POLÍTICA

Acirramento político e perigos à democracia

Desencadeada a corrida eleitoral, evidenciam-se: de um lado, a desorientação de segmentos da esquerda, e de outro setores conservadores querem voltar ao poder a qualquer preço
Por Paulo Fagundes Visentini* / Publicado em 11 de agosto de 2014
Presidenta Dilma Rousseff durante a VI Cúpula do BRICs, em 15 de julho

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR-Divulgação

Presidenta Dilma Rousseff durante a VI Cúpula do BRICs, em 15 de julho

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR-Divulgação

O ex-presidente Lula, em oito anos de governo (o primeiro de um trabalhador, na história do país), inegavelmente, lançou os fundamentos de um Novo Brasil e conseguiu fazer sua sucessora, garantindo, em tese, uma continuidade bem-sucedida. A forma ágil e pragmática como algumas políticas sociais, econômicas e diplomáticas foram implementadas, pegou a velha elite liberal-conservadora americanizada de surpresa. Todos os escândalos instrumentalizados foram incapazes de corroer sua popularidade, pois as classes C e D não leem revistas semanais. Nas eleições de 2006 e 2010, o radicalismo ideológico de velho tipo da oposição não funcionou. E o governo Dilma seguiu, em linhas gerais, a mesma política, realizou avanços e manteve a estabilidade, embora tivesse de se concentrar em blindar o Brasil contra a crise econômica mundial.

Assim, não havia crise econômica nem problemas conjunturais que explicassem as mobilizações de junho de 2013 em diante. Após quase uma década de intensa projeção internacional, crescimento econômico e bem-sucedidas políticas sociais inclusivas, o país foi sacudido por uma onda de estranhos protestos, caracterizados por motivações contraditórias. A conquista obtida pelo presidente Lula de o Brasil sediar a Copa Mundial de Futebol em 2014 e as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro, foi aplaudida por todos na ocasião, mas a partir de então pareceram ameaçadas. O Brasil, como a maioria dos países, padece do caos das megacidades e necessita, com urgência, de obras de infraestrutura (muitas planejadas há décadas), que seriam propiciadas pela Copa e pela Olimpíada.

CONSUMISMO É verdade que o governo estimulou o consumo das classes C e D sem prejudicar as A e B e, para tanto, facilitou a aquisição de automóveis, que aumentam o caos urbano, em detrimento do transporte público. E, nesse ponto, não atuou de forma diferente do Regime Militar ou da Era neoliberal de Collor e Cardoso. Ao mesmo tempo, criou uma cultura de consumismo, com direitos ampliados, sem deveres correspondentes nem motivações ideológicas construtivas e coletivas, apenas contribuiu para reforçar ainda mais o culto ao individualismo (uma das causas do fracasso da seleção brasileira).

RESSENTIMENTO A velha elite brasileira se ressente da crescente concorrência das classes ascendentes, em relação a uma infraestrutura defasada e ao deficiente setor de serviços, que deixa cada vez mais a desejar. Ela não está perdendo, mas tem a percepção de que os pobres estão subindo e, assim, ameaçando seu mundo. Uma população despolitizada pelo fisiologismo das alianças de um governo de coalizão e pela indiferenciação dos programas partidários agrava a situação.

Mas a insatisfação difusa, por si só, era incapaz de produzir tais manifestações de rua. Há mais de 20 anos os setores de defesa externa segurança interna e inteligência têm sido negligenciados, inclusive pelo governo atual, influenciado por uma perspectiva pós-moderna e (des)orientado por uma agenda emanada das grandes potências (nenhum país que se torne relevante pode descuidar disso). Neste sentido, o governo Dilma demonstra alguns pontos de descontinuidade em relação ao de Lula, pois tem um perfil muito técnico, por um lado, e politicamente vacilante, por outro. Inclusive sua diplomacia evidencia sinais de retrocesso, num governo perigosamente permeável e vulnerável à ação política instrumental de ONGs e fundações públicas e privadas estrangeiras.

Políticas públicas são lançadas, fomentando movimentos sociais de orientação ambígua, que se voltam contra o próprio governo que os beneficia. Em plena crise mundial, manifestantes exigem vantagens que estão desaparecendo até nas antigas e prósperas potências do Norte, sem estarem dispostos a realizar esforços em retribuição. E ao assim agirem, atacam o governo que os defende. Infelizmente, as novas gerações desconhecem a experiência e colapso do governo Allende no Chile em 1973.

