MOVIMENTO

Debate por um mundo sem guerras

Keli Lynn Boop / Publicado em 16 de março de 2004

Manifestações mundiais, convocadas pela Coalizão Internacional Contra a Guerra e pela Rede Internacional de Movimentos Sociais, vão marcar o próximo 20 de março como o dia de mobilização mundial de protestos pela desocupação norte-americana do Iraque.

A invasão do exército norte-americano ao país árabe completa um ano neste dia. Também estão previstas manifestações de apoio ao povo palestino e contra o muro do apartheid projetado por Israel no Oriente Médio. A idéia dos organizadores é repetir a histórica mobilização mundial da sociedade civil contra a invasão americana, organizada em 15 de fevereiro de 2003, quando, segundo a rede de televisão CNN Internacional, aproximadamente 115 milhões de pessoas foram às ruas para protestar. O tema da luta mundial contra a guerra começou a ganhar a atenção no centro do movimento pela construção de um outro mundo possível desde o II Fórum Social Mundial, após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, quando o lingüista norte-americano Noam Chomsky abriu a programação paralela de luta pela paz e contra a guerra.

Em Porto Alegre, a mais recente reflexão sobre as questões que envolvem essa temática aconteceu em fevereiro, durante o Encontro Internacional pela Paz e Contra a Guerra, organizado pela prefeitura de Porto Alegre com o apoio de várias entidades ligadas aos movimentos sociais. O encontro também serviu como uma preparação para o V Fórum Social Mundial, que será realizado em Porto Alegre em 2005. Mesmo sendo indiscutível a relevância do evento, um público quantitativamente inexpressivo compareceu às palestras no Centro de Eventos da PUC, confirmando ser o período de veraneio inapropriado para eventos desse porte em Porto Alegre, à exceção do FSM, que continua ampliando o interesse do público.

Mas se faltou público durante os três dias do evento, não faltaram contribuições de nomes como os de Bernard Cassen, Daniel Bensaid, Jorge Beinstein, Ana Esther Ceceña, Beverly Keene, Fernado Martinez Heredia entre outros, para a discussão de alternativas com o propósito de alterar a correlação de forças do atual sistema de poder mundial. Uma das principais conclusões do debate que inaugurou o encontro, “Crise capitalista e guerra”, apresentado pelo economista argentino Jorge Beinstein, professor da Universidade de Buenos Aires, e pelo professor de Filosofia Daniel Bensaïd, da Universidade de Paris, foi a de que é fundamental para a definição da estratégia de luta do movimento global contra a guerra o entendimento de que as relações entre a lógica do modelo econômico capitalista hegemônico hoje no mundo e a lógica de guerra não são fatos isolados, devendo ser analisados no contexto mais amplo da evolução do sistema capitalista global e da consolidação da hegemonia imperial norte-americana. Eles também defenderam que o movimento contra a guerra não deve ter apenas um caráter de denúncia, mas também deve levar a sério a idéia de guerra permanente, opondo a ela uma resistência articulada internacionalmente. Daniel Bensaïd apresentou propostas para serem incluídas à agenda política do próximo Fórum Social Mundial. Entre elas, a de que o FSM deve liderar uma campanha exigindo inspeção civil dos silos de armas de destruição em massa das grandes potências; apoiar a proposta de criação de um imposto internacional sobre a venda de armas; e de mobilização contra a instalação de bases militares dos EUA em outros países.

O papel da escola na opinião de Bensaid e Beinstein

Os professores Daniel Bensaid, autor juntamente com Michael Lowy deMarxismo, Modernidade e Utopia e mais recentemente de Marx, o intempestivo, e Jorge Benstein, um dos responsáveis pela publicação mensal argentina de esquerda, Enfoque Alternativo, e autor deCapitalismo Senil conversaram com o Extra Classe sobre imperialismo, guerra e o papel da escola para a construção da paz. Leia a seguir:

Extra Classe – O imperialismo exerce sobre os países do terceiro mundo uma ditadura muito mais poderosa e implacável do que no passado. A chantagem da dívida e o poderio militar norte-americano são alguns exemplos. Na sua opinião, quais os mecanismos reais e concretos de oposição e transformação a essa realidade?
Daniel Bensaid
– Penso que a história não é um destino, uma fatalidade, temos que trabalhar para que sejam possíveis as mudanças, sem subestimar as dificuldades. Isso supõe romper com toda uma lógica. Temos que pensar em conseguir algumas vitórias parciais. Por exemplo, vistas as situações de falência da Argentina, de crise na Bolívia e de resistência na Venezuela, não seria excessivo pensar na possibilidade de os países da América Latina articularem uma frente de renegociação coletiva da dívida. A força de resistência depende muito de se conquistar um apoio de uma base popular e social. Procura encontrar aliados no campo institucional, como parte de um jogo diplomático que não subestimo. Mas deve-se procurar apoio e alianças que não sejam à custa de perder bases sociais.

