SAÚDE

Bancos de tecidos musculoesqueléticos não dão conta da crescente demanda de cirurgias no país

Especializados no processamento e na conservação de pele, osso, cartilagem, tendão, entre outros, os bancos de tecidos fornecem materiais para transplante nas áreas da ortopedia e odontologia
Por Stela Pastore / Publicado em 22 de novembro de 2021
Com o início da pandemia, o banco de tecidos de Passo Fundo ficou um ano e oito meses sem qualquer doação

Foto: Sheila Zang/BTME/Divulgação

Com o início da pandemia, o banco de tecidos de Passo Fundo ficou um ano e oito meses sem qualquer doação

Foto: Sheila Zang/BTME/Divulgação

“Vamos precisar cada vez mais dos bancos de ossos e tecidos. O Brasil é um país gigantesco, cuja a população vive mais e quer viver melhor. Aumentar a captação e criar outros bancos no país são duas necessidades”, registrou o médico ortopedista Osmar Valadão Lopes Jr., diretor técnico do Banco de Tecidos Musculoesqueléticos do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), de Passo Fundo (RS), único da Região Sul do país.

No último dia 17 de novembro, Valadão participou de painel sobre o tema realizado pelo projeto Cultura Doadora, da Fundação Ecarta. Também participou da atividade, o enfermeiro Maurício Luciano Zangirolami, integrante da Comissão Intra-Hospitalar para Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (Cidhott) do São Vicente de Paulo.

O banco de Passo Fundo ficou um ano e oito meses sem qualquer doação, a partir do início da pandemia. A última captação ocorreu em dezembro de 2019. “As doações de janeiro de 2020 foram totalmente descartadas por orientação dos reguladores. Voltamos em outubro de 2021 e o impacto foi muito grande. Praticamente não há tecido em estoque”, registra Valadão. “Muita gente ficou esperando pelas cirurgias eletivas e os casos se agravaram e agora é um problema que a gente tem que enfrentar”.

O gestor observa que 70% da captação de tecidos é feita no próprio Hospital em Passo Fundo, mas o banco também recebe materiais do Hospital de Clínicas de Passo Fundo, do Hospital Pompéia, de Caxias do Sul, e o Tacchini, de Bento Gonçalves.

Segundo ele, as cirurgias de substituição articular de joelho e quadril, chamadas de articulações de carga, são as mais demandadas, juntamente com a coluna vertebral. A estimativa é que o volume de cirurgias dobre em dez anos em decorrência do aumento da longevidade e a busca pela melhoria da qualidade de vida.

Estrutura e regulamentação

Foto: Reprodução Youtube/Fundação Ecarta

Painel do projeto Cultura Doadora tratou da doação, transplantes e o banco de ossos e músculos do RS. Íntegra pode ser acessada no Canal da Fundação Ecarta no Youtube

Foto: Reprodução Youtube/Fundação Ecarta

O país conta com cinco bancos de tecidos musculoesqueléticos ativos (três em São Paulo, um no Rio de Janeiro e o do RS), que atendem tanto o sistema público como a saúde suplementar.

O Rio Grande do Sul é pioneiro na implementação de bancos de tecidos musculoesqueléticos, conhecidos como Bancos de Ossos. Implantado em 1981, a unidade de Passo Fundo gerou referências para o avanço na legislação e adequações sanitárias estimulando a criação de outros bancos no país.

E, desde sua regulamentação em 2002, já disponibilizou tecidos para cerca de sete mil procedimentos cirúrgicos na área de ortopedia e odontologia (implantodontia, periodontia e bucomaxilofacial).

O Paraná chegou a ter um banco de ossos funcionando entre 1998 a 2017, desativado por irregularidades na gestão. Nos últimos quatro anos, a unidade de Passo Fundo é a única da Região Sul.

Os ossos podem ser transplantados na forma original ou em pequenos fragmentos. As cirurgias são indicadas para portadores de tumores ósseos, para evitar amputação; pacientes com próteses de quadril ou de joelho, que precisam ser trocadas devido ao desgaste do material; e ainda crianças portadoras de graves deformidades da coluna vertebral.

Desde julho de 2006, cirurgiões-dentistas cadastrados no Sistema Nacional de Transplantes têm acesso aos bancos de ossos autorizados a fornecer tecido ósseo para enxerto.

Diferente dos órgãos sólidos (pulmão, fígado, coração, entre outros), um doador de ossos e tecidos pode atender entre 30 e 40 cirurgias. “É impressionante a quantidade de pessoas beneficiada com uma doação. Completamente diferente de órgãos”, destaca o Valadão. Mesmo assim, as doações são ainda insuficientes.

Segundo ele, também é fundamental o aparelhamento das instituições de saúde e a capacitação de equipes para a captação de tecidos e o envio dos mesmos aos bancos, seguindo os protocolos exigidos. Ele acentua o valor dos bancos de ossos para o sistema público, visto que tecnologias de indústrias médicas não são acessíveis para a maioria da população.

Desinformação gera negativas

Foto: Divulgação

O médico Osmar Valadão Lopes é o atual diretor do Banco de Tecidos de Passo Fundo

Foto: Divulgação

“A grande maioria das pessoas e famílias nem sabe da possibilidade de doar ossos e tecidos porque se fala mais de órgãos vitais e córneas”, registra Valadão. Ossos e tecidos podem ser captados em doadores com morte encefálica, parada cardiorrespiratória e também de doadores vivos.

Para órgãos vitais, a negativa dos familiares de pacientes com morte encefálica chega a 42%. Para tecidos esse percentual é bem maior, apontam pesquisas. Uma das razões para o reduzido número de doações de ossos é o receio de que o corpo não tenha sua aparência preservada no velório, além da espera. A retirada de ossos e tecidos é o último ato cirúrgico a ser feito. “Os familiares têm pressa de receber o corpo para os eventos fúnebres, não querem esperar mais e acabam negando”, relata.

