MOVIMENTO

O legado de Chico Mendes

Sinara Sandri e Carlos Carvalho / Publicado em 22 de outubro de 2003

Para os companheiros de Chico Mendes, o tiro que matou o líder seringueiro há 15 anos, não atingiu o alvo. O movimento de resistência aos desmatamentos tinha mais de uma década e já começava a dar frutos. O pioneirismo ambiental destes sindicalistas dificultou a derrubada da mata e incorporou a educação como estratégia de luta. Décadas depois, o conceito de reserva extrativista como modelo de reforma agrária amazônica e a aliança dos povos da floresta demonstram sua atualidade e colocam o Acre no centro das decisões em uma nova fase de investimentos na Amazônia.

No Acre, os conflitos agrários custaram a vida de trabalhadores e lideranças como Chico Mendes e Wilson Pinheiro, mas abriram uma nova fase na disputa pelos rumos dos planos de desenvolvimento econômico para a região.

A questão não era apenas garantir a permanência na terra, mas também assegurar a preservação da floresta já que a sobrevivência dos extrativistas dependia de espécies como a seringueira e a castanheira. A derrubada da mata destruiria o ecossistema onde estes descendentes de migrantes nordestinos aprenderam a viver.

O impasse se agravou na década de 70, quando os planos de desenvolvimento do governo militar destinaram a região à pecuária. Os antigos seringais foram vendidos pelos proprietários para fazendeiros do centro-sul do país e a área precisava ser desocupada. Identificados como “paulistas” pela origem dos primeiros ruralistas que chegaram à região, os novos investidores vieram de São Paulo, Mato Grosso e Paraná para ocupar as margens das estradas federais e as áreas próximas às cidades, nos vales dos rios Acre e Purus. Enquanto falavam de suas idéias de progresso, compraram 5 milhões de hectares de terra – cerca de um terço do território do Acre – entre 1970 e 1974.

A população rural passou a viver sob ameaça, sendo pressionada por desmatamentos e incêndios para abandonar suas colocações. Pelos dados do Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA), cerca de 15 mil famílias de seringueiros fugiram para a Bolívia e a cidade de Rio Branco inchou, chegando a contabilizar um déficit habitacional de 15 mil moradias, em uma população de 200 mil habitantes, no final da década de 80.

Além do país viver sob as regras de um governo militar, o Acre foi alvo do desinteresse nacional após uma fase de intensa exploração da borracha durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo neste quadro, a transferência da propriedade da terra dos patrões seringalistas para os pecuaristas colocava os seringueiros em risco de extinção e exigia resposta.

A pé ou no lombo de burros, os seringueiros foram visitados e convencidos a fundar o primeiro sindicato de trabalhadores rurais do Acre, em Brasiléia, em 1975. Um ano depois, Wilson Pinheiro liderou um grupo de 29 seringueiros na histórica manifestação que inaugurou o chamado empate como tentativa pacífica de constranger os peões a interromper a derrubada de árvores.

Chico Mendes foi o principal incentivador na implantação de escolas como estratégia de mobilização na floresta

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Chico Mendes foi o principal incentivador na implantação
de escolas como estratégia
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A estratégia de reunir os trabalhadores e marchar até as áreas de desmatamento incluiu as famílias dos seringueiros e o resultado dos empates não ficou no zero a zero. Pelos dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre 1977 e 1988, a média anual de área engolida pelas derrubadas foi de 620 Km2 no Acre contra 2.340 Km2. No final deste período, a extensão de território acreano que perdeu a cobertura vegetal ficou em 8.900 Km2 contra 30 mil Km2 em Rondônia.

A partir de 1986, os empates chamaram atenção e o movimento dos seringueiros ganhou apoio fora do Acre, materializado nos prêmios nacionais e internacionais recebido por Chico Mendes. Em alguns casos, os empates resultaram na desapropriação e criação de reservas controladas pelos seringueiros. Além de dificultar os planos de desmatamento, os trabalhadores ajudaram a conquistar uma boa parte do território do Acre. Pelos dados do goveno estadual, as Reservas Extrativistas ocupam 2 milhões de hectares e as áreas indígenas somam outros 2 milhões de hectares.

“O Acre tem grande parte de suas florestas conservadas em função da criação das Reservas Extrativistas, fato que fez diminuir os conflitos na região. Em Rondônia, onde não houve organização das populações tradicionais locais, a devastação tem avançado de forma célere”, explica Gumercindo Rodrigues, um dos companheiros mais próximos de Chico Mendes.

