POLÍTICA

O impasse americano

José Luis Fiori / Publicado em 22 de novembro de 2003

“A mera preservação da existência social exige, na livre competição, uma expansão constante. Quem não sobe, cai. A vitória, por conseguinte, significa, em primeiro lugar, domínio sobre os rivais mais próximos e sua redução ao estado de dependência”.
Norberto Elias,
O Processo Civilizador, 1939

Primeiro foi a euforia com a vitória político-ideológica e o sucesso econômico, depois a euforia com a superioridade bélica e com a vitória militar no Afeganistão e no Iraque. Agora, de repente, o governo e a sociedade americanos parecem perplexos, depois da explosão da bolha financeira e da desaceleração da sua economia, e frente à impotência e ao despreparo demonstrado pelo governo americano em face de suas novas responsabilidades imperiais. As autoridades econômicas, como em todo lugar, procuram desmentir as dificuldades e anunciam a cada manhã a volta dos investimentos e do emprego. Mas analistas do sistema financeiro têm demonstrado maior pessimismo, alguns inclusive antecipam a possibilidade de uma crise deflacionária e de uma estagnação mais prolongada da economia americana. No campo político-militar, aumentam dia a dia as dificuldades americanas no Afeganistão, onde não existe praticamente governo central fora de Cabul. E no Iraque, onde as tropas americanas se mostram impotentes frente aos ataques terroristas, os seus governantes parecem perplexos, sem poder recuar nem saber para onde avançar.

Este quadro contrasta com as certezas norte-amerianas da década de 90, e vem alimentando um debate cada vez mais intenso, em duas claves bem distintas, mas não excludentes. Por um lado, os analistas da conjuntura política e econômica, lêem e relêem números e informações tentando identificar as similitudes com o passado e as principais tendências do futuro imediato. Neste campo existem opiniões para todo gosto, mas o clube dos otimistas parece estar em franco declínio. Noutro plano, mais acadêmico, vem se travando um outro tipo de discussão, de mais longo prazo, sobre o futuro do próprio sistema político e econômico mundial, e da supremacia inconteste dos Estados Unidos. Neste debate, têm se destacado alguns intelectuais importantes dentro do campo da esquerda internacional, como Antonio Negri, Immanuell Wallerstein e Giovanni Arrighi.

O mais otimista de todos, sem duvida, é o filósofo italiano Antonio Negri que escreveu seu livro Império, em plena euforia globalitária dos anos 90. Segundo sua tese central, as transformações econômicas e políticas, iniciadas na década de 1970, já deram origem a uma nova forma “pós-moderna” de organização política mundial, onde os estados nacionais, mesmo o das Grandes Potências, cederam seu lugar a um Império. Mas não o império de que todos falam, depois da invasão norte-americana do Afeganistão e do Iraque. Pelo contrário, um “império” que não tem nada a ver com o “velho imperialismo” baseado na expansão global do poder das Grandes Potências. Não seria o resultado da concorrência entre os estados nacionais, nem da ação de algum estado em particular, seria um novo tipo de soberania supranacional, a supra-estrutura de uma economia globalizada.

Numa linha diferente, já faz muito tempo que Immanuell Wallerstein diagnostica a “crise terminal da hegemonia norte-americana”. Mas sua originalidade não está neste ponto, está na sua tese de que esta decadência americana, que começa na década de 1970, já não é apenas um caso clássico de crise e transição hegemônica, normal dentro do “sistema mundial moderno”, é uma crise terminal do próprio Sistema, que deverá se prolongar até 2050, dando lugar depois, ao nascimento de algo novo e desconhecido, que não seria mais o velho socialismo nem parece que seja o tal do império de Negri, como se estivéssemos vivendo uma verdadeira e prolongada mudança de galáxia ou de Universo. Mais próximo de Wallerstein do que de Negri, ainda que menos apocalíptico, Giovanni Arrighi também sustenta a tese da crise terminal americana, mas fala “apenas” de uma “crise de hegemonia”. Segundo Arrighi, depois do fim da Guerra Fria, os Estados Unidos aumentaram sua vantagem militar sobre seus concorrentes, mas ao mesmo tempo se fragilizaram como potência hegemônica, devido ao crescimento de seu endividamento externo, e do seu desequilíbrio comercial, em particular, com relação às principais economias asiáticas. Neste ponto, Arrighi se coloca ao lado de um grande nuúmero de acadêmicos, sobretudo nos Estados Unidos, que temem ou anunciam o Apocalipse, na hora em que se desencadear o “ataque amarelo contra o dólar”. Seria a senha que anunciaria o início do fim do poder americano.

