MOVIMENTO

Novas relações de consumo atropelam

O moderno comércio eletrônico, o superendividamento e os cadastros de devedores exigem atualização do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que completa 20 anos em setembro
Por Cleber Dioni Tentardini / Publicado em 30 de julho de 2010

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Ilustração: Claudete Sieber / D3 Comunicação

Ilustração: Claudete Sieber / D3 Comunicação

Os especialistas são unânimes em afirmar que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) trouxe avanços importantes aos brasileiros, mas ressalvam que, prestes a completar 20 anos de sua promulgação, em 11 de setembro, necessita de leis complementares que contemplem as novas relações de consumo.

Contratos eletrônicos, cadastros de devedores e superendividamentos têm merecido mais atenção de professores, advogados e juízes atuantes na área do direito do consumidor, e de dirigentes dos órgãos de proteção municipais e estaduais.

Referência internacional em direitos do consumidor, a advogada e professora Cláudia Lima Marques, da Faculdade de Direito da Ufrgs, vê o CDC como uma lei visionária, que mudou o país e o mercado, revolucionou o Direito Civil e Processual Civil brasileiro e que continua atual no século 21, mas precisa ser aprimorada.

“A sociedade evoluiu e surgiram mudanças nas atividades de consumo, que podemos considerar positivas, mas que exigem a adequação da norma, para que a prática avassaladora do Código, que incomodou a muitos, seja mantida”, afirma a professora, que participou da elaboração do CDC, através da Lei 8.078, de 1990, em colaboração com o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), do Ministério da Justiça.

Editora da Revista de Direito do Consumidor, do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), e autora de várias obras, Cláudia adverte que os últimos 15 anos foram decisivos no aprimoramento da segurança aos consumidores e que retrocessos não podem ser mais aceitos. “Danos causados à grande massa não podem ficar impunes, e isso ainda acontece”, ressalta. Ela dá como exemplo a bancarização das atividades e a privatização, total ou parcial, dos serviços públicos. “Eles mantêm privilégios, como se fosse o Estado o que os torna muito conflituosos”, enfatiza. A professora defende a instituição das multas civis, uma bandeira da Brasilcon, a fim de inibir práticas abusivas. “Algumas empresas ainda optam pela indústria de indenizações na Justiça, ao invés de reconhecer eventuais irregularidades, porque a grande maioria dos usuários não reclama de pequenos valores cobrados além da conta, uma prática desonesta, mas muito lucrativa diante dos milhões de clientes”, explica. Os recursos, sugere, comporiam um fundo de defesa do consumidor.

Apenas 65 municípios gaúchos têm Procons

A municipalização dos Procons é uma das grandes conquistas da população nessas duas décadas do CDC. No estado, funcionam 65 unidades, muito pouco diante dos atuais 496 municípios, mas a coordenadora do Procon-RS, Adriana Burger, garante que sua equipe vem trabalhando em parceria com as prefeituras, universidades, delegacias de polícia e Ministério Público Estadual para ampliar a fiscalização.

“Estamos priorizando ações de fiscalização preventiva junto aos estabelecimentos, de conscientização dos consumidores e fornecedores, e de qualificação de servidores dos Procons municipais, através da Escola Estadual de Defesa do Consumidor”, afirma.

Com a abertura dos postos municipais, a unidade estadual reduziu seus processos administrativos, de 33 mil em 2007 para 2.648, que representam a demanda de moradores de Viamão, Alvorada e outras cidades que não possuem Procons.

No ano passado, dos 5.094 casos, 56% foram resolvidos na hora e 20% geraram processos de investigação preliminar. O fundo originário das multas soma R$ 2 milhões, parte dos recursos utilizada como incentivo às prefeituras para abrir suas unidades.

Queixas que se repetem na capital

A professora e advogada Cláudia Marques, que participou da elaboração do CDC

Foto: Cristiano Sant'Anna

A professora e advogada Cláudia Marques,
que participou da elaboração do CDC

Foto: Cristiano Sant'Anna

O Procon de Porto Alegre (Rua dos Andradas, 686) absorveu cerca de 80% dos atendimentos do Procon-RS. É disparado o mais movimentado do estado desde que começou a operar em março de 2008. Segundo o coordenador da unidade, Omar Ferri Junior, 87% das demandas são solucionadas em até dez dias. Mas ele destaca como o aspecto mais positivo a redução em 30% nos atendimentos, nos últimos quatro meses.

“O Procon não tem que ser um órgão de conflito. Por isso, realizamos um trabalho educacional e de conscientização junto ao Sindilojas, à Câmara de Dirigentes Lojistas e a outras entidades ligadas a fornecedores. Hoje, Porto Alegre é uma referência na questão da relação do consumo”, comemora.

