OPINIÃO

Como construir o Projeto de Vida com 12,3 milhões de jovens sem escola e sem trabalho?

Por Gabriel Grabowski / Publicado em 4 de fevereiro de 2022

Foto: Marcello Casal JR/Agência Brasil

São os jovens mais pobres e de periferia – a grande maioria negra – os mais atingidos pelos processos de desqualificação geradores de desigualdades sociais, discriminação e preconceitos.

Foto: Marcello Casal JR/Agência Brasil

A realidade da juventude brasileira é bem mais complexa e grave. Atualmente, 12,3 milhões de jovens até 29 anos estão SEM ESCOLA e SEM TRABALHO (denominados equivocadamente de Geração NEM NEM). Dados levantados pelo Ibge, FGV, Ipea e sistematizados pelo Idados, apontam que são quase 800 mil pessoas a mais ante o primeiro semestre de 2019 – quando o grupo representava 27,9% dos jovens até 29 anos. O problema é que desde 2012 o número está em crescimento. Naquele ano, os “nem-nem” representavam 25% da faixa etária.

Considerando que a reforma do “novo ensino médio” instituiu o Projeto de Vida como novo componente obrigatório em todas escolas de ensino médio, algumas pergunta se fazem necessárias: é  possível esses jovens sem escola e sem trabalho estruturarem um Projeto de Vida no Brasil atual? A reforma não está criando uma falsa ideia de que, se fizerem tudo certo, se planejarem sua vida, se conseguirem fazer tudo o que os reformistas e a escola orientarem, eles vão prosperar e ter sucesso? No mundo real do trabalho e do mercado é simples assim?

Neste contexto, algumas outras interrogações também precisam ser feitas para pensarmos com seriedade e responsabilidade.

É possível um jovem fazer Projeto de Vida em um país que não tem projeto de nação?

Quais as políticas de Estado para as juventudes em vigência em 2022?

Qual o projeto nacional de educação e cultura para os estudantes?

Qual o projeto de formação integral e profissional, geração trabalho, renda e emprego para esse público?

Na exclusão, na pobreza, com fome e a vida em risco é possível pensar um Projeto de Vida médio e longo prazo?

Com 12,3 milhões de jovens “NEM NEM” e 13 milhões de desempregados, como projetar futuro profissional?

Qual é o Projeto do Brasil para seus 50 milhões de jovens?

A reforma do ensino médio desconsidera uma categoria fundamental: a realidade

E mesmo ao mencionar a realidade, a toma enquanto uma parte fragmentada e não como uma totalidade, como é o caso dos novos desafios do trabalho e da formação profissional, simplificando e subordinando a educação não só ao mercado de trabalho, mas às próprias relações de trabalho.

Essa escola da reforma, segundo Debora Goulart (Unifesp), não é mais uma preparação para o trabalho, já é o próprio trabalho. Daí os eixos formativos serem “processos criativos”, empreendedorismo”, “investigação científica” e “mediação e intervenção sociocultural”, voltados para elaboração de projetos e produtos. O próprio estudante pode ser um produto mais empregável ou ser mais aceitável num mercado muito instável e precário. O sujeito transformado em mercadoria.

Na presente reforma, o Projeto Vida é um componente curricular a partir de 2022. A diretriz é ensinar os jovens a empreenderem, mesmo sem as condições adequadas para isso. Sabemos que a escola não garante a alteração das relações de trabalho. Mas vai ensinar o que é prático, útil, algo de uso imediato, aplicável na inserção precoce dos adolescentes no mercado de trabalho.

A escola vai realizar uma espécie de coach existencial

Prestará uma ajuda que dialoga com o imediatismo da vida da maioria dos jovens. Atrair a atenção dos estudantes é o principal argumento para incluir o Plano Vida no currículo do novo ensino médio em detrimento de disciplinas como geografia, história, sociologia, artes, educação física e filosofia.

Para Cristiano Bodart, doutor em Sociologia (Usp), o Projeto de Vida não é uma disciplina, não resulta de um campo disciplinar ou área de conhecimento científico. Apresenta erros de falta de definições, de cunho teórico-metodológico, pedagógicos, de gestão de pessoas e erros de matriz curricular. Trata-se de uma temática pouco clara e sem bases epistemológicas.

Ele afirma que tal componente curricular impacta, ainda, sobre a carga horária das disciplinas. É falso que atrairá atenção dos estudantes, não foi pensado para o sucesso dos jovens pobres, desresponsabiliza o Estado com oferta da educação, cria instabilidade nos docentes e o “desemprego, a pobreza e a falta de acesso aos bens de consumo são convertidos em falta de interesse, de planos e de vontade de cada um e cada uma”.

O Plano de Vida aprofunda a irresponsabilidade do Estado e gera danos ao ensino médio

Falar em Projeto de Vida para a juventude brasileira implica falar de processos resultantes de uma conjugação própria entre nossa herança histórica e padrões societários vigentes. São os jovens mais pobres e de periferia – a grande maioria negra – os mais atingidos pelos processos de desqualificação geradores de desigualdades sociais, discriminação e preconceitos.

