OPINIÃO

Reforma tributária de Bolsonaro cobra mais da classe média e protege os super-ricos

Por Anelise Manganelli / Publicado em 11 de agosto de 2021
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) recebeu o projeto de lei das mãos do ministro Paulo Guedes no dia 25 de junho

Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Projeto de Lei foi entregue pelo ministro Paulo Guedes ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), no dia 25 de junho e deverá ser votado ainda em agosto

Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Decidir onde o Estado arrecada é tão importante quanto decidir onde o Estado gasta. Na última quarta-feira, 4, a Câmara aprovou regime de urgência para o projeto de lei 2337/21, que trata justamente disso, da reforma tributária. Deve ser votado ainda na primeira quinzena de agosto. É uma proposta que altera a cobrança do Imposto de Renda de Pessoa Física e Jurídica e da tributação da renda com transações financeiras, entre outros pontos.

O caráter regressivo da matriz tributária brasileira é obsceno. No quesito de distribuição de renda, o Brasil é o 10º país mais desigual do mundo em um ranking de 140 países, de acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Tornar nosso sistema mais progressivo é urgente – isso significa que quanto maior a renda maior deve ser a contribuição, condição fundamental para o desenvolvimento econômico e social de qualquer Nação.

O brasileiro que recebeu a maior renda em 2019, de acordo com dados da Receita Federal organizados pelo economista Sergio Gobetti (Ipea), ganhou R$ 1.395.686.333,21 (um bilhão, trezentos e noventa e cinco milhões, seiscentos e oitenta e seis mil, trezentos e trinta e três reais e vinte e um centavos). Especialistas do Ipea indicam que R$ 1,1 bilhão desse montante advém de dividendos – portanto, sobre essa parte, não pagou nenhum tributo. Dividendos no Brasil deixaram de ser tributados por lei, sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995.

Inúmeros estudos mostram que, na estrutura tributária brasileira, quanto mais ao topo na distribuição de rendimentos, menores são as alíquotas efetivas pagas pelo contribuinte. Por exemplo, em 2019, 887 mil dirigentes de empresas tiveram rendimentos totais declarados no montante de R$ 354 bilhões, porém o imposto pago por esse grupo foi de apenas R$ 5,1 bilhões, o que significa uma alíquota efetiva escandalosamente baixa de 1,4%.

Imposto de Renda

Por outro lado, a ausência de atualização da tabela do Imposto de Renda pago pelas Pessoas Físicas (IRPF) acumula defasagem entre 1996 e 2020 de 113,20%. Hoje o limite da faixa de alíquota zero na tabela mensal de IRPF é de R$ 1.903. Se fosse corrigida pela perda desse período, o limite deveria ser de R$ 4.059, o que significa que 70,3 milhões de trabalhadores ficariam isentos.

O atual governo se elegeu dizendo que isentaria quem tem renda até R$ 5.000. Agora, está propondo isentar até R$ 2.500, contudo, exigindo contrapartida, que é limitar a utilização do desconto simplificado para quem recebe até R$ 3.333/mês, ou seja, só aqueles que recebem bruto até esse limite poderão utilizar o desconto simplificado de 20%. Cerca de 2 milhões de contribuintes passarão a pagar mais imposto de renda do que pagam hoje. E aquele, da promessa de eleição, que ganha, por exemplo, R$ 5 mil pagará 22,5% na fonte, sem poder usar o desconto simplificado no ajuste anual.

Lucros e dividendos

No que se refere aos lucros e dividendos, a proposta consiste em voltar a tributar em alíquota de 20% a partir de 2022. Importante e justo, aliás como é feito no mundo inteiro, exceto aqui, na Estônia e na Letônia. Contudo, o governo incluiu na proposta uma faixa de isenção de R$ 20.000/mês para lucros de pequenas empresas, optantes pelo simples, valendo para lucro presumido ou arbitrado. Quem ganha 20 mil por mês compõe a fatia dos 2% mais ricos do país – o que só demonstra o tamanho da desigualdade de renda.