Referência em ortopedia

Quando o banco de Passo Fundo foi criado não havia regulamentação específica e tinha pouca literatura disponível. Foi necessário buscar referências internacionais, como o Banco de Tecidos de Moscou e publicações cubanas, adequando-se à realidade local.

A partir do surgimento de outros bancos de tecidos musculoesqueléticos pelo Brasil, os órgãos reguladores, Ministério da Saúde, Sistema Nacional de Transplantes e Agência Nacional de Vigilância Sanitária, tiveram a necessidade de criar legislações para adequação sanitária, de infraestrutura e gestão para esses serviços.

Com a regulamentação em 2002, os bancos de tecidos são oficialmente instituídos e submetidos a inspeções regulares para a manutenção do seu funcionamento. Após as adequações necessárias, o banco do Hospital São Vicente, em 2005, recebe autorização para o seu funcionamento conforme os padrões exigidos.

Excelência no interior

Para o atual diretor do BTME, a instalação da unidade em Passo Fundo decorreu por ser um centro pioneiro em tratamento ortopédico do Brasil. “Os médicos que iniciaram carreira em grandes serviços e residência, formados em importantes escolas como Estados Unidos e Inglaterra, trouxeram essa visão para complementar o que vinha sendo desenvolvido aqui”, observa.

Diferente dos outros quatro bancos de ossos do país, a unidade gaúcha está instalada dentro de um hospital comparativamente de menor porte – 800 leitos – e no interior do estado.

Essas características nem sempre são vantajosas pela dificuldade de captação de órgãos em hospitais de outras cidades e regiões, longe de centros que utilizam tecnologias avançadas, profissionais que desempenham várias atividades cumulativas devido à especialidade, financiamento insuficiente, entre outras variáveis.

“Todas as etapas desde a captação, manipulação e uso nas cirurgias é feita pelo corpo clínico ortopédico”, informa o Valadão. “Uma das principais diferenças dos demais bancos é que estamos longe de grandes centros, e o volume de captação é muito menor do que se gostaria. Além disso é mais difícil o acesso a novas tecnologias e acompanhar o avanço tecnológico”. O gestor observa ainda que os hospitais do interior do Brasil enfrentam muitas dificuldades financeiras o que impacta também o banco de tecidos.

Da doação ao transplante

Foto: Arquivo Pessoal

O enfermeiro pontua Maurício Luciano Zangirolami integra a Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (Cihdott) do Hospital São Vicente de Paulo

Foto: Arquivo Pessoal

O processo de captação dos doadores se dá através da identificação do potencial doador nas unidades de internação. “Após a constatação do óbito, o enfermeiro de cada unidade solicita avaliação desse possível doador ao Banco de Tecidos, Organização Por Procura de Órgãos e Tecidos (OPO) e Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (Cihdott)”, pontua o enfermeiro gestor do banco de Passo Fundo, Maurício Luciano Zangirolami.

Não havendo critérios clínicos que excluam a doação, são realizados a entrevista com a família, posteriormente preenchimento e assinatura do termo de consentimento da doação, coleta do kit para realização de exames sorológicos e exame físico do doador. “Os segmentos só serão captados mediante avaliação dos resultados dos exames sorológicos e autorização do responsável técnico do BTME”, explica Maurício. A captação demora cerca de 2,5 horas e em 40 dias o material estará disponível para uso.

“Podem ser captados segmentos dos membros superiores, como úmero, rádio e ulna e dos membros inferiores, fêmur, tíbia, fíbula, tálus, acetábulo, tendão patelar, tendão de Aquiles, tendão tibial anterior e tendão tibial posterior”, pontua o enfermeiro. Após a captação, os tecidos ósseos têm validade de cinco anos, desde que sejam armazenados a 80 graus negativos e os tendinosos, na mesma temperatura, possuem validade de apenas dois anos.

Solicitações e transporte

A distribuição dos tecidos é feita através de uma solicitação ao banco de tecidos, por meio de um formulário específico, tipo e quantidade de material necessário para a realização do procedimento cirúrgico. Havendo disponibilidade do material, ocorre todo o processo logístico adequado para o transporte.

“O tecido é acondicionado em recipiente isotérmico, lacrado e armazenado no interior de um recipiente protetor, lacrado e identificado adequadamente”, explica Maurício. O tempo de transporte de até quatro horas, utiliza-se gelo reutilizável a 40 graus negativos e para aqueles em que o tempo de transporte seja de até 48 horas, é utilizado gelo seco.

Após a captação, a região retirada é substituída por estruturas sólidas, permitindo uma apresentação integral, sem mutilações. “Ainda se pode aperfeiçoar essa etapa com materiais endurecidos que simulassem os ossos”, entende.

Os transplantes e enxertos de tecidos musculoesqueléticos podem ser realizados em 38 hospitais localizados nas cidades de Salvador, Fortaleza, Goiânia, Cuiabá, Curitiba, Londrina (PR), Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Passo Fundo, Florianópolis, Aracaju, São Paulo e nas cidades paulistas de Ribeirão Preto, Botucatu, Campinas e Sorocaba.

CULTURA DOADORA – O projeto Cultura Doadora é um projeto permanente da Fundação Ecarta, que há oito anos fomenta a formação de práticas solidárias e atitudes proativas para a doação de órgãos e tecidos, apoiando iniciativas e a estruturação do atendimento para a doação e transplante no Rio Grande do Sul. Mais informações do projeto no site www.culturadoadora.org.br. Todos os painéis sobre doação de órgãos e tecidos e os transplantes podem ser acessados gratuitamente no Canal da Fundação Ecarta no Youtube.

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