Regina Novaes, especialista em estudos sobre juventudes, aponta que as “desvantagens relativas acentuadas são expressas nas relações etno-raciais e nos atributos de género, idade, local de origem ou moradia e, também, de orientação sexual. Neste sentido, a juventude é como o espelho retrovisor que reflete e revela a sociedade de desigualdades e diferenças sociais”. Esta reforma do ensino médio não assume esta condição da juventude em sua totalidade e complexidade.

Ao contrário, destaca Debora Goulart, nesta reforma os agentes privados estão autorizados a fazer política educacional como se fossem o Estado, ditando políticas públicas.

Quem fez a reforma não foi o governo brasileiro. O governo brasileiro é o Estado onde atuam o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime),  com assessoria do Instituto Itaú Unibanco. Quem elabora a reforma é o Itaú Unibanco, quem implementa são as secretarias.

Cabe lembrar que o Unibanco já havia testado o “Projeto Jovem do Futuro” no Estado do Rio Grande do Sul e Minas Gerais no passado recente. É uma reforma empresarial feita pelo Estado. E, na ponta final da reforma temos o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), conjunto de editoras que fazem parte desses grandes holdings educacionais e que se apropriam do orçamento público da educação. São empresas e parcerias privadas que orientam a novo ensino médio.

Para Juarez Dayrell, coordenador do Observatório da Juventude da UFMG, a identidade e a realidade precisam ser partes interligadas de um Projeto de Vida. A identidade é um fazer-se, um processo social inter-relacional e, conhecer a estrutura social e os mecanismos de inclusão e exclusão onde os jovens vivem, é necessário e imprescindível.

O direito de escolher entre vários futuros possíveis

O implica, outrossim, a possibilidade de escolher um, entre vários futuros possíveis, com os desejos e fantasias, constituindo objetivos possíveis, uma orientação e um rumo de vida. Um PV é fruto de um processo de aprendizagem, cujo maior desafio é aprender a escolher e, a escolha pressupõe condições. Nossa sociedade e nossas escolas estão preparadas para apoiar essas escolhas?

Ainda predomina em nossa sociedade e nas escolas uma representação negativa e preconceituosa sobre as juventudes. Jovens são concebidos na perspectiva da falta (imaturidade), da incompletude e da desconfiança. Apenas alunos.

Torna-se necessário revisarmos e superarmos nossas concepções e convicções sobre as diversas juventudes coexistentes entre nós. Os jovens precisam ser reconhecidos como sujeitos, para além da condição de estudantes. São sujeitos que amam, sofrem, se divertem, pensam, interpretam o mundo, possuem desejos e projetos de vida. É necessário escutá-los, considerá-los interlocutores válidos e parceiros no processo educacional.

O jovem enquanto sujeito é um ser singular, que tem uma história, que interpreta o mundo e dá-lhe sentido, assim como dá sentido à posição que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história e à sua singularidade.

Para Dayrell, o sujeito é ativo, age no e sobre o mundo, e nessa ação se produz e, ao mesmo tempo, é produzido no conjunto das relações sociais no qual se insere. Portanto, tanto o jovem como o Projeto de Vida se fazem e se refazem no processo social e existencial. Nunca estão prontos nem programados. São seres e processos que se constituem ao longo da vida.

Pedagogia da Juventude

A escola, complementa Dayrell, precisa mudar e adotar uma “Pedagogia da Juventude” considerando processos educativos, que entendam os corpos em transformação, com afetos e sentimentos próprios. É preciso adequar os ritmos dos processos educativos; é necessário fazer da escola um espaço e um tempo de produção de ações de saberes e de relações.

Precisamos acreditar na capacidade do jovem, na sua criatividade e apostar no que ele sabe e que quer dominar. A escola precisa transformar-se em um Centro Juvenil e os professores precisam envolver-se mais e estabelecer relações dialógicas com estes sujeitos jovens estudantes.

Esta reforma do novo ensino médio e esta Base Nacional Comum Curricular (BNCC) continuam sendo fortemente questionadas pelos estudantes e educadores tanto mérito quanto pelo método, aprovados pós golpe 2016 e impostos por Medida Provisória. Há resistências.

Poderá ser adiada (os estados da Bahia e Rio Janeiro já adiaram) e mesmo poderá ser revogada. Levou cinco anos para chegar na escola, sem investimentos em condições de estudo dos estudantes (laboratórios, sem bibliotecas, acesso tecnologias, espaços culturais e de convivência/entretenimento) e, sem condições de trabalho dos professores, sem formação e sem valorização profissional.

Os problemas da (De)Reforma do Ensino Médio não se reduzem ao Projeto de Vida. Outros componentes e temas específicos que compõem itinerários esvaziam uma formação básica sólida em bases humanísticas e científicas.

Qual a saída? Cristiano Bodart sinaliza: enquanto não é possível a revogação da reforma e a discussão/construção, com a sociedade e as entidades científicas, de um projeto educacional humanizado, ao fecharmos as portas da sala de aula é preciso questionar a meritocracia e o empreendedorismo individualista a partir dos campos científicos.

Em síntese, instrumentalizar os jovens a lerem e entenderem o mundo que vivem e como as relações de trabalho os afetam é nosso dever ético para com eles. “Resistir é preciso, fazer não é preciso”!

Gabriel Grabowski é professor e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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