A ampliação de cada vez mais alianças para evitar o isolamento, para mim, é o tema-chave. Essas alianças não são gratuitas, elas implicam concessões que precisam de definição em relação a quais são aceitáveis e quais causam mais danos ao campo popular. Os acordos do governo Lula, por exemplo, sufocam e impedem a política social. A grande bandeira da campanha eleitoral, a Fome Zero, teve um resultado muito limitado e decepcionante até agora. O Brasil teria condições de abrir uma perspectiva e de ser referência para aquelas enormes mobilizações dos povos da América Latina que marcam a falência das políticas neoliberais, mas me parece que, pelo que está acontecendo até agora, está sendo uma decepção.

Extra Classe – Na sua opinião, qual o papel da escola para a construção da paz?
Daniel Bensaid
– Há vários. O papel da escola é fundamental e geral. Para ser sintético, abordarei dois aspectos. O primeiro é o de integração social. Através da escola, o aluno participa de uma cultura comum, se apropria de uma história comum. No Brasil, pode ser menos problemático, mas num país em que há uma forte imigração, como na França, se a escola não funciona como lugar comum há uma fragmentação da sociedade, da comunidade de origem do aluno. Na escola é que deveria ser elaborada e transmitida a idéia de unificação e a eliminação das diferenças entre culturas e identidades. O segundo aspecto é que a integração através da escola prepara para uma integração social através do trabalho, do emprego. Não me atrevo a falar no Brasil, porque desconheço a situação, mas parece ser uma tendência mundial quase generalizada de submissão das políticas escolares às condições do mercado. O mercado destrói as funções de cidadania, de educação comum e de educação cívica.

Jorge Benstein – Em primeiro lugar, a questão é como construir um mundo pacífico; a paz ideal é como amor ideal, não existe. Existe um mundo pacífico concreto num momento determinado da história. Para construir um mundo pacífico, é necessário terminar com esta sociedade de violência, de prostração. Então, quando o povo da Bolívia se revela numa insurreição e exerce a violência popular contra o sistema, está lutando por um mundo pacífico. A maneira que temos de forma concreta para lutar por um mundo pacífico é lutar contra esse sistema, através da educação, antes que o império do FMI destrua por completo nossos sistemas educacionais para formar pequenos sistemas elitistas. Então, a luta para construir uma educação de povos que tenham acesso à educação é criar culturalmente uma forma de resistência ao Império. Não se pode desligar a luta por uma reformulação, por uma reestruturação e sobrevivência da educação da luta geral dos povos por sua liberdade.

O império, a mídia e a democracia

Ana Esther Ceceña, cientista política da Universidade Autônoma do México (Unam) abordou em “A nova hegemonia Imperial” o controle sobre as reservas globais de petróleo, a biodiversidade e a água que estão no centro das ações militares dos EUA. Conforme Ceceña, a expansão mundial do poderio militar norte-americano tem visado, além dos reservatórios petrolíferos na Ásia e Oriente Médio, às áreas ricas em minérios essenciais para a indústria, para a biodiversidade e para a água na África, na América Central e na Amazônia. Ceceña também chamou a atenção para a interconexão das ações militares dos EUA na Ásia e para as que ocorrem na América Latina.

No segundo dia, em “Mídia, democracia e guerra”, o diretor do jornal Le Monde Diplomatique, Bernard Cassen, afirmou que uma parcela importante de atores do movimento altermundista, especialmente representantes de ONGs e de sindicatos, procura evitar críticas diretas à atuação da mídia por acreditar precisar dela e que alguns dirigentes dessas organizações desenvolvem uma espécie de conivência e uma postura de subserviência à mídia. O terrorismo como novo fenômeno de resistência às guerras foi um dos enfoques do editor da revista América Libre, Fernando Martinez Heredia, que participou da mesa “Meio ambiente, cultura da paz e cultura da guerra”. Segundo Heredia, o terrorismo é um elemento unificador da ideologia americana no mundo, que debilita os esforços da manutenção do conceito de estado, da soberania e da segurança nacionais.

A extensão da força da política belicista americana no mundo foi quantificada por José Luiz Del Roio, do Fórum Mondialle Delle Alternative (Itália). Del Roio destacou que o poderio político, econômico e militar dos EUA está instalado hoje em cerca de 800 bases militares espalhadas em 59 países de todos os continentes. “Os EUA gastam cerca de US$ 400 bilhões por ano em armas, uma cifra superior ao PIB brasileiro”, comparou ele no último dia do encontro, durante a mesa “Luta pela paz e contra a guerra”. Já a economista norte-americana Beverly Keene abordou a questão da dívida externa dos países do Hemisfério Sul. Keene, representante da Campanha Jubileu Sul, da Argentina, sugeriu a instalação de uma auditoria internacional para estabelecer em que medida é legítima a dívida externa desses países com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

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