O atendimento diário gira entre cem a 120 pessoas, fechando o mês com uma média de 2 mil cadastros. Mas nem todas as demandas geram ações do Procon. A área das telecomunicações é campeã em reclamações – telefonia fixa e móvel, banda larga 3G, internet, tevê a cabo. O consumidor também pode optar pela reclamação via internet, podendo inclusive encaminhar uma imagem do contrato ou da nota fiscal.

Mas o desrespeito ainda é marcante. Na tarde do dia 17 de junho, a reportagem do Extra Classe conversou com alguns consumidores na sala de atendimento do Procon de Porto Alegre, onde havia cerca de 20 pessoas aguardando a vez de serem atendidas. Os problemas se repetem: irregularidades em contas telefônicas, interrupção de serviços de TV a cabo, financeiras que não prestam contas, televisores que não funcionam.

A aposentada Terezinha Souza, 72 anos, não estava para conversa, de tão brava, mas mantinha a esperança de naquela tarde receber enfim seu carnê de pagamento das prestações de um empréstimo adquirido junto a um banco do Estado de Minas Gerais. Na verdade, ela contratou o empréstimo prevendo desconto em folha, mas queria antecipar a quitação da dívida.

A aposentada e pensionista Lia Martins Nunes narrou o mesmo problema à atendente, estagiária de Direito. Seu semblante era só preocupação. Aos 70 anos, teve que pedir ajuda da neta que a acompanhou por cinco vezes até o mesmo banco de Minas sem ver seu problema resolvido. Também estava ali para pedir seu carnê.

Já o estudante Eric Penha Souza, 26 anos, reivindicava uma tevê nova, alegando que, mesmo estando dentro da garantia, nem a loja nem a assistência técnica da Samsung, depois de comprovar que o aparelho de 29 polegadas, tela plana, não tinha mais conserto, quiseram repor um produto novo ao estudante. E se mostrava indignado com a última resposta do gerente da autorizada: “Me processa, então”. A queixa do projetista Leonardo Fischer, 45 anos, é da lista das campeãs de reclamações na maioria dos estados: a área das telecomunicações. Não bastasse o cancelamento irregular de alguns serviços de TV a cabo, teve que ouvir desaforos de um atendente da operadora. Sua insatisfação logo chamou a atenção de outras pessoas que fizeram questão de mostrar que também eram clientes da empresa e traziam os mesmos motivos de indignação de Fischer.

Justiça auxilia superendividados

A Justiça gaúcha disponibiliza um serviço gratuito, sem a necessidade de advogado, aos consumidores que se encontram em situação de superendividamento. O projeto-piloto, que por enquanto funciona nas cidades de Charqueadas, Sapucaia, Sapiranga, Porto Alegre e Santa Maria, renegocia dívidas alimentícias, fiscais, créditos habitacionais e decorrentes de indenização por ilícitos civis ou penais. As informações podem ser obtidas no Fórum Central, na Defensoria Pública e no Procon-RS, ou pelo site www.superendividamento.org.br

Bloqueio de telemarketing

Um dos serviços mais solicitados no Procon-RS é a inscrição no Cadastro para Bloqueio do Recebimento de Ligações de Telemarketing, o serviço Não Perturbe. Em meio ano, a entidade registrou cerca de 22 mil pedidos. O consumidor pode cadastrar, sem custo, no site www.procon.rs.gov.br, três números de telefones fixos ou móveis, do estado, que estiverem em seu nome. Após 30 dias da inscrição, as empresas de telemarketing ficam proibidas de ligar e estão sujeitas a multas de R$ 10 mil.

Cadastro de devedores

O Ministério Público Estadual e a Justiça também são constantemente acionados para atuar a favor do consumidor. Uma das questões que tem aparecido com mais frequência envolve a recusa no fornecimento de cartões de crédito a consumidores inscritos em cadastros de devedores ilegais.

Em recente decisão judicial, a Companhia Zaffari/Bourbon foi condenada ao pagamento de R$ 10 mil por danos morais a consumidora que teve o cartão recusado por estar inscrita no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) da CDL de Porto Alegre. A CDL foi punida em R$ 20 mil e condenada a disponibilizar à consumidora “todos os dados e informações sobre ela (…) bem como de explicações claras e precisas acerca dos critérios levados em consideração pelo programa Credistore para avaliar negativamente a demandante..”.

Para o juiz Mauro Caum Gonçalves, da 3ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, a consumidora foi impossibilitada de se defender uma vez que não teve acesso aos motivos que levaram à negativa de crédito. Diante do argumento da empresa que tem o direito de conceder crédito apenas a quem quiser, o juiz considera que “a negativa de crédito somente pode ser operada com base em critérios específicos, objetivos, concretos e não discriminatórios (…) – o que não foi observado pela demandada Zaffari”.

 

 

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