Mesmo que seja difícil prever o futuro, nesta perspectiva de mais longo prazo em que se colocam Negri, Wallerstein e Arrighi, é importante que se esclareçam melhor as duas idéias centrais em que se sustentam as suas análises e previsões. A primeira e mais difundida tem a ver com a explicação econômica da futura queda americana: a idéia de que os Estados Unidos se fragilizaram nas últimas décadas, ao se endividarem excessivamente e ao permitirem a transferência do “caixa” do sistema para o leste asiático. Com relação ao problema do endividamento, esses analistas confundem o funcionamento do atual sistema monetário internacional – “dólar-flutuante” – com o que foram os sistemas monetários internacionais anteriores, baseados nos padrões ouro-libra e ouro-dólar. Nestes dois últimos, “os países que emitiam a moeda chave podiam fechar o saldo de sua balança de pagamentos com deficits globais, mas tinham que se preocupar permanentemente com sua posição externa, para impedir que se alterasse o preço oficial da sua moeda em ouro” (Serrano, 1998:1)1 . Entretanto, no novo sistema monetário internacional – que se consolidou nas décadas de 1980/90 – “os Estados Unidos podem incorrer em deficits em balanço de pagamentos de qualquer monta e financiá-los tranqüilamente com ativos denominados em sua própria moeda. Além disto, a ausência de conversibilidade em ouro dá ao dólar e aos Estados Unidos a liberdade de variar sua paridade em relação às moedas dos outros países conforme sua conveniência, através da movida das taxas de juros. E, nesse sentido, a ausência de conversibilidade em ouro elimina pura e simplesmente o problema da restrição externa para os Estados Unidos”, ao contrário do que pensam Arrighi, Wallerstein, e grande parte da esquerda neo-keynesiana norte-americana. Deste ponto de vista, a crise dos anos 70, a “expansão financeira” posterior, e o fim da Guerra Fria transferiram para os Estados Unidos uma centralidade militar, monetária e financeira sem precedentes na história da economia-mundo capitalista. E não há nada, portanto, no cenário mundial que sustente a idéia de que ocorreu uma “bifurcação” entre o poder militar e o poder financeiro globais nos últimos vinte anos do século XX. Pelo contrário, ambos estão concentrados nas mãos de um único estado nacional, que responde ainda pelo nome de Estados Unidos.

Negri publicou o seu Império, antes do anúncio da nova Doutrina Bush e de seu defesa do direito norte-americano ao “ataque preventivo” contra outros estados, e antes do ataque e ocupação americana do Afeganistão e Iraque. E é evidente que o escreveu ainda no clima de entusiasmo com a utopia da globalização da “nova economia” e da “sociedade em redes”. Hoje, suas teses parecem um pouco desenfocados, mas apesar disto seguem tendo grande influência entre os militantes dos movimentos antiglobalitários. Negri vê, no seu Império, a forma política pós-nacional do mercado global e, neste ponto, incorre no mesmo erro de vários outros marxistas que não conseguem ver que a globalização do capitalismo, a partir do século XVII, não foi uma obra do “capital em geral”, foi obra de estados e economias nacionais que tentaram impor ao resto da economia mundial a sua moeda, a sua “dívida publica”e seu sistema de “tributação”, como lastro de um sistema monetário internacional transformado no espaço privilegiado de expansão do seu capital financeiro nacional. Esse processo deu um passo enorme, depois da generalização do padrão ouro e da desregulação financeira, promovida pela Inglaterra, na década de 1870. E deu outro passo gigantesco depois da generalização do padrão “dólar-flexível” e da desregulação financeira, promovida pelos Estados Unidos, a partir da década de 1970. Na década de 1980, o que se globalizou foi a moeda e a dívida pública dos Estados Unidos, e não de uma vago império metafísico. Este é o verdadeiro segredo do novo poder americano. Max Weber sustenta, na sua História Geral da Economia, que, “enquanto os estados nacionais não cederem lugar a um império mundial, o capitalismo também persistirá”, e se ele tiver razão, se pode pode inverter o raciocínio e concluir que, “se o capitalismo ainda persistir (como parece ser o caso), é porque os estados nacionais ainda não acabaram, nem cederam lugar a um império supra-nacional”.

Ninguém tem duvida de que o Sistema Mundial está passando por um momento de grandes transformações e que os Estados Unidos estão colocados numa disjuntiva de enorme complexidade. Sem dúvida, no Oriente Médio o impasse americano fica mais visível, porque é onde estão sendo provocados e há resistência em tomar o caminho de uma política colonial explícita. Gostariam de replicar no Iraque a mesma estratégia que adotaram depois da II Guerra Mundial, na Alemanha e no Japão. E alguns já chegaram a sonhar com uma repetição da União Européia. Mas, na prática, estão cada vez mais atolados e comprometidos com um projeto colonial pouco nítido e sem perspectivas de sucesso. Não há duvida, portanto, de que os Estados Unidos terão dificuldades crescentes, nas próximas décadas, para manter o seu controle global, no campo político e econômico. Mas não há sinais econômicos ou militares de que este impasse americano seja uma crise terminal, nem muito menos de que os Estados Unidos já tenham deixado de ser um Estado Nacional, com seu projeto imperialista, como tiveram todos os grandes estados europeus. Se erra na sua análise econômica, Giovanni Arrighi parece mais próximo da verdade quando prevê no seu O Longo Século XX que “mais cedo ou mais tarde, chega-se a um ponto em que as alianças entre os poderes do Estado e do capital tornam-se tão impressionantes que eliminam a própria competição e, por conseguinte, a possibilidade de emergência de novas potências capitalistas de ordem superior”. E, nesse sentido, o impasse americano atual lembra muito o início do século XX, quando Kautsky e Lênin discutiram sobre o futuro da ordem política e econômica mundial. Um, acreditando na possibilidade de uma coordenação “ultra-imperialista” entre os estados e os capitais das Grandes Potências, o outro acreditando na inevitabilidade das guerras, devido ao desenvolvimento desigual da riqueza e do poder das Nações.

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