Reservas e cidadania

O modelo de reserva extrativista foi desenvolvido a partir da necessidade de forjar uma alternativa à reforma agrária oficial, baseada na distribuição de lotes individuais de 80 hectares e considerada inadequada pelos seringueiros. Os extrativistas demarcam a terra pela localização das árvores e das condições de caça e pesca, em um conjunto definido pelos seringueiros como colocação. Para eles, o valor fundamental era a conformação da floresta e a extensão da área deveria ser determinada pela densidade e distribuição natural das espécies utilizadas no extrativismo.

“A insatisfação da população regional com o lote era muito evidente, principalmente se não existisse água na área demarcada. Era preciso adequar a reforma agrária às condições da Amazônia”, explica Antônio Alves, jornalista acreano que acompanhou o movimento dos seringueiros.
Além disso, outro problema se apresentava. Durante décadas, o comércio foi feito pelo sistema de aviamento em que os preços eram fixados pelos marreteiros, atravessadores que controlavam o comércio da borracha e de mantimentos. A saída vislumbrada pelos trabalhadores foi a formação de cooperativas, mas praticamente todos os seringueiros eram analfabetos e não poderiam administrá-las sem saber ler, escrever ou fazer contas.

Neste momento, a presença de Chico Mendes marcou a história do movimento. Ele foi o principal incentivador da implantação de escolas como estratégia de mobilização na floresta e de conquista da autonomia dos trabalhadores. O Projeto Seringueiro começou como uma proposta de alfabetização de adultos e rapidamente passou a atender também crianças, além de incorporar ações de saúde.

Com ajuda e financiamento de entidades e organizações não-governamentais, o programa avançou e chegou a ter 40 escolas não-oficiais em funcionamento. As famílias ajudaram a definir os temas a partir da realidade local e batizaram o material didático de Poronga, nome da lamparina usada em um suporte para cabeça para iluminar o trabalho de corte e coleta de látex feito nas madrugadas

Ao tomar contato com o material, a identificação dos novos alunos com a cartilha foi imediata. “Eles próprios afirmavam : ‘da mesma forma que a poronga ilumina a estrada para o seringueiro cortar de madrugada, o livro vai alumiar nossas idéias’”, conta a antropóloga Mary Allegretti, idealizadora do Projeto Seringueiro e responsável pela primeira aula na escola da floresta.

Borracha para os aliados
A borracha era fundamental para os veículos militares na Segunda Guerra Mundial, mas a produção amazônica estava em decadência e os seringais asiáticos sob controle inimigo. Os aliados precisavam de 800 mil toneladas anuais de borracha e norte-americanos e ingleses dividiram a responsabilidade de aumentar a produção na América Latina, África, Ceilão e Índia.

O apoio do Brasil era estratégico e os primeiros meses de 1942 foram dedicados à definição dos Acordos de Washington. O negócio previa empréstimos para implantação do parque siderúrgico brasileiro e compra de material bélico. Em troca, haveria uma base militar em Natal (RN) e o fornecimento regular de alumínio, cobre, café e borracha.

Para cumprir a meta, o governo brasileiro organizou a “Batalha da Borracha” e, durante três anos, arregimentou trabalhadores em cidades nordestinas atingidas pela seca. A produção anual de borracha precisaria saltar de 18 para 45 mil toneladas e o contingente de seringueiros na Amazônia teria que passar de 35 para 100 mil homens.

Os “soldados da borracha” saíram, principalmente do interior do Ceará, atraídos por promessas de prosperidade e contratos de dois anos de trabalho com uma remuneração de 60 por cento da venda da borracha. Durante a viagem, recebiam um pequeno salário e um adiantamento que ficava com a família. Ao chegar ao destino, recebiam dois pares de sapato, camisas, sandálias, rede para dormir, um copo, um prato e alguns talheres.

O governo dos Estados Unidos pagou 100 dólares por trabalhador entregue na Amazônia e bancou parte do orçamento dos serviços criados para a transferência dos nordestinos. Dados não-oficiais indicam a transferência de cerca de 36 mil pessoas, entre 1942 e 1944. Muitos não resistiram às condições de vida na floresta e pouquíssimos regressaram ao seu ponto de partida, no nordeste.

Com o fim da guerra, o sistema produtivo foi desarticulado e os trabalhadores não conseguiram prosperar. Pela Constituição de 1988, trabalhadores e descendentes têm direito a uma pensão vitalícia de dois salários mínimos pela participação no esforço brasileiro na Segunda Guerra Mundial. Atualmente, a dificuldade destes antigos seringueiros é cumprir as normas impostas pelo INSS para o reconhecimento da condição de soldado da borracha que incluem não apenas provas testemunhais, como também documentos firmados entre 1940 e 1945.

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