CULTURA

A genealogia do Rio Grande do Sul

DÓRIS FIALCOF / Publicado em 25 de maio de 1999

Lendas sobre a criação do mundo são pouco lembradas, ainda que apresentem explicações fantásticas. Mitologia dos guaranis que habitaram o estado apresenta devoção à harmonia, em oposição à guerra como motor da vida

É comum no meio acadêmico, no mundo das artes, no divã do analista e até mesmo no cotidiano a tendência humana às metáforas para tentar desvendar a vida, ou quem sabe a morte, o medo, a raiva, o ciúme. Nota-se que a melhor fonte para isso são os mitos, com seus deuses, pragas, predestinações, amores, traições e martírios. E, no geral, a mitologia grega e romana, com sua inegável sustentação universal. Perfeito. Mas, que tal, além de espichar o olho para tão longe, voltar também a atenção para o que está ao lado, e conhecer e valorizar as lendas e mitos da própria terra?

Entre as suas particularidades, a mitologia do Rio Grande do Sul tem um diferencial que marca a devoção à harmonia, e não às guerras. Ao contrário dos outros deuses, que são vistos como infalíveis, o Deus guarani, “cheio de sua infalibilidade, criou outro Deus, com a missão de levantar dúvidas, esclarecer a si mesmo”, destaca o historiador, escritor e folclorista Barbosa Lessa, colunista do Extra Classe, que explica o surgimento deles: “no princípio, Nhanderuvuçu criou a atração das coisas, o Anhang dos anhangs, que era a força de si mesmo”, diz. Porém, vendo que, assim, as coisas eram sem forma, cor, sem movimento e vazias, Nhanderuvuçu criou o oposto de si mesmo, Nhanderu-Mbaecuaá, a repulsão das coisas. E, por isso, nasceu a Terra, que é a mãe Nhandecy, em cujo ventre foram geradas as quatro-forças-em-uma, que dão equilíbrio à vida: Yara, a mãe das águas; Tupá, o guardião dos ventos; Curupira, o defensor das matas por si só nascidas e dos animais que vivem nas matas, nos campos, nas águas, nos ares; e Ceucy, a mãe das plantas plantadas e protetora da casa que nasce junto aos roçados.

Para que as coisas vivessem, explica Lessa, a mitologia guarani conta que Nhanderevuçu criou o Kayuá, o dom da palavra, pois uma coisa só pode existir quando há um nome para chamá-la. E então o Deus guarani disse: “Haja ervas, árvores, cipós; haja pássaros no ar, peixes na água, bichos na face da terra”. E cada anhang (a atração das coisas) e cada forma, unidos, resultaram no nome dessas coisas. Para o governo dos homens, Nhanderuvuçu e Nhanderu-Mbaecuaá são os gêmeos civilizadores. “E nem havia ainda lua, nem casa, plantas plantadas, nem mesmo o homem e a mulher; mas Nhanderuvuçu, que tudo sabe e prediz, soube e previu”, conta a lenda. E as lendas seguem narrando o surgimento de tudo, com o seus porquês. Poucas são conhecidas, porém, e quando o são tornam-se inesquecíveis como é o caso do Negrinho do Pastoreio. “Mesmo que não se saiba a história, muitos acreditam mesm o que é ele quem acha as coisas perdidas”, garante Lessa.

O folclorista lamenta também que quase ninguém conheça a “mais bela lenda do Brasil… ou do mundo”, a Salamanca do Jarau. “A vantagem em face das outras é de realmente existir o local onde ela se passa. É em Quaraí, nas furnas do Cerro do Jarau”, comemora o folclorista, garantindo que, como na tradição das lendas gregas e romanas, a Salamanca é uma “sementeira de lições”. Para ele, o que falta em relação à mitologia gaúcha é o mesmo que fizeram os romanos, ou seja, divulgar e ensinar suas lendas. “O dia mais feliz do folclorista será aquele em que os professores primários, conscientes da importância deste assunto, vierem se integrar ao movimento tradicionalista, não por um simples gesto de simpatia, mas pelo seu sentido e valor”.

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