Protestos contra a Copa 2014 realizados do Rio de Janeiro, em maio passado

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Protestos contra a Copa 2014 realizados do Rio de Janeiro, em maio passado

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Redes sociais e movimentos anticopa
As redes sociais, tecnologicamente controláveis e politicamente influenciadas por atores estrangeiros (vejam os escândalos de espionagem norte-americana), enquadram facilmente manifestantes desorientados e inexperientes, marcados por um idealismo ingênuo. Demandas justas evoluem para um falacioso movimento “anticopa”. Os velhos conservadores brasileiros e os agentes provocadores internos e externos passam à ação, bem como grupos econômicos de pressão em busca de vantagens pontuais e obscuras e desconhecidas organizações de extrema esquerda (até o crime organizado participou).

E o governo demonstrou, então, despreparo e reagiu de forma errática e vacilante, alimentando ainda mais os protestos. Não por acaso, o prédio do Ministério das Relações Exteriores em Brasília (Itamaraty) e instituições públicas foram os principais alvos dos atos de vandalismo.

A política externa de Dilma, de “continuidade sem intensidade”, se aproximou dos EUA e diminuiu a cooperação com a África e os países árabes. Deu grande autonomia ao Itamaraty, onde os oponentes da diplomacia de Lula puderam retomar espaço, enquanto a presidente aceitava agendas euro americanas de uso seletivo, sem os devidos cuidados (direitos humanos e democracia), e enviava milhares de alunos pouco preparados para países do Primeiro Mundo, de onde a maioria volta deslumbrada.

No mesmo sentido, o Brasil vacila a respeito de critérios internacionais aplicados abusiva e seletivamente a serviço das grandes potências (ambientalismo, indigenismo) que enfraquecem o desenvolvimento nos campos da energia e infraestrutura, em relação aos quais todos exigem melhorias. Membro do BRICs (Banco dos Países Emergentes, Brasil, Rússia, Índia e China e África do Sul), afastado geograficamente do núcleo eurasiano, o Brasil se debate com problemas de identidade. Uma nação histórica e culturalmente reconhecida pelo rico predomínio da mestiçagem (diferente de “branqueamento”), sucumbiu ao pseudomulticulturalismo do Norte. Este, em síntese, o define como “Ocidental”, com minorias “raciais”, fragmentando a construção de uma identidade nacional. Sem tal identidade coesa, não é possível construir um projeto nacional e, em consequência, não pode haver avanço no desenvolvimento econômico-social sustentado. Mas o que está sendo tentado pelos conservadores, no plano externo, é o realinhamento da diplomacia brasileira com o Ocidente e seu afastamento dos demais BRICs.

O duro campeonato eleitoral
No plano interno, são as eleições de 2014, após a derrota da oposição em cidades importantes, como São Paulo. Assim, em meio a uma aparente “Revolução Colorida”, o que estava em disputa não era o Regime Change (a classe política brasileira é muito bem-articulada), mas o desgaste da presidente Dilma, o renascimento da enfraquecida oposição e a alteração da coalizão governante. Não existe uma “onda de corrupção”, como pretende a mídia e a classe média, mas a luta ferrenha pela distribuição dos recursos de investimento e a punição apenas dos casos que envolvem verbas de campanha da esquerda.

Os protestos foram se tornando cada vez mais instrumentais e profissionalizados, sendo contidos durante a Copa, que transcorreu com sucesso (apesar do fiasco da seleção). Assim, abre-se a corrida eleitoral, com uma esquerda desorientada tendo ajudado os conservadores a desgastar o governo, o que é perigoso, dado a agressividade e ingerência que tem marcado crescentemente a política das grandes potências nos anos recentes. A situação dos governos progressistas latino-americanos é precária, como se observa na Venezuela, Argentina e Bolívia. Dois, Honduras e Paraguai, foram revertidos por golpes brancos, com a conivência da chamada comunidade internacional.  E todos dependem do Brasil conseguir manter o atual projeto político no poder.

O governo e as forças progressistas devem agir de forma articulada e se mobilizar para o processo eleitoral, pois os conservadores têm agora novas táticas (vestindo pele de cordeiro) e sabem como confundir a população. Além disso, não parecem dispostos a perder mais uma eleição. As manifestações foram grandes e fáceis demais porque contaram com apoio de conservadores e até da mídia.

Que a lição do ano passado tenha sido aprendida pelos progressistas para as eleições deste ano, porque a oposição aprendeu e vem organizada. Não se corrige os desvios do governo fazendo frente com grupos de procedência duvidosa, contra o governo, assustando a população, que, assim, é instigada a absorver o discurso camuflado da oposição. A direita ficou muito tempo afastada do poder e deseja recuperá-lo a qualquer preço, tirando proveito da fragmentação e confusão atual do campo progressista. O campeonato eleitoral será ainda mais duro do que o de futebol.

* Historiador, professor titular de Relações Internacionais da Ufrgs.

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