OPINIÃO

Igualdade de gênero é luta coletiva

Por Télia Negrão / Publicado em 21 de fevereiro de 2017

Igualdade de gênero é luta coletiva

Foto: Wilson Dias/ABr

Foto: Wilson Dias/ABr

Uma greve de mulheres vem sendo convocada por sete feministas* de renome internacional, e o chamamento sensibiliza movimentos de cerca de 30 países, entre os quais o Brasil. Aqui, inúmeras iniciativas prometem fazer deste 8 de março um momento de reposicionamento da agenda histórica das mulheres.

O manifesto Para além do faça acontecer noticia que há um levante feminino em vários lugares do mundo, e que longe de se constituir em mais uma estratégia mercadológica, o dia internacional da mulher deve voltar às suas origens. Pois, como tudo que cai no gosto do mercado, muito distante das raízes desta data – a luta das operárias contra a super-exploração e a desigualdade no mundo no trabalho, nos idos do século dezenove –, o sabido capital descobriu mais um filão: pacotes de produtos e serviços embalados em rosa choque, com hashtags e mensagens cunhadas nos movimentos sociais.

Mas há um outro elemento-chave no chamado encabeçado pela líder feminista negra Angela Davis: a denúncia da mistificação do processo de libertação ou empoderamento feminino do tipo “faça por si mesma”, ou “faça acontecer”, seja uma empreendedora. Uma fórmula ao modo “bricolagem” que lança sobre as próprias mulheres, individualmente, a saída da condição de desigualdade de gêneros que marca todos os países do mundo. Assim, no Manifesto internacional há um clamor para que as mulheres tomem consciência dos aspectos estruturantes das desigualdades, como o racismo, a pobreza, a “violência masculina” e todas as formas de discriminação contemporâneas. E a saída é a retomada de uma ideia de coletividade para mudar as condições de vida de todas.

Que a convocação é contextualizada na eleição de Trump não há dúvidas. O atual presidente norte-americano consegue ser pior do que o conservador Bush, que de 2001 a 2008 tentou banir da pauta de financiamento internacional os direitos sexuais e reprodutivos, condicionando a liberação de recursos a programas que excluíssem aborto, liberdade sexual e similares. Mas há outras motivações. Entre elas as novas formas de fazer política feminista, o que inclui retomar ações de massa e as greves. Na Polônia, as mulheres conseguiram barrar a tentativa de endurecer a legislação do aborto. Na Argentina, contra os feminicídios e pela dignidade. E assim segue uma lista de adesões às paralisações ativistas.

Conclamando para uma parada geral no trabalho fora e dentro de casa e na realização da denúncia pública sobre a violação da dignidade das mulheres pelo tratamento desigual em todos os campos da vida, essa estratégia também mirou no passado. É de 1903 o primeiro registro de greve de mulheres no Brasil, em que a tecelã ítalo-paulista Matilde Grassi faz a seguinte declaração: …É já tempo que a mulher operária faça também nessa cidade o que vai fazendo em tantas cidades civilizadas(…)uni-vos, formais sociedades de resistência, procurai conquistar mais bem-estar, despertai do longo letargo no qual tendes adormecido até hoje”.

A pergunta que não quer calar, é se temos motivos para tanto! Recorro aos meus arquivos sobre o que se pretendeu mostrar como a “história das mulheres”. E a sua fundadora, e ao mesmo tempo refutadora maior, a francesa Michelle Perrot relata as dezenas de greves femininas ao longo dos dois últimos séculos.

Puxadas por operárias, tinham como foco divulgar suas condições de trabalho e de salário, sempre piores do que as masculinas, mas tanto lá como cá já traziam a denúncia da violência, dentro de fora das fábricas, por patrões e pela polícia em repressão aos seus movimentos. Ainda a violência de gênero que ocorre dentro de casa não estava explicitada, mas sim as seguidas gestações e abortamentos pelas jornadas de trabalho excessivas, em contato com agentes químicos, fome, miséria e infecções.

E hoje? No ano de 2017, podemos constatar que no mundo todo as mulheres tiveram conquistas, é inegável a presença feminina no mundo público do trabalho, da escola, da cultura, da arte, da vida em geral. Nações de todo canto pactuaram tratados internacionais sobre direitos humanos das mulheres ao longo dos últimos quarenta anos, leis nacionais apontaram para a igualdade, mas isso basta?

Perguntem às mulheres, elas dirão que não. E temos os números para respaldar essa posição: o conservador Fórum Econômico Mundial classifica o Brasil como 133º colocado na diferença salarial por sexo em 2015. Segundo o TSE, as mulheres ocupam 10% das cadeiras na Câmara Federal e 16% no Senado. As taxas de feminicídio – assassinatos de mulheres – põem o país entre os cinco mais violentos do planeta.  E o mais recente estudo da Oxfam chamado Uma Economia para os 99% sobre as desigualdades mundiais constata: “…as mulheres ganham de 31 a 75% menos do que os homens devido à lacuna de remuneração e a outras desigualdades econômicas, como à sua falta de acesso a proteção social, que se acumulam e as deixam em situações bem piores ao longo da vida”.

Nas convocações brasileiras alguns temas são óbvios, e não poderia ser diferente: o congelamento dos investimentos nas políticas sociais, a reforma da previdência e os impactos na vida das mulheres que carregam ainda, em 2017, a dupla jornada e todo o trabalho reprodutivo. Enfrentar estes temas cruciais como partes do quebra-cabeça das desigualdades de gênero e de raça parecem ser chamamentos fortes que prestam uma boa homenagem às têxteis de 1857.

* Angela Davis, Cinzia Arruzza, Keeanga-Yamahtta Taylor, Linda Martín Alcoff, Nancy Fraser, Tithi Bhattacharya e Rasmea Yousef Odeh

Télia Negrão |  Jornalista, feminista

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