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Mulheres, crianças e negros são os que mais sofrem com insegurança alimentar em Porto Alegre

Esta reportagem, primeira de uma série de três, mostra a realidade de 200 mil famílias da capital gaúcha que dependem de doações espontâneas e ONGs para se alimentar
Por Amanda Bernardo, Babiton Leão, Gabriel Nunes Reis, Isaias Roberto Rheinheimer e Juliana Henzel Peruchini / Publicado em 17 de fevereiro de 2023
Insegurança alimentar atinge a capital gaúcha

Foto: Nicolas Cruse

Vulnerabilidade social atinge bairro Farrapos

Foto: Nicolas Cruse

Às margens de uma pequena rua sem asfalto que dá acesso ao bairro Farrapos, está o beco que leva até a casa de Maria Helena, 67 anos, e de onde é possível ver a suntuosa Arena do Grêmio.

Ainda fazia frio no início de novembro, e ela trajava um casaco de lã e calça de moletom. Foi com um belo sorriso, e pedidos de “não reparem a bagunça” que a aposentada recebeu a reportagem. Enquanto uma panela de pressão fazia barulho no fogão, seu neto mais novo assistia à TV. Outros três, com idade entre 7 e 11 anos, moram com ela.

“O fogão a lenha não está bom, mas com o atual preço do gás de cozinha é o que tenho condição de usar para cozinhar”, relata Maria Helena.

Os problemas de saúde impedem que dona Maria Helena trabalhe, e hoje ela vive apenas dos R$ 600 do governo. “O dinheiro do Auxílio Brasil é insuficiente para manter todas as refeições das crianças”, explica.

Os quatro netos dependem do atendimento da Fundação Fé e Alegria, para ganhar o café da manhã e almoço. À tarde, vão para a escola, onde recebem a merenda, e, à noite, jantam com a avó.

O problema é nos finais de semana, quando a avó precisa atender as três refeições diárias de todos: café da manhã, almoço e janta. Daí, tudo é regulado. “Dependo de doações espontâneas para conseguir alimentar meus netos nesses períodos”, explica Maria Helena.

A insegurança alimentar e a extrema pobreza tem cor e características comuns

Dona Maria é o rosto da estatística de insegurança alimentar e pobreza na capital gaúcha. Assim como ela, são quase 200 mil pessoas que vivem com uma situação concreta de restrição de alguma refeição diária, o que caracteriza um nível moderado de insegurança alimentar, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que utiliza Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA).

Ela também faz parte, hoje, das mais de 300 mil pessoas em algum grau de pobreza inscritas no CadÚnico de Porto Alegre, sistema do Governo Federal que mapeia famílias de baixa renda para fins de inclusão em programas de assistência social e redistribuição de renda. Também inscritos, seus quatro netos compõem o grupo de mais de 100 mil crianças em vulnerabilidade financeira — destas, 88% vivem com até R$ 210,00 mensais

Características como as de Maria Helena estão presentes na maioria dos cadastros: mulher, com baixa ou nenhuma escolaridade, na extrema pobreza, negra, sem trabalho remunerado no último ano e que recebe o Auxílio Brasil. Seus netos também compõem um grande grupo: dos mais de 300 mil cadastros, 100 mil são de crianças e adolescentes até 15 anos.

Em Porto Alegre, a cada cinco inscritos no CadÚnico, três são mulheres. Destas pessoas, 114 mil estão enquadradas na linha da extrema pobreza (renda per capita igual ou inferior a R$ 105).

Apesar de ter cerca de 20% da população autodeclarada preta ou parda, 39% das crianças de POA cadastradas no CadÚnico se auto identificam como não brancas. A problemática racial toma mais forma ao levarmos em consideração a renda per capita das crianças — quanto mais baixa a renda maior é a presença de crianças pretas e pardas.

Confira o gráfico que mostra a relação Renda x por raça

Se diferenciando da renda familiar, a renda per capita contempla o ganho mensal por cada membro da família. Recebendo 600 reais por mês do Auxílio Brasil e tendo quatro netos ainda crianças, todos os integrantes da família de Dona Maria Helena se enquadram na pobreza. O CadÚnico não recorta informações sobre os níveis de insegurança alimentar.

Metade da população de Porto Alegre sofre com algum tipo de insegurança alimentar

Realizada no período de novembro de 2021 a abril de 2022 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), a pesquisa da Vigisan II mostrou que a capital gaúcha — município com 1.492.530 habitantes — totaliza 719.399 pessoas em algum nível de insegurança alimentar e, destas pessoas, 147.760 enfrentam a fome crônica.

O levantamento também apontou que a Região Metropolitana de Porto Alegre, com um número de habitantes calculado em 4.384.302, possui 2.113.234 de pessoas enfrentando algum grau de insegurança alimentar. O Brasil tem 214 milhões de habitantes, e destes, 125,2 milhões — mais da metade da população do país — enfrentam algum grau de insegurança alimentar. São 33,1 milhões o número de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave.

Leia também:

PARTE 2 —  ONGs estão na linha de frente no combate à fome em Porto Alegre

PARTE 3 Investimento na assistência social de POA teve maior queda dos últimos dez anos

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Esta reportagem foi realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no segundo semestre de 2022.

O Extra Classe e a Unisinos firmaram Termo de Cooperação, no início de 2022, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes da disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da instituição e o acompanhamento dos estudantes na produção das edições mensais impressas do Extra Classe.

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