudência do Supremo. E aqui não faço juízo de valor. O Supremo tinha uma jurisprudência até 2008 – entendia o tribunal que os recursos cabíveis após o julgamento em segunda instância não tinham efeito suspensivo. Portanto, era possível a execução da pena antes do trânsito em julgado de ação penal. O STF mudou essa jurisprudência no julgamento do habeas corpus 84078, passando a entender que a execução só pode ocorrer depois do trânsito em julgado. Em 2015, o STF mudou novamente – em movimento capitaneado pelos ministros Teori Zavascki, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, todos indicados por Dilma Rousseff. Mas, com o placar apertado, a mudança de entendimento de um ministro seria suficiente para que a jurisprudência virasse novamente. E o ministro Gilmar Mendes, que num exagero de linguagem já disse que nunca poderia ser considerado amigo do PT, declarou que mudava seu ponto de vista. Com essa mudança de posição do ministro Gilmar Mendes, o Supremo mais uma vez mudaria seu entendimento sobre o tema. Soma-se a isso o fato de o Código de Processo Penal ser expresso ao dizer que a prisão só pode ocorrer depois do trânsito em julgado da ação penal. E duas ações declaratórias de constitucionalidade foram protocoladas e poderiam levar o tribunal a virar mais uma vez sua jurisprudência. Esta não é uma questão simplória. Envolve, inclusive, questões de política criminal.

EC – O jornalista Kennedy Alencar afirmou recentemente que o ministro Edson Fachin usou esperteza política ao conceder, de ofício, um habeas corpus para permitir a prisão domiciliar de Paulo Maluf em caráter humanitário. Com isso ele, além de evitar uma derrota, também impediu o exame de uma questão importante: um ministro poderia, por meio de HC, rever a ordem de um colega? Qual a sua opinião?
Recondo – Ministros, sem dúvida alguma, utilizam estratégias no colegiado. Até que ponto isso é legítimo e até que ponto é ilegítimo? Tem sido cada vez mais comum ver essas estratégias sendo promovidas no plenário ou nas turmas. E de lado a lado. Mas vale ressaltar que o plenário do Supremo é soberano. E os ministros concordaram com a decisão de Fachin. Inclusive optaram, por maioria, não rediscutir se cabe habeas corpus contra decisão de outro ministro. Ressalto: rediscutir. O Supremo já tem decisão no sentido de não caber habeas corpus contra decisão monocrática de ministro da Corte. E ela é recente: em 17 de fevereiro de 2016, por maioria de votos, o plenário do STF julgou este tema no HC 105.959. Então, vale perguntar: só foi estratégico o ministro Fachin? E os ministros que estavam dispostos a rever a jurisprudência firmada em 2016? Não o foram?

“Em 1964, o Judiciário era um poder que estava abaixo do Executivo e do Legislativo. Hoje, temos um equilíbrio maior, com o Judiciário mais presente na vida da sociedade”

Alexia Fidalgo/ Divulgação

“Em 1964, o Judiciário era um poder que estava abaixo do Executivo e do Legislativo. Hoje, temos um equilíbrio maior, com o Judiciário mais presente na vida da sociedade”

Alexia Fidalgo/ Divulgação

EC – A presidente Cármen Lúcia controla a pauta de forma pouco democrática para um tribunal colegiado ao, por exemplo, manter a pena de prisão após condenação em segunda instância, apesar de o relator das Ações de Constitucionalidade (ADCs), Marco Aurélio, insistir que elas sejam pautadas.
Recondo – Esse é um debate interessante. O ministro Aliomar Baleeiro (jornalista, advogado, professor e político, 1905-1978; presidiu o STF de 1971 a 1973) dizia que o presidente do Supremo deve funcionar como um garçom. Com isso, podemos entender que o Supremo deveria funcionar como um parlamentarismo, sem um presidente todo poderoso, que decide sozinho o que será e o que não será julgado. A fila de processos na pauta do STF é realmente extensa. Mas o que justifica pautar um processo e deixar outro de fora? É algo que devemos sempre perguntar ao presidente. Esse caso das ações declaratórias de constitucionalidade leva a outra pergunta: pode o presidente do Supremo se negar a chamar um processo a julgamento, mesmo diante do pedido de parte do plenário? Como me disse um ministro em caráter reservado, o tribunal sai do parlamentarismo (afinal o presidente é um colega, é mais um ministro dentre os 11), torna-se um presidencialismo (com o presidente definindo a pauta de julgamento e, portanto, como a Corte interfere na agenda pública do país) e chega a uma monarquia judicial.

