OPINIÃO

A desigualdade e a Régua de Lesbos

Por Marcos Rolim / Publicado em 12 de julho de 2022

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Foto: Reprodução

Safo e suas alunas na Ilha de Lesbos

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Para a grande maioria das pessoas, a vida é uma dura prova; para algumas poucas, é uma espécie de passeio. Mais de 33 milhões de brasileiros vivem com fome, atualmente. Em apenas dois anos, o quadro da pobreza extrema no Brasil praticamente dobrou de tamanho. Enquanto isso, nunca se vendeu tantos Porsches em nosso país.

Como bem sintetizou Thais Carrança, da BBC News Brasil, de um lado, há filas para receber ossos em açougues; de outro, filas para a compra de helicópteros.

Para que se tenha uma ideia, um dos modelos mais simples de helicópteros no mercado brasileiro está em torno de R$ 27 milhões, mas há quem esteja na espera de modelos com preço acima de R$ 90 milhões.

Esses consumidores especiais gozam também de regras especiais.

No Brasil, os donos de helicópteros, jatos particulares, iates e lanchas não pagam IPVA. Se você tiver um carro popular, paga o imposto, claro.

Sensível ao problema (atenção, trata-se de ironia), Bolsonaro também isentou de impostos a importação de jet-skis, veleiros, dirigíveis, planadores e balões.

O quadro brasileiro de desigualdade pode ser resumido se tivermos em mente que apenas 238 pessoas, bilionárias, são donas de uma fortuna que é equivalente à quarta parte do PIB, enquanto 77 milhões de brasileiros recebem cerca de meio salário mínimo por mês.

Um dos mecanismos mais eficientes para concentrar a renda no Brasil é sua política fiscal, além da característica de “capitalismo parasitário” que incentiva os investimentos especulativos, vale dizer: que desestimula a produção.

De acordo com o Banco Central, as despesas com juros em 2021 foram de R$ 448,3 bilhões, o que significou um aumento de R$ 136 bilhões em relação a 2020. Para efeitos comparativos, basta lembrar que todo o gasto com o Auxílio Brasil será, em 2022, de R$ 89,1 bilhões.

Podemos nos imaginar de esquerda, de direita ou de centro; socialistas, sociais-democratas ou liberais, mas o que importa, verdadeiramente, é saber o que pensamos sobre alguns temas centrais, entre eles a desigualdade social.

Em qualquer sociedade decente do mundo, todas as posições políticas mencionadas diriam que uma desigualdade desse tamanho é imoral e inaceitável.

Sim, há uma forte tradição liberal que contesta as iniquidades sociais e que produziu teorias sólidas em uma corrente que se poderia nomear de “liberalismo igualitário” como as de John Rawls, Ronald Dworkin, Norman Daniels, Thomas Nagel e Thomas Pogge, entre outros, os quais destacam, de diferentes maneiras, a necessidade de uma estrutura básica de sociedade que assegure um mesmo “ponto de partida” para todos, de forma que as diferenças em uma economia de mercado se situem a partir de um patamar de dignidade comum.

A ideia de justiça presente aqui assinala uma conquista essencial da humanidade e poderia ser resumida da seguinte forma: não se deve aceitar como legítimas as consequências distributivas a que as pessoas não deram causa.

Assim, por exemplo, não é “do jogo” que uma pessoa doente e incapaz de trabalhar não seja amparada socialmente, vale dizer: pelos resultados do trabalho dos demais, do mesmo modo que não é justo que um talento definido aleatoriamente pela composição genética e que permite uma performance de excelência em determinada atividade não produza frutos que possam ser compartilhados também pelos demais, e assim sucessivamente.

Muitos são os economistas liberais, como Deaton Angus, por exemplo, Prêmio Nobel de Economia em 2015, que destacam a necessidade de o Estado “corrigir” o mercado para reduzir a desigualdade; ponto no que é acompanhado por lideranças empresariais que percebem que o atual nível de desigualdade é insuportável e disfuncional ao próprio sistema capitalista.

Dessa maneira, por exemplo, Michael Corbat, presidente do Citigroup, afirmou: “Nos EUA, a diferença salarial é exacerbada pela escassez de moradias populares que afetam desproporcionalmente pessoas de baixa renda e comunidades minoritárias. Isso é ruim para os negócios e péssimo para a sociedade”.

No Brasil, entretanto, há quem considere a obscena desigualdade que temos como “natural”.

Essa turma de bárbaros entende que qualquer tentativa de reduzi-la com políticas públicas que desconcentrem renda é uma ameaça à “liberdade” e, claro, “é coisa de comunista”.

São, aliás, os mesmos que repetem há décadas que o Estado brasileiro gasta muito, mas que nunca consideram demasiados os gastos desse mesmo Estado com o pagamento de juros.

No Estado Democrático de Direito, a política fiscal deve se orientar pelo princípio da progressividade, o que poderia materializar o objetivo constitucional (art. 3º, III) de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Assume-se com a progressividade uma regra de justiça baseada na equidade (epiquea), algo que não foi inventado pelos comunistas, mas por Aristóteles, quando nos falou da régua de Lesbos, a régua flexível que permitia acompanhar a superfície dos objetos.

Lesbos, assinale-se, é a ilha grega onde nasceu a poeta Safo, autora de versos endereçados às mulheres, o que originou a expressão “lésbica” para designar a orientação homossexual feminina, outro fenômeno que tem a idade da humanidade e que também não foi invenção dos comunistas, que, aliás, nunca entenderam propriamente o tema e compartilharam, historicamente, muitos preconceitos homofóbicos.

Dedico este texto à memória de meu amigo Mauro Zacher, que o teria lido com satisfação e concordância

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

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