Evidentemente que esse indivíduo está longe de ser rico, em função do alto custo de vida brasileiro. R$ 20 mil/mês representa menos que 4 salários-mínimos necessários, calculado pelo Dieese, que seria o salário para propiciar o mínimo ao cidadão, conforme o que está previsto na Constituição Federal, em termos de alimentação, saúde e educação. Mas o fato é que a situação dos assalariados é tão desesperadora, que esse valor de R$ 20 mil é sete vezes maior do que a proposta de isenção para os trabalhadores assalariados (R$ 2.500).

Essa isenção de R$ 20 mil só vai estimular ainda mais a “pejotização” e o planejamento tributário empresarial – fragmentação do negócio em várias empresas, prática já comum. De acordo com estudos da Comitê Nacional de Secretários Estaduais de Fazenda (Comsefaz) essa isenção pode chegar a 30 bilhões, o que representa quase um terço da receita potencial sobre dividendos.

Mas não para por aí, mesmo com essas benesses, para o governo tributar aquele cidadão “pobre coitado” do exemplo, que levou só em 2019, 1,1 bilhão limpinho de impostos, terá contrapartida. O governo propõe reduzir a alíquota no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, da atual máxima de 25%, para 20%, mas apenas para grandes empresas – totalmente na contramão do que estão fazendo outros países, como os Estados Unidos.

Patrimônio, imposto territorial, herança

Diante de tantas possibilidades de trazer mais progressividade ao sistema tributário, o governo corre para aprovar uma proposta que sequer inclui a taxação sobre o patrimônio, que é baixíssima no Brasil. O Imposto Territorial Rural (ITR) em percentual do PIB é próximo a zero. Isso tem um sentido especial no Brasil, considerado o celeiro do mundo: poupa o agronegócio, está altamente defasado, não cumpre o papel de estimular o uso produtivo e sustentável da terra e está fora do debate. Isso é inexplicável! A proposta também não inclui  adequações no Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD) e nem do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).

Não altera imposto sobre herança, que é muito baixo no Brasil. Representa apenas 0,2% da arrecadação – a alíquota varia por estado, mas há um limite no âmbito estadual de 8% sobre o ITCMD (imposto sobre herança e doações), por decisão do Senado. No Reino Unido a média de alíquota é 40%; nos EUA 29%; no Chile, 13%. Aqui, o governo tem o total de zero propostas para adequar isso.

Grandes fortunas poupadas

Enquanto boa parte dos países estão com discussão avançada ou com regramento aprovado  sobre a taxação de grandes fortunas, no Brasil, o que está previsto na Constituição Federal de 1988 sobre o isso até hoje não foi regulamentado. Nesse aspecto, o que o governo incluiu no projeto? Nada.

Durante a pandemia, cresceram as manifestações de milionários no mundo indicando que os governos devem aumentar os impostos sobre eles. Seja elevando imposto sobre patrimônio ou taxando grandes fortunas, e não se trata de caridade, se trata de manter o público consumidor dos produtos/serviços que suas megaempresas ofertam. Simples assim!

No Brasil, segundo relatório World Wealth Report, de 2020, o número de milionários cresceu 7% e chegou a 199 mil. De acordo com o noticiado pela imprensa, nenhum empresário brasileiro assinou alguma dessas manifestações. Na verdade, na última semana, vimos manifestações no sentido inverso por aqui. O dono da loja Riachuelo, em entrevista (17/07/2021), concluiu que “taxar grandes fortunas reduz desigualdades, mas empobrece os ricos”. E o presidente Jair Bolsonaro, em pronunciamento público (02/08/2021), na esteira desse tema, indagou: “se é crime ser rico no Brasil”.

Quando o custo de ser rico significa colocar famílias na fila do osso, que contam com a distribuição de pedaços de ossos com retalhos de carne para matar a fome, estamos diante de um crime! É um crime contra o povo trabalhador brasileiro, que sofre com desemprego recorde de 14,8 milhões, o governo encaminhar uma proposta para inglês ver, que despreza os principais mecanismos disponíveis de correção de desigualdades, sabendo que, comprovadamente, seja por estudos do FMI ou da Cepal, a tributação progressiva consegue reduzir, em média, 18 pontos percentuais no índice de Gini – índice mundialmente aceito para medir a desigualdade.


Anelise Manganelli é economista e técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Escreve mensalmente para o Extra Classe

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