EC – Cármem Lúcia é seletiva?
Recondo – Eu não diria isso. Primeiro: analisa-se o comportamento da ministra Cármen Lúcia como se fosse isolado. Esta dúvida caberia somente em relação ao comportamento dela? Por que o questionamento (e é sempre positivo que lancemos dúvidas sobre o comportamento de agentes públicos) não é feito em relação aos demais integrantes da Corte? Corre-se o risco, nestas avaliações, de direcionar a crítica conforme opções políticas próprias. Novamente, isso valeria para qualquer lado. A decisão da ministra Cármen Lúcia deve ser analisada no todo, vendo-se também o comportamento dos demais ministros – aqueles que querem julgar as ações que podem mudar a jurisprudência sobre execução provisória da pena e aqueles que não querem julgar.

EC – Considerando o tema do seu livro, é possível afirmar que o país trocou a exceção fardada pela exceção de toga, quer dizer, a partidarização do Judiciário?
Recondo – Quem se dispuser ler sobre a evolução do Supremo de 1964 para cá – e o livro Tanques e Togas – O STF e a Ditadura Militar é uma singela contribuição para essa historiografia – verá que o Judiciário foi ocupando seu espaço ao longo do tempo. E o equilíbrio entre os poderes é mutável, não é algo consolidado, estanque. Em 1964, o Judiciário era um poder que estava abaixo do Executivo e do Legislativo. Hoje, temos um equilíbrio maior, com o Judiciário mais presente na vida da sociedade. No passado, era o Supremo um poder desconhecido. Hoje, é diferente. É um poder conhecido, que fala com a sociedade e que também a ouve. Repito: o Supremo e o Judiciário merecem críticas. Muitas. Mas é preciso direcionar essas análises para seus vícios, suas incongruências e suas idiossincrasias. Estamos em plena democracia, o Congresso está aberto, funcionando normalmente; teremos eleições livres em outubro; a imprensa é livre; as redes sociais são extremamente ativas e críticas; o Ministério Público é independente; os juízes têm suas garantias de vitaliciedade e inamovibilidade intactas. Felizmente não vivemos um momento de exceção. Mas podemos sim, com maturidade, discutir as decisões judiciais. E é muito bom que possamos fazer isso de forma absolutamente livre.

Foto: Reprodução

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EC – Mas levando em conta os métodos pouco ortodoxos do juiz Sérgio Moro, os julgamentos sem provas ou com base na “literatura jurídica”, entre outros exemplos, você realmente não acha que, até por questões corporativas do Judiciário, a democracia, de fato, não corra um risco?
Recondo – O sequestro do Estado por corporações é sempre um risco. E de qualquer corporação. Pode ser juiz, pode ser procurador, pode ser a burocracia governamental. Esse risco sempre existe e não é novidade, não é de hoje. O debate sobre a eficiência do CNJ na sua face de coerção também não é novo. Esse debate é travado há anos, desde que o corregedor Nacional de Justiça era o ministro Gilson Dipp, passando depois pela ministra Eliana Calmon. Creio que ninguém diria estar satisfeito com o tempo dos processos judiciais no Brasil. E o CNJ padece do mesmo problema. Por isso, o Jota criou recentemente um robô para acompanhar, primeiramente no STF, os processos que não andam. A ideia é expandir isso para outros tribunais e conselhos, justamente para acompanhar o tempo da decisão ou da indecisão.

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